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Tudo em nós é uma afirmação de convicções e de políticas. A própria ausência delas pode ser uma afirmação delas mesmas ou, se não tanto, pelo menos, se para tal tivermos a nossa sensibilidade desperta, o mote para, dessa ausência, extrair e gerar algumas. Entre companhias aéreas e bandas largas de alta velocidade, ir desde aqui até ali é um pulo. Aviões e cabos percorrem distâncias na horizontal, unindo pontos continuamente menos distantes. Olhar sempre em frente, um destino atingido após o outro. Entre estatutos sociais e bens materiais, a diferenciação e o consumo são uma tentação. Notoriedades e riquezas encurtam distâncias na vertical, aproximando degraus a que é necessário aceder. Olhar sempre em frente, um patamar a conquistar após o outro. Entre todos os da imensa massa colectiva que, armadilhada numa liberdade falsamente forjada porque concedida com limites, se movimenta nestas distâncias, a única forma de sobressair e assinalar a existência individual é ir mais longe, ir mais alto, ir mais depressa. É urgente, não há tempo, os ponteiros não param. Um dia, hoje, amanhã, ou daqui a muito tempo, o coração vai deixar de bater, o sangue vai deixar de correr. Antes desse dia, há que sobressair, há que existir. Só dessa forma se continuará a existir, mesmo depois desse dia. É esse o pacto firmado com a sociedade, a cláusula sob a qual, muitas vezes sem nos apercebermos, nos vemos controlados e manipulados. Pelo contrário, tomamos percepção, em simultâneo, que o dia em que esse dia chega não está ao alcance do nosso controlo. Esse dia chega num dia que funciona em by-pass na nossa mesa de comandos. E dá-nos medo, o incontrolável. O dia da morte dá-nos medo. E, também, dá-nos medo chegar a esse dia, não sabemos qual, sem sequer chegar a existir, sem sequer sobressair, ao abrigo da cláusula desse pacto. É o que nos é feito crer. De repente, tomados por esses medos, vemo-nos a fazer isto e não aquilo, vemo-nos a dizer isto e não aquilo. Talvez, fazendo e dizendo isto, e não aquilo, aconteça aquilo e não isto. Não talvez, mas certamente, nesses medos, surgem, inevitáveis, as inseguranças, as dúvidas, as questões. E surgem as fugas delas. Fugimos, em busca de letras pequenas em rodapé nesse pacto, uma saída de emergência. Um céu desejado, um paraíso procurado, trazidos para o chão que pisamos em segurança do que conhecemos. Fugimos, recorrendo ao que conhecemos, ao que nos é seguro e não envolve riscos assumidos. Fugimos, recorrendo ao que não envolve bater no peito e afirmar algo efectivamente individual, ao que não envolve seguir em alguma direcção, mesmo que distinta das outras, das tais. Fugimos para um qualquer comportamento ou ritual social no qual possamos projectar e exibir todas essas distâncias horizontais e verticais já transpostas. Mas artificial, essa direcção, esse chão. E, tantas vezes sem nos apercebermos, é nesse dia, antes do tal dia, sem mesmo chegar a ele, que nos esvaziamos, deixamos de existir, e nos transformamos em nada.
É esta a mensagem que extraímos de Gaika Tavares, o multifacetado produtor, vocalista, escritor e artista visual, nascido e criado em Brixton, um dos redutos londrinos ainda resistente à ocupação liberal, empresarial e consumista, segundo o próprio, onde ainda se experimenta a noção de comunidade local. Na sua personalizada mas consciente verdade, Gaika afirma-se como é e não como lhe seja dito deva ser, mas não ambiciona ser maior do que si mesmo - é o primeiro a afirmar que não pretende definir modelos e impor critérios; Gaika basta-se a si mesmo.
