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Não é uma fuga. É uma experimentação, uma descoberta. De coisas que temos mas não nos apercebemos que temos, ou de coisas que não temos mas descobrimos, e passamos a ter. Num enquadramento acrescentado, seria interessante juntarmos uma parafernália de ventosas, de cabos, de processadores e de displays, e vermos o mapa da quantidade e da diversidade de luzinhas fixas e intermitentes que são acesas no nosso cérebro em resultado das descargas eléctricas provocadas cá dentro. Ou seria interessante desenharmos a mancha das substâncias químicas, daquelas acabadas em “ina”, que o cérebro produz. Mas, carreguemos no play e fiquemos connosco próprios. Fiquemo-nos pela sensação, pela percepção. As que resultam da experiência sensorial.
Se somos aquilo que dizemos, que cremos, que sentimos e que fazemos, se o que somos é criado na nossa mente pelas nossas reflexões, se as nossas reflexões são provocadas pelo que experimentamos, então o que somos será, em grande parte, resultado das experiências sensoriais acumuladas. Das impressões dos sentidos. Por exemplo, aquelas experimentadas ao carregar no play - um processo cognitivo desencadeado pela experiência artística.
E, ao carregar no play, nessa experiência sensorial, podemos ficar em terra, ou com água pela cintura mas pé firme assente no chão. Que reflexões iremos extrair dessas sensações que não alargam o que dizemos, o que cremos, o que sentimos e o que fazemos? Certamente o desfrute continuado e repetido do que somos. O que não é de menos, e de que não há razão para desvalorizar ou de que fugir.
Mas temos aquela nossa característica: a curiosidade. Podemo-nos provocar e experimentar fora de pé, fora do chão firme. Para ver o que dá. Sem fugir a nada, mas acrescentando algo mais.
A experiência de novas impressões dos sentidos que conduzem a novas sensações, e a alterações da nossa percepção. Algo em que mergulhemos e em que nos percamos. Algo absolutamente realista, mas de realismos novos e diferentes. Realidades que parecem distantes mas estão prontas a ser descobertas. Algo meio encoberto e turvo, meio desviado e oblíquo. Algo desconhecido em que nos aventuremos e em que nos deixemos perder, empurrados pela curiosidade e pela imaginação para lá das restrições, das convicções ou das inibições prévias e familiares. Para lá do conforto. Um mundo interior desconhecido, tantas vezes cativante e convidativo quanto intimidante e arriscado, que nos altere e nos transporte para além do chão firme ou da terra seca mas no qual, uma vez chegados, uma vez percepcionados, uma vez reflectidos, nos sintamos seguros em terrenos novos e amplificados.
É neste acto de experiência artística que funde realidade, memória e imaginação, nesta porta que explora a relação entre o objecto artístico e o experimentador desse objeto e que abre estas novas dimensões, tornada ainda mais interessante porque a cada experimentador corresponde uma porta distinta para experiências distintas que desvendam dimensões distintas, que o duo franco-britânico patten se coloca com o conjunto dos seus três LP’s, encimado pelo álbum “Ψ” lançado em 16 de Setembro pela britânica Warp Records, lendária neste universo musical de experimentalismo electrónico. No trinómio pessoa criativa, processo criativo e produto criativo, é o produto que patten mais privilegiam: “The way something feels is more important than how it’s made”; ou também “The idea of openness, and finding ways to push through into interesting creative spaces, has always been a core part of what the project is and what we’re trying to do. We want to make things that invite a way of looking at things differently”; ou ainda “When you think about what music is, what is it? Is it the stuff – data? Is it what happens when the pianist plays a note; or is it the vibration of bones in people’s ears; or the way they think about music when they hear it? Or is it the memory, what the music evokes when it is no longer there?”
O duo visionário e de olhos sempre postos no caminho futuro formado pelo londrino D e pela parisiense A – misteriosos, não se fazem conhecer por outra forma que não estas maiúsculas – posiciona-se na linha da frente do experimentalismo e da inovação da música electrónica. Descartando-se de excessos desnecessários e inúteis, e apesar das múltiplas influências que se fazem sentir, patten conseguem paradoxalmente esculpir um volume sonoro coeso e consistente cuja substância está nos abundantes e distintos pequenos detalhes que meticulosamente recortam e colam, que retalham e cosem – um temperamento peculiar e personalizado que aumenta a imersão da experiência sensorial a patamares mais profundos. Em “Ψ”, tal como em trabalhos anteriores, o duo continua a apresentar um minimalismo conceptual e abstracto que desconstrói as normas e géneros musicais muito ao estilo da experimentação individual da IDM que vai absorver sonoridades ao industrial, ao glitch, ao bassline, ao techno mas também ao r&b e o pop actual. Numa ode à música electrónica, o resultado enigmático funde timbres rítmicos aleatórios, percussões metálicas erráticas e samplers atonais que parecem desordenados com o beat padrão de drum-machines numa miscelânea rítmica bem conseguida que sustenta e abre espaços amplos para a evolução suave e macia de melodias de teclados sintetizados, uns apontamentos orquestrados que surgem esporádicos e, acima de tudo, os vocais quase sempre desempenhados por A, novidade em “Ψ” pois este é o primeiro trabalho de patten em que A participa, e quase novidade por inteiro em patten, já que, nos dois LP’s anteriores, são raras as ocasiões em que D usa a sua voz. Os vocais de A trazem um ínfimo vislumbre mais humano e convencional, mas é um distante vislumbre – perturbadora e inquietante, a voz é muitas vezes deformada e distorcida, persistente no seu tom uniforme e invariável em círculos elípticos, colocada de forma fragmentada sobre a música quase transformando-se em spoken-word de percepção difícil ou impossível, e apenas o recurso ao conteúdo impresso que o álbum traz permite entender a temática que incide nas questões, receios e dúvidas associadas à descoberta pessoal.
