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OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS: Quando a arte entra pela vida adentro – Parte IRUI MOURãO2014-09-03[Este texto é a primeira parte do ensaio OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS: Quando a arte entra pela vida adentro. A segunda parte pode ser lida aqui]
José Gil in Portugal, Hoje: O Medo de Existir, 2004.
Há ainda consequências de tudo isto para a própria criação artística, pelas condições oferecidas aos artistas ao nível da produção e apresentação. O contágio mercantilista à moldura do espaço expositivo apropria inexoravelmente as obras que nele se expõem. Tal é particularmente grave quando a obra de arte tem um discurso crítico com o sistema, pela sua consequente neutralização. Aliás, vivemos num tempo de crise, em que se regista um crescendo de produções artísticas com posicionamentos políticos mais contestatários, que por sua vez têm sido relativamente absorvidas pelo sistema. O establishment acolhe com a melhor das vontades a chamada “arte política” (o que quer que isso seja tendo em conta que toda a arte é consciente ou inconscientemente política). Há sempre algo de sedutor na rebeldia dos outros, que no plinto dos discursos intelectuais expositivos ajuda a tranquilizar consciências construindo crenças de oposição pela simples via de uma assimilação higiénica, sem riscos, onde convenientemente ninguém vê posições ameaçadas. Não faltam exemplos nacionais e internacionais de exposições e textos curatoriais com discursos que se apresentam como questionando os vigentes modelos ao nível económico, financeiro, político, social ou cultural. Mas existe realmente um compromisso sério com esse questionamento? A questão que se coloca é perceber até que ponto o atual sistema da arte contemporânea, e especialmente aqueles que mais beneficiam dele, estão realmente interessados numa verdadeira mudança do paradigma dominante. Até que ponto vai o seu posicionamento crítico em relação aos poderes políticos e económicos dos quais estão frequentemente dependentes? Todo o establishment estrutura e é estruturado pelo poder. O establishment da arte contemporânea não foge à regra. Contudo prima por uma particularidade: adota um discurso frequentemente crítico com o poder, não obstante inserir-se nas mesmas dinâmicas e comportamentos do resto do sistema de que faz parte. Em geral aprecia muito a “arte política”, mas desde que permaneça numa dimensão simbólica descomprometida com o real, num registo de inócuo impacto nas hierarquias, instituições e estruturas de poder estabelecidas, porque na prática o sistema dominante das artes molda-se ao macrossistema de poder político-económico que só na aparência critica. Portanto, se por um lado o sistema da arte cria condições para que a reflexão crítica possa acontecer – e em parte isso é muito positivo – por outro lado esse encaminhamento da dissensão para um limite simbólico, contido e disciplinado, resulta num anulamento da própria dissensão. Na prática acaba por beneficiar o status quo que a energia da dissensão seja canalizada para o simbólico disciplinado, diminuindo as possibilidades de se efetivar. A constatação deste paradoxo senti-o na carne, com essa experiência de autêntico laboratório artístico, que foi a performance artivista que culminou com a ocupação do Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado, ocorrida de 4 a 5 de julho, durante a inauguração da minha exposição Os Nossos Sonhos Não Cabem Nas Vossas Urnas. Houve até quem questionasse se tal era arte, o que muito me apraz pela possibilidade de expansão das fronteiras da arte numa época – quase cem anos depois do urinol de Duchamp – em que se pensava que essa questão já não se punha, visto tudo ser aceite como arte desde que o artista o afirme enquanto tal. Celso Martins chama-lhe mesmo um case study no seu artigo “A Arte de Ocupar” (na secção Ideias & Debates do caderno Atual do jornal Expresso de 12/07/2014). Tendo em conta tudo o que já foi dito e escrito sobre o assunto, o que apresento neste artigo é a minha perspetiva – a