O passaporte de Gaika conta com carimbos de inúmeras viagens e, se for caso de lhe enviar correspondência, a sua residência, os lugares que o fizeram como artista, conta com vários endereços. Londres é a sua raíz, está-lhe gravada na pele, é o que sempre será. Por mais solitário, mas não desconfortável, que se sinta nela. Ela e a sua natureza agressora e inclemente são os gatilhos que o empurram a reflectir e a agir. Tão importantes para si quanto o desfile corruptor de automóveis, de restaurantes ou de lojas de luxo, são os últimos despojos da noite, as sarjetas, as paredes e as ruas da periferia do sul de Londres. Enquanto adolescente, os seus sets e os seus mash-ups já esgotam armazéns na cena rave e clubbing dessa zona da cidade – surpreendido: a música electrónica negra de um puto negro traz seguidores desde o centro de Londres até à periferia – e é nas primeiras luzes da manhã que encontra vestígios mobilizadores da sua esperança em resistência à futilidade opressora de que sente reféns aqueles com que se cruza, apressados em direcção a lado nenhum.
Em Manchester – cidade com um histórico de décadas a forjar alguma da mais relevante música inglesa e que continua a dar cartas com Gaika na linha da frente – enquanto estudante de engenharia, Gaika integra o colectivo Murkage – os álbuns “Of Mystics and Misfits” de 2014 e “SFSG” de 2013 são realmente notáveis, com evidentes diferenças sonoras par o trabalho a solo de Gaika –, continua a deixar um rasto abrasivo nas noites clubbing que o grupo agita e, aos vinte anos, enquanto colabora na gestão de um bar da cidade, não se queixa do bem forrado bolso financeiro. Mas vê-se subitamente enredado na teia do crime e da violência dos gangues. As suas raves começam a ser encerradas pelas autoridades, a BBC 1 bane em 2012 a faixa “Torches” do colectivo devido ao conteúdo lírico, a carteira recheada não lhe garante conseguir apanhar sequer um táxi e chega a envolver-se em episódios de violência, apesar de mais agredido do que agressor. A coisa está descontrolada e Gaika vê-se a resvalar no abismo – o pontapé na cabeça, literal, é o ponto final. Completamente determinado, abandona a engenharia para seguir os estudos em artes mas, acima de tudo, abandona o ambiente da noite e dos gangues. Solução pela metade, também nestes novos ambientes se sente algo deslocado. Mantêm-se as colaborações musicais onde sente que respira, não só no projecto Murkage mas também com o lançamento de um outro projecto colectivo, GREY, a cor quase permanente do céu da cidade. Manchester é uma mescla de sentimentos opostos para Gaika, mas é uma etapa incontornável na sua formação pessoal e artística.
Antes de regressar a Londres, os endereços e os períodos de residência do seu percurso passam ainda por Amsterdão e por Berlim. Berlim é ainda um destino de visita frequente, inspirado por nela encontrar as fronteiras continuamente elásticas e expansivas da criatividade e da arte. A estadia em Amsterdão precede e dá origem ao seu primeiro trabalho individual. A ruptura com a sua companheira e o fim dessa relação pessoal empurra-o a olhar para si mesmo, e o transtorno do que encontra no seu interior nessa espiral emocional desbloqueia um jacto criativo.
Mas Gaika não é um gajo normal. A sua mensagem vai mais longe do que a ausência de controlo e o medo sobre o dia em que a morte chega, mais longe do que o impulso obstinado em sobressair face aos outros antes de esse dia chegar, condição única e necessária para a existência humana, e das injustiças, das futilidades e dos consumismos em que se cai na busca por essa existência, ou mais longe do que os paraísos artificiais e momentâneos, esconderijos viciados para onde se foge das inseguranças. Para Gaika, isto já é a morte.
O curso dos episódios da sua vida fá-lo aperceber-se de como quer existir: para si mesmo, porque a sua existência no mundo torna-se muito mais verdadeira. As distâncias encurtadas por aviões e por cabos de internet ou os degraus sociais acessíveis por notoriedade e riqueza, tudo supérfluo, impedem uma outra viagem: a viagem dentro de cada um, da qual emerge algum tipo de visão sobre os desequilíbrios, as insensatezes, os disparates – as bestiais tretas – da sociedade. Unir pontos, tomar percepção. A viagem que permite reflectir, aperceber-se do mundo e da forma como se pode – e deve – intervir e interagir com esse mundo; a viagem que torna mais valioso e único o momento presente e o que se pode – e deve – fazer nele, face ao que já passou ou ao que há-de vir; a viagem que redirecciona prioridades, anula inseguranças, cria identidade própria e consciência colectiva. A viagem criativa inspirada no momento.
