|
SANAA, SEJIMA + NISHIZAWA
JOÃO ALMEIDA E SILVA
A exposição SANAA, Sejima + Nishizawa convida o público a explorar o ethos arquitectónico da dupla japonesa Kazuyo Sejima (1956) e Ryue Nishizawa (1966), vencedora do prémio Pritzker em 2010, reconhecida também pelo equilíbrio entre inovação e sensibilidade ao contexto. Organizada pelo Museu de Serralves, a mostra dialoga com a recém-inaugurada Ala Álvaro Siza, que celebra agora o seu primeiro aniversário, criando uma rara oportunidade para reflectir sobre as intersecções entre tradição e modernidade na arquitectura contemporânea.
A exposição começa [1] com um vídeo curto que apresenta de forma dinâmica alguns dos trabalhos mais icónicos do Atelier SANAA, tais como o New Museum of Contemporary Art (Nova Iorque, 2007), o Serpentine Pavilion (Londres, 2009), o Rolex Center (Lausanne, 2009) ou o Louvre-Lens (Lens, 2012). Estes projectos são intercalados pelas vozes dos arquitectos, que abordam, brevemente, as suas intenções e processos criativos. Após este vídeo introdutório, os visitantes são convidados a explorar dois caminhos distintos: à esquerda, o projecto da Ilha de Inujima, no Mar Interior de Seto; à direita, o projecto de Imabari, um edifício de escritórios para a Imabari Shipbuilding Corporation.
Inujima: Reconstruindo Paisagens e Comunidades
Seguindo pela esquerda, três vídeos documentam a experiência dos habitantes de Inujima, sendo que na sala contígua os visitantes poderão explorar uma recriação da ilha. Nesta sala é reconstituída tridimensionalmente a estrutura viária da ilha, criando uma instalação que destaca as intervenções realizadas ao longo dos anos. São intervenções paisagísticas e arquitectónicas desenvolvidas pela Kazuo Sejima + Associates (que constrói, entre outros, um Jardim da Vida que é essencialmente um centro comunitário, ou as Casas de Arte), mas também pelo Tetsuo Kondo Architects (que desenvolveu um bar, o Hoppy Bar) ou por Ichio Matsuzawa (que projectou a Casa T) que têm transformado a ilha, outrora um próspero centro de extracção de pedra. No início do século XX, Inujima abrigava mais de 4.000 habitantes mas, com o encerramento das pedreiras locais, a ilha sofreu um dramático despovoamento. Actualmente, restam apenas cerca de 30 habitações unifamiliares.
Inujima representa um compromisso de longo prazo com a paisagem pós-industrial do Japão. Desde 2008, a área tem recebido intervenções que integram arquitectura, arte e paisagem, transformando o tecido rural da ilha num grande museu a céu aberto. Cada pavilhão foi adaptado à sua localização específica, geralmente escolhida seguindo critérios paisagísticos como a sua altitude ou as vistas de mar, o seu contexto imediato e as rotinas da vida numa vila pequena. Estes factores definem a forma, o tamanho e a materialidade de cada intervenção. Muitos deles são recuperações de projectos de adaptação de edifícios de madeira tradicionais e já existentes (casos da I-Art House), sendo que outras estruturas contrastam com a sua envolvente (como os casos dos pavilhões A e S), pelo que os materiais usados vão de madeira e granito local até materiais contemporâneos como alumínio ou acrílico, sendo que todos os pavilhões respeitam a escala das casas existentes, preservando o carácter rural da área.
Os visitantes desta exposição têm a oportunidade de observar como a arquitectura tem sido utilizada não apenas para preservar a memória de Inujima, mas também para reactivar social e culturalmente a ilha, integrando espaços naturais, construções históricas e instalações artísticas em harmonia com o ambiente.
