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ARTES PERFORMATIVAS


SAMOTRACIAS: ENTREVISTA A CAROLINA SANTOS, LETÍCIA BLANC E ULIMA ORTIZ

LIZ VAHIA, CAROLINA SANTOS, LETÍCIA BLANC E ULIMA ORTIZ

2022-11-06



 

 

© João Catarino

 

“Canto de sobrevivência, manifesto de uma horda em movimento, SAMOTRACIAS é o grito de três mulheres que se agarram à sua ânsia de emigrar.” É assim que começa a sinopse do espectáculo “SAMOTRACIAS”, que estará a 12 e 13 de Novembro no Teatro Ibérico, em Lisboa, depois de ter estreado em Loulé e ter passado por Lagoa e Faro.

Com direcção artística de Carolina Santos, em co-criação com Letícia Blanc e Ulima Ortiz, o novo espectáculo da Mákina de Cena partiu da obra da escritora francesa Nicole Caligaris,“Les Samothraces”, e propõe-se explorar a “difícil e obscura relação entre género e migração”. O projecto integra também material resultante de múltiplas entrevistas a mulheres migrantes, residentes no Algarve.

A Artecapital teve a oportunidade de conversar com as três atrizes, de diferentes nacionalidades, que dão verdadeiramente corpo e movimento a esta viagem teatral que pretende mostrar tantas viagens que não vemos.


 

Por Liz Vahia, com Carolina Santos, Letícia Blanc e Ulima Ortiz


:::


Como foi a passagem das 3 mulheres do livro “Les Samothraces” (2000), da escritora francesa Nicole Caligaris, para as 3 personagens da vossa peça? O que é que a escritora aportou para a criação das vossas mulheres migrantes?

Na verdade, o espectáculo surge quase inteiramente da récita de Nicole Caligaris.
A vontade de criar algo desta natureza veio assim que lemos o livro pela primeira vez. As 3 mulheres aparecem no texto como sendo a voz de um coro anónimo de migrantes e, de certo modo, como personagens-tipo de diferentes migrações.
Quando o processo começou, estávamos a tentar descortinar quem elas poderiam ser, porque o texto, apesar de não apresentar um tema novo e tentar ser geograficamente neutro, remete-nos para situações-limite a que, muito honestamente, na nossa condição de europeias brancas, nunca fomos sujeitas.
Foi só mais a meio do projecto, e já depois de termos decidido entrevistar mulheres migrantes, num sentido verdadeiramente abrangente do termo, que percebemos que teríamos de “des-universalizar” as personagens. Para o espectáculo funcionar, teríamos de desenvolver a história de cada uma, criar-lhes um passado, e fazer com que o público empatizasse com elas. Aí, a Sambre passou a ser Sandra, que falava só em português, a Sissi passou a ser uma jovem francófona vinda de um quarteirão problemático que procura fazer a sua música (e salvar o seu futuro) noutro país, e Pépita passou a Pepita, com inspiração assumida na América Latina.


 

© João Catarino

 


Já tinham trabalhado antes numa criação colectiva? É mais gratificante o vosso trabalho como actrizes derivar de um processo de trabalho colectivo?


No nosso percurso temos uma mão cheia de criações colectivas! (risos) 
A escola onde nos conhecemos (Carolina e Ulima), a École Jacques Lecoq em Paris, potencia a ideia de um actor-criador, com ferramentas físicas e interpretativas que lhe permitem trabalhar em colaboração e não apenas ser dirigidos pela figura de um encenador ou director de actores. Claro que é processo com mais questionamentos e talvez mais demorado, porque são várias cabeças a pensar e a decidir em conjunto, mas o resultado é de uma entrega e generosidade inquestionáveis. 
Já para a Letícia foi a primeira co-criação… e podemos dizer que “primeiro estranha-se, depois entranha-se…!”.


Como é que, tendo todas uma proveniência bastante distinta, se encontraram a trabalhar neste projecto? 


