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O ESTADO DA ARTE


Acto II - Performance artivista no Museu Nacional de Arte Antiga (Fotografia: Tiago Petinga)


Acto II - Performance artivista no Museu Nacional de Arte Antiga (Fotografia: Ricardo Castelo-Branco)


Acto II - Performance artivista no Museu Nacional de Arte Antiga (Fotografia: Ricardo Castelo-Branco)


Acto III - Performance artivista no Palácio Nacional da Ajuda. Fotografia: Rui Mourão.


Acto III - Performance artivista no Palácio Nacional da Ajuda (ruidoso drone a voar à porta do secretário de estado da Cultura). Fotografia: Rui Mourão.


Acto III - Performance artivista no Palácio Nacional da Ajuda (entrada dos porcos engravatados em cena na perspetiva do drone). Still do vídeo. imagem: Samuel Morais.

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OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS: Quando a arte entra pela vida adentro - Parte II

RUI MOURãO

2014-09-22




[Este texto é a segunda parte do ensaio OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS: Quando a arte entra pela vida adentro. A primeira parte foi publicada na Artecapital a 3 de Setembro de 2014 e pode ser lida aqui]

 


Na exposição OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS, no MNAC - Museu do Chiado, o inesperado sucedeu quando uma das convidadas parou no meio da vernissage e interpretou o "Acordai" de Lopes-Graça. Era a mesma cantora lírica / ativista – Ana Maria Pinto – que surge na videoinstalação e no livro (vários dos artivistas que aparecem nos conteúdos audiovisuais da videoinstalação e no texto do livro encontravam-se in loco a ocupar o museu, o que deu ao conjunto uma dimensão semiológica). Seguida de vasto cortejo de convidados, a cantora desceu uma escadaria até se aproximar de Antígona, personagem símbolo de luta transgressora pelo Justo, princesa adormecida que os convidados tentavam despertar atirando ervilhas (colaboração ao nível dramático do Colectivo Negativo, que inclusive concebeu figurinos e adereços). De seguida li o manifesto, declarando: "Estamos aqui em ocupação artivista do Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado. Estamos a ocupar o museu em defesa do museu e não contra o museu. (...) Isto não é teatro, nem encenação, nem nós somos personagens, embora o que estamos a fazer seja uma grande performance. Performance para a qual, a partir de agora, estão todos convocados. Os que a apoiarem e os que a ela se opuserem". Entretanto as dezenas de ocupantes combinados (suposto público, portanto "espectatores" como lhes chamaria Boal) e outros que ali espontaneamente se lhes juntaram, abriram a chaise-longue da Antígona – autêntico cavalo de Tróia – e do seu interior tiraram uma série de sacos-cama que se encontravam escondidos para que pudéssemos ali pernoitar, assim como cartazes com mensagens como: MENOS DINHEIRO DOS NOSSOS IMPOSTOS PARA PPPs, SWAPs E BANCOS / MAIS DINHEIRO DOS NOSSOS IMPOSTOS PARA MUSEUS, ARTE E CULTURA / ACESSO GRATUITO AOS MUSEUS TODOS OS DOMINGOS / + CULTURA = + EDUCAÇÃO = + DEMOCRACIA, etc. Dentro da chaise-longue estavam também 2 blocos A2 de papel em branco e marcadores para as pessoas escreverem os seus próprios cartazes.

Ao longo do processo de ocupação, tudo foi decidido pelo grupo em constantes assembleias cívicas de participação direta horizontal. Passámos a noite no museu e só saímos depois das 10h da manhã, hora a que foi convocada uma conferência de imprensa com as nossas reivindicações. De forma irónica, desde o princípio da noite foi sempre exigida reunião oficial com o ministro da Cultura (isto num país que não tem ministério da Cultura desde 2011).