Imabari: Funcionalidade e Inovação
Por outro lado seguindo pela direita, uma grande maquete do edifício de escritórios (escala 1:50) oferece uma visão detalhada do projecto, sendo que na sala imediatamente a seguir se encontra um conjunto de maquetes de trabalho que nos permitem perceber o processo de criação da dupla e a evolução do edifício de escritório entre o seu inicio e a versão final, passando pelas múltiplas iterações do mesmo conceito. Imabari é um projecto que reflecte a precisão técnica e a funcionalidade moderna da SANAA. Localizado num estaleiro da Imabari Shipbuilding Corporation, a maior construtora naval do Japão, o edifício foi concebido para ser um espaço de trabalho integrado no ambiente industrial da região. O projecto venceu um concurso em 2022 e tem início de construção previsto para 2025. Na sala a este dedicada, podemos encontrar cerca de setenta maquetes, em escalas que variam entre 1:100 e 1:200, que documentam as diferentes fases do projecto, permitindo aos visitantes compreenderem as iterações e refinamentos arquitectónicos que culminaram na solução final. Um dos destaques é a estrutura triangular do edifício, uma solução engenhosa para optimizar elementos estruturais e garantir eficiência sem comprometer a leveza e a estética da construção, remetendo o espectador, de certo modo, para o Metabolismo Japonês.
De facto, a vitalidade da arquitectura japonesa contemporânea está profundamente enraizada no conceito de wacon yôsai (“espírito japonês, tecnologia ocidental”), que reflecte a síntese harmoniosa entre modernidade e tradição. Introduzida durante a Restauração Meiji (1868), esta ideia moldou a prática arquitectónica no Japão, especialmente após a devastação da Segunda Guerra Mundial, quando o país adoptou o Modernismo como resposta à necessidade de reconstrução.
No entanto, os arquitetos japoneses não se limitaram a replicar os princípios do Estilo Internacional. [2] Eles reinterpretaram essas ideias, integrando uma fluidez espacial e uma sensibilidade material que culminaram em um modernismo japonês único, capaz de equilibrar inovação e herança cultural. Perante a urgência de reconstruir as suas cidades, a arquitectura local rapidamente absorveu as formas e conceitos do Movimento Moderno, consolidando, entre as novas gerações de arquitectos, a convicção de que essa linguagem seria a mais eficaz para responder às demandas do período.
Inicialmente, esta abordagem associava o Modernismo ao funcionalismo do Estilo Internacional. Contudo, ao longo do tempo, foi ajustada para incorporar os valores da arquitectura tradicional japonesa, numa tentativa de recuperar a naturalidade que muitos acreditavam estar perdida com o Moderno. Esse processo resultou na criação de um estilo distintivo de modernismo japonês, reflectindo uma articulação cuidadosa entre inovação e tradição.
Desde então, várias gerações de arquitectos têm explorado este espírito de experimentação. Seus projectos ganharam crescente visibilidade no panorama internacional, destacando-se pelo trabalho nos limites da resistência estrutural e das capacidades físicas dos materiais. Ideias como transparência e leveza são levadas ao extremo, sem negligenciar compromissos sociais com os habitantes dos edifícios. Assim, a arquitectura japonesa contemporânea revisita uma consciência social que remonta às vanguardas do pós-guerra, reafirmando o papel da arquitectura como mediadora entre o progresso técnico e a dimensão humana. [3] Disso são exemplares Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa [4], a primeira antiga colaboradora de Toyo Ito; o segundo antigo colaborador da primeira, que, embora mantenham práticas individuais, em conjunto, formam a dupla SANAA. Estes transportam parte desse legado de experimentação, procurando, não oposições, mas novos equilíbrios entre a inovação e tradição, entre construção e natureza, entre público e privado, superando-as e contribuindo, com isso, para a construção de uma identidade marcante para a arquitectura japonesa contemporânea.
