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O percurso de Bernardo Devlin é longo, prende-se aos anos 80 dos Osso Exótico, e estende-se até um singular presente a que tem imposto de forma discreta a sua criativa presença. Sic Transit é o mais recente capítulo dessa história, uma coleção densa de canções onde Devlin deixa claro que não está interessado em fazer concessões. Com o piano, dividido por Rita Braga e Luísa Gonçalves, a assumir um dramático protagonismo no desenho das sete canções de Sic Transit, é impossível não pensar no Mick Harvey que martelava o mesmo instrumento em “The Carny”, de Nick Cave e dos Bad Seeds. É dessa mesma densidade negra que se fazem estas canções, com Devlin a oferecer uma visão amarga da vida (ouça-se “A Nova Europa”) sobre uma tensa base instrumental, feita de musculadas linhas de baixo (com os Bauhaus também tão perto) e de melodias do tempo da cortina de ferro. Entrevista a Bernardo Devlin conduzida por Rui Miguel Abreu.
P: Falas em Sic Transit como um regresso, neste caso, e citando, a um “som mais orgânico e natural”. Os discos podem ser vistos como regressos ou partidas e até talvez como simples permanências. Ao teu quinto álbum, e olhando para a discografia a solo, como entendes sob esta perspetiva as tuas obras?
R: Em primeiro lugar, talvez deva referir que a minha relação com o trabalho passado é relativamente conflituosa. Um pouco menos agora, que tenho mais cuidado com a finalização dos projectos. No meu caso, aquilo que é subjacente à ideia de “álbum” adapta-se perfeitamente ao que se convenciona como ciclo de canções. O facto de ter uma visão cinematográfica e dramatúrgica das canções (e com isto não me refiro somente às minhas) faz com que goste de experimentar diferentes territórios. No meu disco anterior, Ágio, optei por um cenário no qual um som eletrónico fazia mais sentido. Mas dentro da eletrónica, eu diria que é muito orgânico.
P: Como é que se constrói uma discografia, que a solo tem quase já duas décadas, nas margens de uma indústria? Por acidente? Ou por desígnio?
R: Eu diria que, num plano mais alto, a indústria pode abranger casos como o meu. Poderá levar algum tempo, e não gostaria de parecer particularmente otimista a esse respeito.
P: Em 1991 trocaste os Osso Exótico por Berlim. O que é que te levou a escolher essa cidade em particular para viver? O clima artístico? O clima político?
R: Certamente que nutria algum romantismo em relação ao clima artístico, mas esses sentimentos tendem a dissipar-se na medida em nos afastamos do romance e nos aproximamos do real.
P: Regressaste a Lisboa em 1994, já depois da edição de World, Freehold. A mudança de país trouxe igualmente uma mudança de língua. Para alguém que tem querido explorar as margens mais remotas da canção, que desafios é que essa mudança acarretou?
R: Implicou alguma mudança de tática no que se refere à escrita de canções, e essas margens tornaram-se ainda mais remotas. Mas eu queria mesmo encontrar uma forma de o fazer, e em privado já o andava a ensaiar. Isto passou por várias fases, mas passei a ser mais refletido no uso das palavras. Não me refiro a um certo tipo de polimento. É mais pelo tempo que leva ponderar as implicações que uma decisão fonética pode gerar. Não tenho uma noção exata de como possa parecer de fora, mas vivo essas canções com intensidade.
P: Por volta da viragem do século - e do milénio - fizeste algum trabalho na área das bandas sonoras. A tua discografia a solo lida de forma muito direta com a ideia de liberdade e de fuga, e assim imagino que esse trabalho tenha obrigado a certos condicionalismos. Como é que a experiência de compor para animação, para séries de televisão, impactou o teu terceiro álbum Circa 1999 e trabalhos posteriores?
R: Pode ser interessante. Acho que a experiência me abriu os olhos para a importância das decisões imediatas. As coisas têm que ser feitas numa certa margem de tempo. Isso foi algo que passei a aplicar nos meus projetos. Impor uma margem temporal. O excesso de análise pode ser extremamente redutor em certos momentos. É claro que noutros é absolutamente essencial.