Cerca de um mês depois (17/08/2014) a performance saiu do MNAC - Museu do Chiado, onde decorreu o primeiro acto, e passou sobre outra forma para o Museu Nacional de Arte Antiga, onde teve lugar o segundo acto. Aí, 73 pessoas (evocando o art. 73.º da Constituição da República Portuguesa) vestidas de negro, imóveis, num happening poético de dezenas de estátuas vivas, reproduziram ao vivo as poses de diferentes figuras humanas de quadros e estatuária do museu em tableaux-vivants. Simultaneamente iam repetindo, como um mantra polifónico: "Somos arte, diante da arte, de luto pela arte, em luta pela arte". Nesse momento inscreveram-se naquele local como arte. De seguida, após um gélido silêncio, em estátua, as pessoas desmancharam as suas poses e foram todas para a bilheteira pedir o livro de reclamações (até esgotarem todas as folhas), devido a terem pago bilhete de acesso a um museu público (que aumentou de preço) num domingo (quando antes todos os domingos eram gratuitos), o que constitui um fator excludente de base económica (num país com cerca de 2 milhões de pobres) que viola claramente a obrigação pública de democratização do acesso à Cultura, referida no art. 73.º da nossa Constituição. Numa perspectiva mais alargada, exigimos a reposição do Ministério da Cultura e que, conforme recomendação da UNESCO, se estabeleça o mínimo de 1% do orçamento de Estado para a Cultura.

No mês seguinte (15/09/2014), depois do Acto I (MNAC) – OS NOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS VOSSAS URNAS e do Acto II (MNAA) – OS VOSSOS SONHOS NÃO CABEM NAS NOSSAS URNAS, deu-se o Acto III – MORREM LENTAS AS URNAS ONDE NÃO CABEM OS SONHOS, que apontou diretamente para o topo da hierarquia do setor cultural público. Foi um happening que começou com dezenas de pessoas a lerem poesia em voz alta, ocupando o pátio central do Palácio Nacional da Ajuda com uma cacofonia de sentidos poéticos. Pouco depois sobrepôs-se outra dimensão mais subversiva: um grupo de engravatados porcos antropomorfizados destruiu a poesia e um ruidoso drone andou a sobrevoar a porta do secretário de estado da Cultura, tendo sido então feita toda uma coreografia pelos performers expressamente para a câmara de vídeo acoplada ao drone, que filmou tudo de cima. Apenas da perspetiva aérea se percebeu que as dezenas de chapéus-de-chuva abertos, no seu conjunto, formavam um grande €, símbolo de dinheiro, metáfora do único critério que atualmente se impõe à Cultura. Esse ato de contrapoder foi simbolicamente realizado no centro do poder da Cultura em Portugal. À volta daquele pátio estão as entradas para a Direção Geral do Património Cultural e secretário de estado da Cultura.

Mais uma vez a performance resultou da colaboração de dezenas de pessoas – artistas, ativistas e cidadãos em geral, na condição de público e contribuintes. Numa lógica de continuidade apresentámos as mesmas demandas dos anteriores “actos”, criticando a dominante visão política exclusivamente economicista para com os assuntos culturais, onde tem sido cortado todo o tipo de investimento público e simultaneamente explorado tudo o que possa ser rentável (disso são exemplos a intenção de vender a coleção Miró na posse do estado ou o facto de os museus passarem a ser avaliados pelo valor das suas receitas – de bilheteira, lojas, aluguer de espaços, etc – fator que inclusive determina os seus futuros orçamentos anuais).

Como sem público não há performance, foi sempre feito um esforço no sentido de criar uma comunicação mediática que funcionasse como palco. No seu todo, as performances artivistas no twitter chegaram a ser trend topic nas cidades de Lisboa e Porto. Houve igualmente inúmeras centenas de partilhas, “likes” e comentários no facebook, transmissão em direto de vídeo via live stream do MNAC para a internet com milhares de visualizações, polémica em alguns bloques (ex: The Ressabiator ou O António Maria) e foi notícia na grande maioria dos meios de comunicação social (Acto I:RTP, SIC, Diário de Notícias, Público ou Rádio Renascença  / Acto II: Diário de Notícias, Correio da Manhã ou Público / Acto III: jornal i, Diário de Notícias, jornal Metro ou TVI).