Sem pretender afastar-se um milímetro da rua, do passeio e da sarjeta, das dificuldades dessa realidade, pois é esse que para si é o mundo onde vive e onde quer existir, tudo para Gaika é uma afirmação de convicções e de políticas. Desde o que se come, onde se vai, o que se pensa, o que se diz e o que se faz. A sua música é o reflexo do que é, das suas convicções e das suas políticas. É a sua música que lhe oferece a oportunidade para as afirmar. E é na rua que quer fazer ouvir a sua música, sem se afastar das pessoas da rua, e sem se transformar num mero entertainer que, se preocupado com as playlists da radio, viola a sua arte e a sua política.
A música surge no caminho de Gaika meio por coincidência. Sim, ela já anda por perto desde há cinco anos, são os seus sets agitadores e incendiários nas noites de Londres e de Manchester, mas é uma coisa secundária, que se vai fazendo. O foco está nas artes visuais e no resgate dos gangues. No club em Manchester que ajuda a gerir, cuida da imagem gráfica e da promoção. Depois de varrer os últimos resistentes e de fechar a porta, e com a ajuda de uns valentes copos a altas horas, o freestyle ao microfone e algumas harmonias de sua autoria brotam e colhem reacções: “essa cena é muito à frente”. Incentivos vários para seguir em frente mas, para Gaika, só vale a pena se for feito de forma espontânea, natural e orgânica. Mantendo-se fiel a si mesmo, feito para si mesmo: quem venha a gostar, se alguém vier, logo se verá. Não passaram muitos meses (ou passaram, porque pouco tempo é sempre demasiado) depois de boas mãos terem trazido Gaika a uma privilegiada noite de música em Lisboa no final do ano passado.
Na ressaca emocional da ruptura pessoal em Amsterdão, ainda com a memória de quão próximo tinha chegado da auto-destruição ainda pouco tempo antes, anos desorientados sem rumo e carregados de dúvidas e questionamentos, regressa à sua base em Londres, com algumas idas e vindas a Manchester pelo meio, e enfia-se no estúdio: como uma máquina, dez dias produzem vinte e sete faixas gravadas. Surgem os álbuns “Machine” em Novembro de 2015 e “Security” em Maio de 2016 – uma espécie de renascer em que só Gaika regressa ao passado e começa a criar um futuro, mas apenas o presente lhe interessa.
A música de Gaika é uma purga autobiográfica. Na sua viagem interior, Gaika une vários pontos da sua vida. O seu pai é um técnico e cientista tecnológico. Na sala de estar enquanto cresce, Gaika entretém-se a desmontar máquinas, computadores e hardware: circuitos, processadores, bytes, bits, ficheiros e directórios, placas de memória e placas gráficas. É o espelho do cérebro humano: conhecimento e juízos catalogados em estereótipos sociais, armazenado em estruturas mentais de arquivos. A humanidade digital. Só não há experiência humana e vivência orgânica. E Gaika pergunta-se: porquê todos os comportamentos, códigos e definições da sociedade, e do cérebro? Ninguém pára para olhar e ver dentro de si mesmo e ao seu redor? Ninguém pensa por si mesmo? E, para recuperar a diversidade humana, volta a montar as peças, mas inventa novas formas de combinar e experimentar essas peças. É nesse momento que não volta a olhar com os mesmos olhos para os sem-abrigo que dormem ao abrigo de cada caixa multibanco ao lado das lojas de luxo; é nesse momento que não volta a olhar com os mesmos olhos para os actos violentos dos jovens de raça negra em afirmação da sua masculinidade e que, na realidade, escondem as fragilidades sociais de que são, por vezes, vítimas, por vezes, culpados, em ciclos viciados de violência gerada por violência que têm que ser quebrados começando por algum lado. É nessa altura que não volta a olhar com os mesmos olhos para as afirmações e ostentações materiais e de outras naturezas, fachada de conquistas, de confiança encenada, de vulnerabilidade mascarada. É nessa altura que não volta a olhar para a propaganda massificada que entende ter por fim apenas o controlo e a manipulação. E, pelo meio, ainda junta histórias de amor, de anseios, de desgosto e de compaixão.