E sim, a fuga é algo presente em algumas das minhas canções. Atribuo-lhe uma certa dose de romanesco. Ao mesmo tempo implica o confronto com o desconhecido, e uma viagem...
P: Entre Circa 1999 e Ágio, uma outra “fuga” para o lado, com o trabalho desenvolvido com Andrew Poppy. Para quem se tinha até aí movido nos domínios do monólogo, como foi a adaptação às exigências do diálogo?
R: Como bem mencionaste atrás, eu estive no Osso Exótico, e na altura experimentámos quase até ao limite as possibilidades de dinâmicas internas dentro de um grupo. Esse questionar era parte da nossa identidade e, naturalmente, aqui só posso falar acerca do período em que lá estive. Em último recurso, é-me mais estimulante poder controlar a coisa do princípio ao fim. Recentemente, aprendi a confiar mais. Sobretudo a nível dos aspectos mais técnicos do som.
No caso do projecto com o Andrew, foi talvez a primeira vez em que percebi que a coautoria nem sempre significa uma espécie de obstáculo. Penso que isso se deve ao facto de ter já algum trabalho feito em meu nome. Foi um processo faseado e as coisas decorreram de modo basicamente harmonioso. Quando se colabora, há sempre compromissos, não confundir com concessões, e isso pode ser interessante. Algumas das melhores coisas que fiz estão lá, e não são só da minha autoria. Por ambos termos projetos a andar, a coisa parou durante uns tempos.
P: A eletrónica foi o cenário escolhido para Ágio, o álbum que precede Sic Transit. Tendo em conta que um dos trabalhos anteriores tinha resultado de uma sessão única numa igreja de Oeiras em regime acústico, Ágio pode ser visto como outro extremo?
R: Sim. Não sei se diria “extremo”. Pelo facto de ter sido gravado numa igreja, por opções exclusivamente acústicas, esse álbum, Albedo, ganhou uma conotação bem diferente do que eu pretendia. E, de certa forma, nem o considero acabado - é o que foi possível no momento. Mas se eu tiver um template natural, esse não será muito diferente da ideia por detrás desse tipo de forma, uma coisa mais acústica. Eu sei que hei de lá voltar.
No caso do Ágio quis gerar o efeito de espaço e luz artificial, por isso adotei um tipo de som que normalmente não usaria, com sintetizadores e sequenciadores - de resto, há bastante guitarra, theremin numa música, a bateria e a percussão foram gravadas em tempo real. Mas com isso fiz um trabalho ao qual me considero intimamente ligado. Talvez mais do que a qualquer outro. E ainda sei porque assumi essa opção e esse tipo de ambiente.
Gostaria sinceramente de um dia poder rever todo o trabalho que está para trás. Não necessariamente para limpar ou subir o volume (como é pratica hoje em dia), mas para o aproximar mais da ideia inicial. A esse nível, Sic Transit está numa zona mais interessante. Para já, não me ocorre nada que queira alterar.
P: Entre Ágio e Sic Transit, trabalhaste numa ópera de Andrew Poppy. Como foi vestir a pele de Henry Fortune? Algo de muito diferente das peles que vais vestindo para as tuas próprias canções?
R: O Andrew deu-me alguma margem de manobra nessa abordagem, mas também me escolheu para o efeito. Acho que com ele existe uma cumplicidade que torna fácil esse tipo de experiência. Ele já me conhece bem, e vice-versa.
P: Referes um elemento automático na escrita das tuas letras, explicando mesmo que por vezes até optas por tentar escrever com a esquerda apesar de seres destro. Questionas-te sobre o local de onde vêm as palavras, as ideias, as melodias?
R: Não, não de todo... Mas acho que vêm um pouco de todo o lado.
P: O teu site está escrito em inglês. És um artista com um olhar mais voltado para fora do que para dentro?
R: Sim, até porque não me parece haver outra hipótese. O mundo não acaba aqui.
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Site oficial: www.bernardodevlin.com
Bandcamp: www.bernardodevlin.bandcamp.com
Álbum: Sic Transit