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SOBRE-QUALIFICAÇÃO E REBUSCO
JOAQUIM MORENO
[texto da comunicação realizada a 10 de Novembro de 2012 na primeira edição da CPAM – Concentração Portuguesa de Arquitectos em Mação – www.cpam2012.blogspot.pt]
O inimigo que me tocou combater era um duplo insulto: a sobre-qualificação. Se falas da questão relativamente aos outros, é sobranceiro e arrogante. Se falas porque devias saber do assunto, tens que reflectir sobre uma forma de incompetência que deu muito trabalho a conquistar, para a qual trabalhaste muito – o que deixa o orador na chamada posição de merda. Trabalhei muito para ser incompetente por excesso, deu-me muito trabalho perder competência. Recapitulando, achei que me convidaram para estar algures entre o arrogante e o idiota. Muito obrigado. Mas depois de escrever esta introdução achei que podia fazer outra coisa com este convite. Podia fazer uma coisa que os papa-livros, os que trabalharam muito para se tornarem incompetentes fazem: achei que podia levar uma ideia a dar um passeio e assim contribuir para um re-imaginar do presente, para pensar a transformação para que ela possa acontecer.
Passei a maior parte da década passada à procura de ligações materiais e substantivas entre o discurso e a cidade, ligações entre as páginas publicadas e o espaço público; procurando momentos em que as ideias se movem através de contextos e substâncias, são partilhadas por um colectivo e se tornam actos políticos. O meu trabalho mais recente procurou relacionar a Arquitecturas Bis – entendida como uma “revistinha” com uma precisa estratégia cultural: ser a revista lida pelos que escrevem as outras – com a renovação dispersa, catalítica, pontual e essencialmente bidimensional do espaço público de Barcelona no início dos anos 80 do século passado. E se aceitarmos que a estratégia da revistinha foi instrumental para os consensos políticos e sociais que tornaram o novo espaço público possível, se aceitarmos a sua eficácia, esta feliz interferência entre o espaço publicado e o espaço público, podemos hipotisar uma inversão da ordem dos eventos, hipotisar que uma nova perspectiva sobre os efeitos poderá transformar as causas e os agentes, forçando um feedback capaz de fazer repensar o papel da narrativa histórica na transformação da cidade. Na continuidade deste trabalho, deste acreditar na capacidade transformadora das ideias, aquilo a que me proponho aqui é derivar com uma ideia.
À procura do companheiro ideal para este passeio com uma ideia fui dar uma volta àqueles velhos recreios das ideias chamados enciclopédias e testei a ideia respigando dicionários e enciclopédias em vários idiomas. Gleaning é a palavra inglesa para a ideia que procurava. Em castelhano é rebuscar ou respigar, em francês é glaner ou grapiller, em italiano é respigolare ou respollare, e em português é respigar, rabiscar ou rebuscar. Grosso modo, respigar é colher depois da colheita, é recolher os restos, é juntar pacientemente o que foi considerado sem valor, fora do padrão ou incorrecto. No contexto actual, em que o sentido cíclico da crise se desvanece e acordamos para a consciência que as coisas não voltarão a ser como dantes, que não vamos gozar as benesses das gerações imediatamente anteriores, que nos vamos reformar mais tarde e vamos trabalhar mais tempo, e paradoxalmente menos e com menos segurança e estabilidade, talvez pensar no direito aos restos, pensar naqueles que calcorreiam os campos depois da colheita, possa ser uma maneira de nos questionarmos e de reorganizarmos as nossas estratégias de sobrevivência. Ou seja, pensarmo-nos depois da colheita, na urgência de reinventar e re-significar a terra aparentemente desolada.
Vamos lá então…
A primeira paragem é a enciclopédia francesa, tanto porque presumo não ser o único fascinado com o filme de Agnès Varda: Os respigadores e a respigadora (2000), como porque esta é a enciclopédia original e eu precisava de uma casa de partida.
Glaner, sinónimo de grapiller, é a actividade das pessoas que visitam os campos depois da colheita, que percorrem a vinha depois da vindima. A ideia está associada a práticas agrícolas e a alimentos muito simbólicos: cereal e vinho. A versão inglesa, tomada do Oxford English Dictionary, expande o conceito para colheitas do novo mundo, como o milho. O dicionário simples do meu computador inclui uma citação que caracteriza a razão social do rebusco: as condições de vida dos trabalhadores agrícolas (cerca de 1890) tornaram o rebusco essencial. A descrição em inglês aponta ainda para a quantidade, para a recolha de pequenas quantidades, para juntar ou recolher com parcimónia. E desloca ainda a ideia para uma dimensão mais contemporânea que é provavelmente mais próxima dos nossos interesses: o respigar de informação, o juntar recortes de imprensa, o amalgamar, o consolidar de informação a que nos habituámos. Rebuscar pode então ser entendido como outra forma de recolher informação: pedaço a pedaço, juntando fragmentos estranhos, restos, informação que saiu do mapa, que já não pertence ao discurso mais normativo e dominante.