perspetiva do artista, a perspetiva do investigador em antropologia, a perspetiva do cidadão ativo. Não obstante, é óbvio que não há apenas um único ponto de vista absoluto e definitivo sobre esta questão. Os que estão ligados ao establishment também têm as suas lógicas institucionais. Reconheço que estão a fazer o melhor que podem e sabem, ainda mais numa conjuntura difícil, e há certas obrigações e contradições das quais dificilmente escapam. Ao olhar crítico só escapam os que não se posicionam, os que têm "medo de existir" e não se "inscrevem" no mundo. E não sendo esse o meu caso obviamente que também eu não estou isento de críticas. Toda a controvérsia em torno da performance decorreu porque o seu programa saiu significativamente da pauta institucional esperada. Pauta que tanto criava condições para a produção do projeto, como limitava as suas premissas. Por um lado acolhia-se positivamente o projeto – não é por acaso que o museu inclusive edita o meu livro – por outro lado temia-se o potencial impacto de uma arte crítica com o regime. Desejavelmente a crítica devia ser vista apenas ou maioritariamente pelos pares esclarecidos, aparentemente também críticos, mas não por quem a crítica idealmente visava. Nesse sentido, os agentes artivistas, que representados em vídeo, instalação e literatura despertavam um interesse bastante etnográfico, ao vivo revelaram-se muito mais indesejáveis. É aliás muito interessante confrontar a versão oficial do projeto no site do museu, com a performance não-oficial neste vídeo. No primeiro vídeo a Antígona nunca chega sequer a acordar – melhor metáfora era impossível – e o que se lhe seguiu é simplesmente censurado. No meio de tudo isto há um dado relevante em jogo: o MNAC - Museu do Chiado, após recorrente suborçamentação do estado com penosas e inoperantes consequências para o seu funcionamento, optou por financiamentos privados, dentro das já referidas lógicas neoliberais internacionais, que levaram a rebatizar a antiga “Sala Polivalente” com o branding “Sala Sonae” (aproveito para esclarecer que sou favorável a mecenatos, não à apropriação e privatização da identidade pública dos museus – continuando por este caminho, hoje temos a “Sala Sonae”, amanhã, quem sabe, o “Museu Lidl do Chiado”). No entanto, eu, o primeiro artista a expor nessa rebatizada sala, inaugurei-a subvertendo a lógica de funcionamento esperada. Com a mudança de nome da sala (que ocorreu posteriormente a me ter sido endereçado o convite para lá expor) fiquei confrontado com 2 opções: recusar expor, remetendo o trabalho para a invisibilidade da não existência, ou aceitar um financiamento que coloca condições questionáveis ao museu que defendo, o que me tornaria hipócrita em relação às premissas críticas do meu trabalho artístico com o atual modelo económico-político. Eu escolhi uma 3ª via: aceitar as condições para depois as subverter e denunciar, fazendo dessa tensão uma das forças potenciadoras do trabalho. A dimensão de contrapoder já presente nos vídeos e no livro, expandiu-se a um real posicionamento de artistas e cidadãos no espaço público do museu. Dentro do respeito cívico pelo espaço e as obras de arte nele presentes, lutou-se pela arte através da arte. O conteúdo da performance rompeu o expectável e alastrou-se a uma intensa defesa dos ameaçados museus, das artes, da Cultura e democratização do seu acesso. Claro que quando o artista passa da teoria artístico-política que o establishment tanto aprecia, para uma praxis consonante, e a estética se alia com uma ética, ganhando o todo uma coluna vertebral, então já a coisa não pode ser permitida. Seguem-se os discursos e atitudes de repressão e exclusão. Esses são elementos que podem ser desagradáveis mas que não me desviam do meu foco, do que me faz sentido e me permite ser feliz: os meus valores e os meus sonhos, e não os meus medos e os medos deles. Defendo que a arte deve ser o campo do extraordinário, onde o inesperado é possível. Já há espaço mais do que suficiente para a banalidade e para a morte lenta.
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