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© Rodrigo Miragaia
“A ideia de liberdade é inspiradora.
Mas o que significa?
Se você é livre em um sentido político mas não tem comida, que liberdade é essa?
A liberdade de morrer de fome?”
(Angela Davis)
STBY – Meta-tempo e Liberdade
(Impressões hereges sobre um ensaio inspirador [1])
No contexto da arte contemporânea, a produção dos corpos e a influência do tempo sobre as corporeidades emergem como temas centrais que refletem e desafiam as complexidades dos processos sociais e das lutas enfrentadas na atualidade do mundo. É nesse contexto que STBY de Rodrigo Miragaia surge como um elo entre proposições, como uma resposta artística a um amálgama de conceitos que estão na ordem do dia quando nos dispomos a pensar os meios, os procedimentos e as implicações das ações artísticas na atualidade.
Programado para ocupar a cena na Casa do Comum, Bairro Alto, Lisboa, dia 28 de fevereiro às 19h30, o trabalho nasceu do confronto entre dois enunciados, um elaborado por Dziga Vertov e outro, por Nam June Paik [2]; vem sendo erigido sobre um tríptico de ideias (a multiplicidade formal do tempo, o evento racial e a continuidade da luta dos que não têm a paz por escolha) e caminha de mãos dadas com o conceito de "cross-temporal liveness" de Rebecca Schneider, com a noção de "programa" de Eleonora Fabião, e com as propostas de André Lepecki acerca das "temporalidades não lineares", dos "tempos incorporados", das "políticas do tempo" e do "não tempo da luta".
A ação idealizada por Rodrigo, e que conta com a colaboração de outros 5 artistas (Carolina Miragaia, Carolina Soares, Gonçalo Cabaça, Ronaldo Januário e Rui Rodrigues), propõe a composição de um ambiente imersivo, conseguido através de uma intervenção que combina um constructo sonoro a um objeto escultórico, esta instalação, feita de vidro acrílico, delimita a área de jogo para os instrumentos e a música, interfere na relação das pessoas com o espaço da cave da Casa do Comum e serve como tela de projeção sobre a qual serão manipulados em tempo real, vídeos e gráficos 3D. Através dessa conjugação de elementos espera-se que ao longo de aproximadamente 40 minutos, artistas e público partilhem uma experiência de interação direta que lhes permita desintegrar as noções convencionais de imagem e música através de uma fusão estética que mescla o retro lo-fi com as reflexões contemporâneas sobre tempo e liberdade.
A sigla STBY é um acrônimo de Stand By, expressão apresentada por muitos dispositivos eletrônicos quando, em modo de pausa, aguardam a ação do utilizador. No trabalho proposto por Miragaia, a expressão remete a uma suspensão, à interrupção da ação ou do movimento, num ato de recusa ao fluxo convencional do tempo tal como o conhecemos, “enraizado em uma tradição ocidental elitista, xenófoba e altamente predatória” (Miragaia, 2024), e, assim, a obra apresenta-se como um ato de resistência às invenções temporais moldadas pelo tecnocapitalismo. No que concerne à dimensão política do tempo na performance, o trabalho suscita questões sobre como os corpos são produzidos em meio às lutas em curso e afirma-se, ele próprio, como uma corporeidade que desafia processos sociais em constante transmutação.
Em alternativa a este "modus operandi do tempo", Miragaia nos convida a vivenciar um meta-tempo, alinhado com o cosmos, com os ritmos naturais e com o que o grupo considera a essência da arte. Assim, ao desafiar esteticamente normas pré-estabelecidas e incorporar uma abordagem anticolonial no trato com o tempo, STBY destaca como a arte pode ser um veículo para questionar narrativas hegemônicas e deste modo encontra ressonância nas discussões sobre as políticas de tempo e resistência propostas por Lepecki e Schneider.
© Rodrigo Miragaia
A criação se desdobra em seis momentos: STBY, MIRROR, INTERNAL MEMORY, TIME ZONE, 3D NOISE REDUCTION e LONG TIME RECORDING. Inspirados nas funções de câmeras de vídeo e de dispositivos eletrônicos, esses momentos adquirem na cena significados poéticos intimamente conectados aos pensamentos de artistas e filósofos, a partir dos quais se molda a orquestração conceitual das imagens e do som.
Com a realização de STBY, este coletivo de artistas nos incita a manipular ativamente o tempo, num desafio contundente às normas da convenção temporal e, com o intuito de realizar uma investida artística que transcende os limites tradicionais e aponta para reflexões sobre a liberdade do tempo na arte (e nas diversas formas de vida), apresenta-nos esboços de temporalidades não lineares e protótipos de um tempo incorporado.