O dicionário Larousse electrónico propõe uma ilustração fantástica deste trânsito entre agricultura e informação: a imagem mais conhecida do respigar, a pintura de Millet, é legendada com uma definição que propõe rebuscar como a estratégia operativa da Wikipedia: “Não será o objectivo de uma enciclopédia feita de contribuições, feita cooperativamente, o respigar infinito de informação cuidadosamente referenciada, verificada e acessível a todos?” Rebuscar pode assim ser também interpretado como a produção colectiva de novas ideias.
No entanto, a Wikipedia em si propõe o rebusco como uma forma arcaica de estado assistencial, o tal estado que não vamos ter. A voz da Wikipedia cita o Velho Testamento para indagar as origens morais do rebusco, como um preceito da colheita que deixava algo no campo para alimentar os pobres, os estrangeiros, as viúvas e os órfãos. As oliveiras deviam ser poupadas a sucessivos varejamentos de modo a deixar alguma coisa para os rebuscadores. Esta é a parte mais complicada da ideia, mais estranha, a que implica uma forma de exílio para beneficiar de algo que é quase definido com um direito; a que implica que os restos são para os marginalizados. Só aqueles que não participam inteiramente da cidadania podem rebuscar aquilo a que a sociedade não consegue atribuir valor. Paradoxalmente, esta zona cinzenta e turva da cidadania é um dos territórios emergentes de uma nova geração. Pensar nos despojos urbanos como um direito dos prisioneiros do espaço público, dos que não têm privacidade, ou espaço privado, dos que são sem abrigo, pode ajudar a compreender os mapas contemporâneos da exclusão urbana, as relações tensas entre a casa e o que a rodeia, o habitat a que chamamos cidade. Por mais paradoxal que possa parecer, é importante reconhecer que para uma geração recente a materialização da arquitectura é de facto um resíduo complexo da participação cívica, alguma dela aprendida com rebuscadores, apanhadores de lixo ou ocupas.
As definições em português e castelhano acrescentam um sentido de repetição, de cuidado especial, e também de produtos defeituosos ou danificados: é rebusco. Rebuscar também é procurar, investigar, re-search, com excessivo cuidado. Rebuscado, ou em francês: recherché, pode significar pretensioso ou excessivo, pensamentos que “ao mesmo tempo que não são naturais, revelam a intenção de parecerem originais, de serem mais graciosos, profundos e engenhosos que o comum.” Exactamente o que este texto está a tentar fazer, imagino.
Correndo o risco de ser outra vez pretensioso, eu propunha até esta definição como uma via de fuga viável à ordem “natural” e à eficácia, ao fantasma da sobre-qualificação com que me assustaram. E há com certeza coisas piores que demasiada atenção e cuidado.
Finalmente, o sentido português de respigar, de recolher as espigas deixadas no campo depois da ceifa, pode ainda significar, em sentido figurado, a compilação das “melhores” partes de textos literários, isto é: escolher pérolas de informação e estilo e juntá-las num reportório, o que é paradoxalmente uma marca do nosso tempo de informação descontextualizada e simplificada.
O que tentei propor aqui foi um ponto de vista marginal e instável, pequenino e complicado, mas um que espero contribua para lidar com os afloramentos e as urgências do território em que a jovem arquitectura emerge. Depois deste passeio ainda estou curioso acerca deste movimento lento e sincopado que re-significa as coisas humildes que recolhe através do campo depois da colheita. A abundância não se colhe, inventa-se, rebusca-se…
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[o autor escreve de acordo com a antiga ortografia]
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Joaquim Moreno
(Luanda 1973) Arquitecto pela FAUP, Master pela Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona - UPC e Doutor pela School of Architecture da Princeton University. Foi director, com Pedro Bandeira e Paula Pinto, da revista In Si(s)tu, curador com Alberto Carneiro da exposição Desenho Projecto de Desenho, sobre desenho e arquitectura no séc. XX Português e com José Gil comissariou a representação portuguesa na Bienal de Arquitectura de Veneza em 2008. Actualmente, desenvolve actividade docente no Departamento de Arquitectura da Universidade Autónoma.