Os 3 “actos” performativos desenvolvidos em articulação com a exposição que continua patente até finais de setembro no MNAC - Museu do Chiado, revelaram claramente ser possível criar formas artísticas que permitam obter uma voz na esfera pública, com impacto suficiente para constituírem os seus participantes em reais atores políticos. Com os nossos corpos, a nossa energia, a nossa ação, os nossos sonhos, demonstrámos que as performances artivistas podem operar representações de cariz subversivo que funcionem como formas de contrapoder e contestação pública. As 3 performances artivistas consubstanciaram na prática aquilo que a videoinstalação representa e o livro que escrevi (Ensaio de Artivismo - Vídeo e Performance), na sua reflexão, ensaiou: que a arte, de facto, pode empoderar as pessoas e que o corpo é o medium mais democrático e universal para o executar – todos temos um. O facto de tudo isso ser produzido a partir da ação do corpo, remete-nos para o conceito de afeção. Tendo aplicação em contextos psicológicos e filosóficos, o conceito foi criado por Espinosa e desde então foi amplamente abordado a posteriori (por autores como Deleuze, Guattari ou Massumi). Numa abordagem muito sucinta, a afeção prende-se com a capacidade dos corpos afetarem ou serem afetados através das energias das suas ações e atitudes, tocando as emoções. Uma performance de contrapoder bem sucedida é precisamente aquela que de alguma maneira exerce afeção a quem a presencia. As tradicionais manifestações de coletivos na rua, como demonstração de poder, necessitam da presença do maior número possível de pessoas para ganhar afeção e adquirirem uma legitimidade que lhes confira representatividade. Pelo contrário, a força das performances artivistas no espaço público é mais qualitativa que quantitativa, assumindo em pleno a sua vocação de contrapoder. Como tal, o mais importante não é a quantidade de participantes, mas a sua capacidade de impacto no questionamento das relações de poder estabelecidas na sociedade.

Nos protestos políticos mais convencionais e institucionalizados o arrastar repetitivo de fórmulas e dinâmicas emotivamente pouco entusiasmantes, de certa forma tem diminuído a força desses movimentos. Há portanto o risco de tal alimentar um esvaziamento de emoção política. Note-se que corpo que perde emoção é corpo que perde ânimo (basta pensar na própria origem etimológica da palavra anima) e um processo prolongado de existência desanimada resulta numa perda de crença, de motivação e, em última instância, pode levar à perda de vida. A um nível coletivo é o próprio espírito da Polis que perde fôlego, isto é, perde-se o emotivo e vivo exercício da Democracia para além da rigidez institucional. Ora o que fizemos nos 3 “actos” artivistas apresentados foi o oposto. Levámos, provocadoramente e sem falsos pudores, o político para o espaço museológico e ainda fizemos disso arte. Voltando à citação inicial de José Gil (na 1ª parte do artigo), procuro que no meu percurso e no daqueles que indelevelmente se cruzam no meu, a arte entre pela vida adentro e transforme "existências individuais". Pode-se interpretar nesse sentido este excerto do manifesto lido na inauguração da exposição: "Ao realizarmos esta ação podemos mudar algo na sociedade – ou não! – no entanto, com o exemplo desta ação de certo modo somos nós próprios que nos podemos transformar. É uma mudança que vem da expressão de uma consciência cívica mais crítica, audaz, criativa, interventiva, sentida e livre, que não se esgota nas normas institucionais, nem no mero voto de 4 em 4 anos e que pretende levar-nos a viver uma experiência política com maior intensidade. A viver uma maior intensidade pela emoção na crença em valores em que acreditamos, podendo ser igualmente inspiradores para outros. (...) Toda e qualquer performance artivista, só por existir, afirma na esfera pública o próprio ideal de Democracia. E enquanto nós, cidadãos ativos para além da norma e da estrita regra, estivermos vivos, esse ideal não morre. Nem dentro de nós, nem nas ruas, nas praças ou nos museus de todos.”

 

Acto III - Performance artivista no Palácio Nacional da Ajuda (entrada dos porcos engravatados em cena na perspetiva do drone). Captação de imagem: Samuel Morais.

 

 


Rui Mourão
Artista