Se “Ψ” corresponde a um marco no percurso de patten devido à reunião de D e A, esse marco é muito mais realçado pela pluralidade do projecto.
Por um lado, “Ψ” assume um carácter de diálogo entre o duo e o seu público: as faixas que compõem o álbum foram previamente exibidas em inúmeras live-performances nas quais o duo foi testando e experimentando pequenas variações – um hi-hat com timbre mais metálico, um beat com volume mais alto, uma melodia com textura mais macia, mais sample menos sample. Tudo gera uma acção-reacção com o público. Um par de cientistas no seu laboratório experimental variando as misturas dos componentes nos seus tubos de ensaio em tempo real. E o regresso ao estúdio, tomando depois decisões entre ambos para produzir o resultado final. A dicotomia estúdio vs performance, composição vs improvisação. A dicotomia à qual, para patten, se sobrepõe a relevância da experiência própria e a experiência do público; novamente: “The way something feels is more important than how it’s made”. O resultado é que o álbum funciona tão bem em plena pista de dança por debaixo de um sound-system à séria como em casa com um par de belos headphones que faça jus à sofisticação musical de “Ψ”.
Mas, acima de tudo, a experiência sensorial associada a “Ψ” que patten pretendem assume um carácter sinestésico, neste caso: patten não se limitam a servir música para os ouvidos. Já foram promovidas performances, e muitas mais estão previstas, em que bem mais que a experiência sensorial auditiva é activada. As live-performances planeadas englobam toda uma experiência de som, luz e imagem trazida por projecções de imagem, projecções 3d, iluminação, programação, objectos expostos, DJing, música ao vivo e o que mais lhes saia da cartola. Um convite a olhar para as coisas de forma diferente – a forma como cada um deles, e de nós, está em constante mudança, tal como as coisas que nos rodeiam. Um convite para uma nova experiência dos sentidos, para novas reflexões e para novas percepções das coisas. O projecto resulta do colectivo artístico 555-5555 que patten criaram e integram juntamente com artistas de outras formas de expressão e onde vão buscar esta pluralidade. O objectivo é invocar tantas emoções cruas, primárias, primitivas, pré-linguísticas, quanto o possível. Ir ao âmago. Uma performance mimética dos tempos modernos, diríamos.
patten recusam a inércia e a cristalização artísticas e o seu percurso anterior demonstra-o. “GLAQJO XAACSSO”, datado de 2011 e anterior à relação de patten com a Warp, conduz a abstracção conceptual electrónica para um atraente ambiente paralelo e surreal de delírios tão fluidos e orgânicos quão alucinatórios e estonteantes. “GLAQJO XAACSSO” é uma dimensão paralela e imaterial que, podendo parecer asfixiante e enclausurante, é afinal ampla e espaçosa. “Estoile Naiant”, de 2014 e já com o selo da Warp apostado aponta numa direcção mais programada, mais complexizada, mais mecanizada, de certa forma diminuindo alguns dos prazeres extraídos e trazidos pelo trabalho de 2011.
Em “Ψ”, patten voltam a acertar no alvo, ainda mais certeiros que em 2011. O seu ímpeto experimental e inovador mantém-se, o objectivo continua a ser a nova experiência que conduz a novo pensamento e a novo conhecimento. Mas o foco está agora mais refinado: as faixas estão menos cheias de tudo o que não é necessário. Entre o imediatismo das melodias e dos ritmos mais padronizados que cativam no primeiro contacto e as texturas e camadas sonoras que apenas se vão descobrindo pouco a pouco, tudo está mais sucinto e deixa mais espaço para que a experiência individual evolua, tão variada quão variado o espectro de experimentadores que se aventurem num álbum futurista e personalizado, tão simples quão complexo, que só se revela e se dá após nós próprios nos darmos a ele, mas que nos compensa por isso.
Tracklist:
1. Locq
2. Sonne
3. Dialler
4. Used 2 B
5. True Hold
6. Pixação
7. Blade
8. Epsilon
9. The Opaque
10. Cache
11. Yyang
12. 51-61-6