O propósito de STBY é ser uma obra aberta em amplo espectro, capaz de adaptar-se a diversas temáticas e de acolher demandas de naturezas variadas. Nesse contexto, desafios e deslocamentos territoriais, por exemplo, têm o potencial de convergir em sua narrativa. Questões contemporâneas, como as restrições de mobilidade e o direito à vida, postos em causa pela necropolítica vigente, convertem-se, assim, em argumentos múltiplos. Esta vocação latente poderá transformar as abordagens temáticas da performance em uma plataforma que representa artisticamente os desafios enfrentados por populações inteiras num mundo cada vez mais subjugado e em constante metamorfose.
Rodrigo Miragaia descreve STBY como um projeto em obstinada transformação. Utilizando figuras e sons que espelham os múltiplos reflexos humanos presentes na instalação, o desejo do artista é promover a desintegração da imagem, e assim refletir sobre as mudanças contínuas na nossa percepção do tempo. Ele aponta, ainda, que o projeto desafia as fronteiras entre "erro" e "beleza" ao afirmar que ambas são facetas complementares nos âmbitos tecnológico e sociológico.
© Rodrigo Miragaia
Ao considerarmos o que este coletivo ambiciona quando promove este ato de natureza híbrida (um amálgama de música ao vivo, captura e manipulação presencial de vídeo, estruturas performativas e instalação) deparamo-nos com uma radical transversalidade em diálogo direto com diversas formas e expressão artística. Mas, para além disso, confrontamo-nos especialmente com a urgência de ações que demandam execução imediata nos campos ético e social. E é neste ponto que o trabalho assemelha-se aos programas de Eleonora Fabião, pois carrega consigo a gravidade imperiosa do aqui e agora. Uma premência que se revisita e se reafirma na análise crítica do corpo produto/produzido/produção das artes e na percepção do próprio corpo enquanto artista em meio às lutas, aos deslocamentos territoriais e às perspectivas anticoloniais na arte contemporânea. Tal abordagem indica uma compreensão aprofundada e dolorosa de como os corpos, submetidos ao jugo de um tempo imposto, são moldados, representados e desafiados no celeiro das artes.
À luz da apresentação iminente, acredito que STBY poderá constituir um contributo notável e inspirador para o nosso hoje, uma articulada e enriquecedora proposta de diálogo sobre as interseções entre arte, tempo e resistência. Oxalá, assim o seja, “bamos a berê”…
Andrezza Alves
Doutoranda em Artes Performativas e da Imagem em Movimento (UL), Mestra em Criação Artística Contemporânea (UA) e Licenciada em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas (UFPE). Artista, pesquisadora, arte-educadora e produtora com atividade ininterrupta em criação, ensino, produção e pesquisa nas artes performativas desde 1996. Seu mais recente trabalho é Meet me at the Bench: https://ligna.app uma colaboração com o LIGNA, coletivo Alemão que articula performers, não artistas, multimédia e ocupação de espaços públicos para realizar criações em arte urbana. Atualmente colabora com a Questão de Crítica (revista eletrônica de crítica e estudos teatrais), é co-criadora da pesquisa Práticas Desejantes e do projeto É TUDO MENTIRA! (acolhido pelo CPCS/Porto), é co-idealizadora e co-produtora de RÉ.MEDÉIA (apoio DGARTES e IBERESCENA). No âmbito acadêmico é bolseira de doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT 2023.02709.BD), investiga a prática da Desmontagem e desenvolve o conceito de Ciência de Artista sob orientação da Profa. Dra. Maria João Brilhante.
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Notas
[1] Fui convidada pelo grupo para assistir um ensaio, em Almada, no sábado dia 23 de fevereiro de 2024.
[2] De o cinema ser o “negativo do tempo” (Vertov) e de o vídeo ser, “essencialmente, tempo” (Paik).
STBY
Dia 28 fevereiro (quarta-feira), 2024, 19h30
Casa do Comum, Rua da Rosa, nº 285, Lisboa
Duração: aprox. 45 min.
Entrada livre
Rodrigo Miragaia vive e trabalha entre Lisboa e Almada. Licenciado em Artes Visuais (Pintura) pela FBAUL, atualmente desenvolve tese de doutoramento em Multimédia (FBAUL) com orientação da Profa. Dra. Maria João Gamito. Tendo experienciado a transição dos vários sistemas analógicos para o digital, desenvolve metodologias combinadas para questionar a relação dos media com o tempo e o espaço, bem como a sua participação para a construção de uma memória desvanecente. Desde 1992 participou activamente em vários projetos como a companhia de teatro O Olho (Almada), a Galeria ZDB (Lisboa) e a revista BigOde (poesia e imagem). O seu trabalho visual multidisciplinar tem sido apresentado em exposições, instalações e performances teatrais em espaços alternativos, associações culturais e projetos editoriais. Interessa-se pelas falhas, interferências e interrupções dos processos básicos de comunicação identificando-se, assim, nos princípios inerentes ao movimento da Glitch Art, uma tendência que explora o erro, o ruído e a deterioração da imagem como forma de conhecimento. O trabalho colaborativo tem sido uma constante ao longo destes anos, com interesse nas pessoas, nos seus estados psíquicos mais profundos, nos seus sonhos e nas questões acerca do conceito de liberdade.