Então, como dissemos antes, nós as duas (Carolina e Ulima) conhecemo-nos na Lecoq, em Paris, no curso profissional 2015-17. Trabalhámos num outro projecto depois, e ficou sempre a vontade de fazermos mais coisas juntas. Somos bastante complementares, queremos sempre que o trabalho se eleve ao seu expoente máximo, e isso resulta em algo que defendemos com unhas e dentes.
A Letícia fez parte de uma performance que fizemos juntamente com outras mulheres, no Festival F, em 2019, dirigida por João de Brito, e a química também foi imediata.
Quando se partiu para esta aventura, sabíamos de antemão que o espectáculo seria trilíngue, porque o desafio da comunicação e da compreensão do outro estão na primeira linha de todas as migrações, e essa foi a principal razão (aliada ao facto de todas termos apetências para um teatro mais físico) para se compor este trio de diferentes nacionalidades. 
Eu, Carolina, sou portuguesa, mas vivi cinco anos em França.
Eu, Letícia, sou luso-suíça, filha de mãe portuguesa, que em determinado momento da sua vida emigrou para a Suíça, e pai suíço.
Eu, Ulima, sou franco-colombiana, filha de mãe francesa e pai colombiano, e vivi a maior parte da minha vida na Colômbia.

 

© João Catarino

 


Recolheram testemunhos de mulheres migrantes no Algarve. Como localizaram essas mulheres? Elas já tiveram oportunidade de ver o espectáculo?

Houve dois processos distintos.
Por um lado, fizemos uma “open-call” para mulheres migrantes que quisessem partilhar connosco as suas histórias. O resultado foi mesmo muito interessante, porque abrangia diversas realidades sócio-económicas e percebemos que a migração também funciona por camadas…cada geração herda algo da precedente. 
Por outro, o ACM - Alto Comissariado para as Migrações colocou-nos em contacto com o CNAIM de Faro, que, por sua vez, nos indicou várias mulheres que aceitariam falar connosco sobre a sua viagem. Também contámos com o apoio da Fundação António Aleixo de Quarteira, e da Casulo - Incubadora de Inovação Social de Loulé, que nos apresentou a pessoas de várias nacionalidades num dos seus lanches-convívio multiculturais.
A partir daqui, foi uma evolução orgânica, o boca-a-boca também ajudou muito e, quase sem nos apercebermos, chegámos a falar com pessoas que pertenciam à mesma família, mas com origens e histórias completamente diferentes. Creio que ultrapassámos as duas dezenas de testemunhos.
Desta recolha resultou “Samotracias Vozes”, um registo documental muito poético, realizado por João Catarino, com excertos de entrevistas que fizemos a 14 mulheres.
E sim, de todas elas, apenas uma ainda não conseguiu ver o espectáculo.

 

© João Catarino

 


Parece-vos que relacionar a história dessas mulheres migrantes e o percurso da estátua Vitória de Samotrácia é um ponto de partida frutuoso? Também a estátua viajou fragmentada, foi-se montando, pedaço a pedaço, tendo que reconstruir-se nalgumas partes. Às vezes as “vitórias” demoram muito tempo a concretizar-se, mas isso não impede a vontade de partir. O que acham?

A relação não foi feita por nós, na verdade… Ela está implícita no título da obra de Nicole Caligaris, e nós optámos por guardá-la, porque, de facto, nos parece uma imagem muito justa. Há, sobretudo, a ideia de anonimato. De quem se reconstrói sim, mas perde em grande parte a sua identidade.
A obrigação de partir ou direito de partir? Por sobrevivência, pela necessidade de um futuro melhor para os seus, ou pelo desejo em ter a vida que se merece?
Nesta narrativa, há, em cada acto, a reinvenção de uma das personagens, em que percebemos o que quebrou e o que esperavam para a sua vida. O que acontece ao longo da viagem é, ao mesmo tempo, concreto e simbólico, porque deixa antever questões muito maiores do que o espaço que está a ser habitado em palco.
Este tema, o da migração no feminino, é muito vasto, e está (quase) tudo por dizer.