Sem pretensiosismos, Gaika quer mudar o mundo à medida do seu alcance e da sua visão – postura assinalável de um artista. Não parece, pois opta e prefere a crueza dura da realidade à alegria encenada e tola, mas é um optimista, um idealista, um romântico, que espera conseguir quebrar os paradigmas na política e na arte da sua música. Na liberdade da sua auto-confiança conquistada, as suas letras afirmam-se independentes e descomprometidas, abordando temas como a discriminação, o racismo, o autoritarismo, a corrupção, a morte, o amor realizado e o armo desfeito – um grito de alerta genuíno, intransigente e expressivo face à sociedade actual e urbana, com um enorme peso social, político e emocional.
Entre “Machine” e “Security”, surgem os singles “The Villainous Theme”, contendo samples da faixa “Runway D” do álbum “Fashion Week” que os Death Grips, uma banda que admira, disponibilizaram on-line inesperadamente em 2014, e “Push More Weight”, na qual colabora com Mykki Blanco. Estas duas faixas, a par dos dois álbuns, são produzidos e editados sem editora. Gaika é independente e sente-se um marginal face à indústria, e assim quer permanecer.
Da mesma forma que, no seu conteúdo, a música de Gaika ocupa novos espaços (ou espaços antigos, mas cuja reocupação é urgente), musicalmente, Gaika não abdica da mesma liberdade – classificações, géneros, códigos e normas são-lhe inúteis, tudo o que abomina; o seu móbil é pegar no convencional, abaná-lo, mudá-lo de sítio, até que se torne inconvencional. Particularmente na música negra britânica, onde artistas como Tricky e FKA Twiggs, que destaca entre as suas referências. Não é de admirar que seja difícil situar a sua música, ela cria algo bastante singular, de facto. São evidentes as pegadas do UK Garage e das suas derivações posteriores para o grime britânico na estrutura rítmica downtempo das linhas de baixo de frequências muito baixas e pesadas e dos ritmos e outras sonoridades sintetizadas e futuristas, quebradas e duplicadas, parecem fora de tempo. São evidentes os samples rítmicos, instrumentais e o rapping vocal do hip-hop. O trip-hop britânico marca presença em discretos apontamentos instrumentais. As suas raízes familiares trazem o clima tradicional jamaicano do dancehall e do ragga mais digital em vocais melódicos e populares. É possível encontrar um pouco de dub, de r&b, e por aí fora. Enfim, tudo isto existe, tudo isto está intimamente ligado entre si. O segredo está na forma como se criam novas misturas, e é impossível à de Gaika passar despercebida, quer seja pela sua sonoridade, quer seja pela sua mensagem.
Gaika cria uma fórmula secreta e pessoal da música britânica contemporânea negra de rua e underground. Altamente conceptual no som e conteúdo lírico, a sua marca é personalizada na experimentação e combinação de camadas electrónicas inovadoras, progressivas e obscuras, criando numa atmosfera musical dissonante e minimalista. Cuidadosamente manufacturada, tão tensa, vigorosa e mecanizada quão orgânica, misteriosa e texturada, a música de Gaika é o espelho se si mesmo: estranho e memorável.
Tracklist Machine:
1. Enoch's Drone
2. Heco
3. Blasphemer
4. Nquika
5. Sodium
6. Acid Wares
7. Lick the Knife
8. Bohdy Knows at 90
9. G/R/E/Y
10. Hannah
Tracklist Security:
1. Security (feat. Fallacy and Gretz)
2. GKZ
3. Buta (feat. Serocee and Miss Red)
4. PMVD (feat. Mista Silva)
5. Knuckleduster (feat. Trigga)
6. Keith Richards
7. World Star (feat. Bipolar Sunshine)
8. Last Dance At The Baby Grand (feat. August+Us)
9. In Between
10. White Picket Fences (feat. 6Cib)