Embora esta exposição não seja uma retrospectiva nem uma mostra dos seus trabalhos mais icónicos, nem o pretendia ser, ela oferece uma perspectiva cuidadosamente organizada sobre o ethos arquitectónico da dupla, evidenciado em dois projectos profundamente significativos, que ilustram o equilíbrio entre a inovação e a sensibilidade ao contexto cultural e natural. Em Serralves, esses projectos estabelecem um diálogo que desafia visitantes a repensar as possibilidades da arquitectura contemporânea. A exposição no Museu de Serralves oferece, assim, uma rara oportunidade para o público português explorar a filosofia arquitectónica do atelier SANAA, que ressoa com debates contemporâneos na arquitectura portuguesa. Ao explorar Inujima e Imabari, a exposição não apenas revela o rigor técnico e a sensibilidade estética do atelier SANAA, como ilustra, de igual modo, como a dupla transcende os limites entre natureza e construção. Os projectos de SANAA demonstram como a arquitectura pode mediar entre inovação e tradição, uma ideia que encontra paralelos na trajetória arquitectónica de Portugal, particularmente na obra de Álvaro Siza ou Eduardo Souto de Moura.
Ao apresentar a interacção entre luz, material e contexto, SANAA desafia arquitectos e públicos a repensarem os limites da prática arquitectónica. Para Portugal, um país com uma herança arquitectónica rica e um foco crescente na sustentabilidade, a abordagem de SANAA oferece perspectivas valiosas sobre como conceber espaços que respeitem as paisagens culturais e naturais, ao mesmo tempo que atendem às necessidades contemporâneas. Este diálogo entre SANAA e Serralves sublinha o potencial universal da arquitectura para transcender o local, conectando tradições globais e reforçando o papel da arquitectura como mediadora cultural.
A exposição foi produzida pela fundação de Serralves, comissariada por António Choupina e tem curadoria de Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa, arquitectos que idealizaram igualmente o desenho expositivo. De 15 de Novembro de 2024 a 27 de Abril de 2025, no Museu de Serralves, no Porto.
João Almeida e Silva
Arquitecto e Investigador no CEAU da FAUP, Visiting Scholar na Universidade de Princeton.
:::
Notas
[1] Embora se encontre, no corredor de acesso à exposição, um video do projecto Serralves 21, o concurso que o Atelier SANAA venceu para uma extensão do museu de Serralves, em 2007-08, projecto nunca realizado que reinventava o local da antiga fábrica da Efanor, em Matosinhos, o início propriamente dito da exposição ocorre com o referido vídeo sobre o trabalho da dupla.
[2] Refira-se, a título de exemplo, que em 1957 foi inaugurado, em Tóquio, o Museu Nacional de Arte Ocidental (1954-57), projectado por Le Corbusier em co-autoria com os arquitectos japoneses Kunio Maekawa (1905-1986) e Junzo Sakakura (1901-1969). Marcadamente brutalista, este edifício é, não apenas o símbolo do Moderno no Japão, como também significa a abertura definitiva deste país – e da sua arquitectura – ao exterior e, por isso, rapidamente se transformou numa referência para muitos arquitectos japoneses.
[3] Apenas a partir de Tange, mentor do grupo Metabolista (que contou com os arquitectos Kiyonori Kikutake (1928-2011), Kisho Kurokawa (1934-2007), Masato Otaka (1923) e Fumihiko Maki (1928) e com o crítico Noboru Kawazoe (1926)), poderemos enunciar Fumihiko Maki, que constrói uma obra eclética à base da exploração do potencial formal dos materiais (frequentemente o vidro e as telas metálicas); Arata Isosaki (1931) e Kisho Kurokawa, discípulos directos de Tange, que prosseguem a exploração de suportes tecnológicos sofisticados; ou Toyo Ito (1941), antigo colaborador de Kikutake, que abre o caminho a uma arquitectura da energia e transparência através da exploração dos materiais e técnicas estruturais; não sendo os únicos (excluímos, entre outros, os incontornáveis Kazuo Shinohara (1925-2006), Tadao Ando (1941), Kengo Kuma (1954) ou Shigeru Ban (1957), são imediatamente convocados quando ensaiamos genealogias da arquitectura nipónica contemporânea.
[4] Veja-se, a este propósito, A Japanese Constellation. Toyo Ito, SANAA, and Beyond, catálogo da exposição homónima que Pedro Gadanho comissariou no MoMA (Nova Iorque, 2016) e que estabelece uma genealogia da arquitectura japonesa via Toyo Ito e SANNAA, de onde descendem, segundo o autor, Sou Fujimoto, Akihisa Hirata e Junya Ishigami.