 

 

:::

 

Sobre as actrizes

 

© João Catarino


 

Carolina Santos
Directora artística da MdC Teatro / Mákina de Cena - Associação Cultural, coordena o Clube de Leitura Teatral de Loulé e as Oficinas de Teatro da Mákina. Criadora de formação multidisciplinar — licenciada em Arquitectura (FCTUC, Universidade de Coimbra, 2008), com Mestrado em Teatro (ramo Arte do Actor, Universidade de Évora, 2013) e formação especializada em Teatro Físico (École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq, Paris, 2015/ 2017) —, conta com diversas intervenções e colaborações enquanto intérprete, cenógrafa e formadora em estruturas nacionais e internacionais, com destaque para a Cia. Philippe Genty, onde integrou a digressão de 3 anos (2012/15) pela Europa e Ásia do espectáculo “Ne m’oublie pas / Forget me not”; a Cia. Plexus Polaire, e La Possible Échappée, onde orientou formações de marionetes e movimento para jovens e adultos com necessidades especiais. Membro fundador da First Round - International Creative Platform, participa em vários projetos internacionais de Teatro Físico (Chelou Theatre, L’Esquisse, entre outros). Sedeada no Algarve desde 2018, integrou a equipa de produção da DeVIR | CAPa - Centro de Artes Performativas do Algarve e dirigiu formações e criações teatrais em parceria com estruturais locais (tais como a Casa da Cultura de Loulé, Folha de Medronho), com destaque para o Curso de Formação de Actores da UALG 2019/ 2020 (em parceria com o Teatro das Figuras). Encenou e interpretou “O Relatório da Coisa” e “Encanecer” (2019, com apoio da Fundação GDA), criou as vídeo-performances “20:20 Psicose” e “Canto a Whitman” (2020), e dirigiu “Dois perdidos no horror elíptico da modernidade” (2020). Em Outubro de 2021 estreou, no Cineteatro Louletano, “Tive 1 ideia para 1 dueto”, em co-criação com Susana Nunes, (projecto financiado pela DGArtes e pelo Município de Loulé).

 

Ulima Ortiz
Actriz colombiana de raízes francesas e formada em Arte Dramática pelo Teatro Libre de Bogotá, em 2006, Ulima é uma artista versátil, poliglota, que alterna o teatro clássico com o teatro físico, o clown, a máscara e o grotesco.
Inicia o seu percurso profissional na Casa del Silencio, dirigida por Carlos Agudelo — pioneiro do mimo corporal e dramático na Colômbia—, Quinta Picota, e na companhia de teatro clássico Teatro Libre. Em 2015, especializa-se em Teatro Físico, ao integrar a formação profissional da École de théâtre internationale Jacques Lecoq, em Paris, e cria, com antigos alunos da escola, The Klump Company e First Round – International Creative Platform.
Entre 2017 e 2019, participa em várias residências e festivais em Inglaterra, Portugal, Colômbia e França. Integra as criações “L’Esquisse” (Cie AjaGato), “Family Blimp” (Cie Klump Company), “ClaudelKahloWoolf” (Cie HorizontalVertical) e “Pourquoi les vieux qui n’ont rien à faire, traversent-ils au feu rouge?” (Collectif 2222).

 

Letícia Blanc
Jovem actriz de ascendência suíça com cunho visível sobre o trabalho de corpo. Além de coleccionar formações nas mais diversas disciplinas das artes performativas, tirou o curso profissional de Artes do Espectáculo como intérprete, em Faro, e mudou-se para Lisboa para se licenciar como actriz pela Escola Superior de Teatro e Cinema.
Viveu na República Checa no contexto do programa Erasmus +, onde aprofundou conhecimentos de manipulação de marionetas e teatro físico na DAMU School of Performing Arts of Prague (2017), estagiou na Cie Isaurel em França (2019) como actriz, bailarina e trapezista e, desde então, desenvolve trabalhos como assistente de encenação (ACTA - 2018) e actriz (LAMA Teatro - 2019; Cultural Kids - 2020; Meninos da Graça - 2021) entre Lisboa e o Algarve.
Também ao abrigo do programa Erasmus +, integrou o projecto GROW (Melissa, Itália) com a companhia Teatro Ebasko, para desenvolver um espectáculo com base em teatro físico (2021).

 

 




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