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RUN_IT_BACK.EXE?: AVERY SINGER NO MUSEU DE SERRALVES![]() MAFALDA TEIXEIRA2025-03-20![]()
Ao cruzarmos a porta de entrada do Museu de Serralves, deixamo-nos surpreender pelo aconchego quente da alcatifa, cuja presença - como um convite - nos conduz por um percurso e experiência imersiva oferecidas pela artista Avery Singer (1987) cujas diferentes camadas de significação procuramos desvendar. Ocupando o átrio e a sala central do Museu de Serralves, a mostra intitulada run_it_back.exe? [1] revela-nos a preocupação e importância atribuídas pela artista nova-iorquina ao aspeto cenográfico: desde o momento em que entramos no espaço museológico apreciamos uma encenação mediante um desenho instalativo e a criação de um ambiente arquitetónico que envolvem o visitante. Estendendo-se pelo chão do átrio, quadrados de carpete cinza intrigam-nos e surpreendem-nos, enquanto peças de aparente banalidade que interpelam o visitante, criando um ecossistema de experiências sensoriais e emotivas. Há uma componente íntima em run_it_back.exe? através da qual Singer nos revela a atenção que confere aos objetos - alcatifa, peças de mobiliário e plantas - num trabalho minucioso de quem observa, recolhe e preserva sempre com atenção à imagem. Convocando o espaço corporativo e/ou hospitalar das décadas de oitenta e noventa para o espaço expositivo, a artista intervém sobre a obra arquitetónica de Siza Viera desafiando e dessacralizando, através de um gesto simples, simultaneamente radical e corajoso, a estética tradicional do white cube e a ideia pré-concebida de que existem espaços sagrados. À intervenção arquitetónica, idealizada pela artista com o contributo do atelier Depa architects (Porto), acrescesse-se a presença de uma nova série de pinturas numa mostra que, segundo a curadora Inês Grosso: nos desafia a olhar para a pintura de diferentes maneiras e perspetivas e a repensar o que pode ser hoje em dia uma exposição de pintura. [2] Pertencente a uma geração de artistas contemporâneos cuja prática se impõe como resposta à era digital, Avery Singer recorre a meios tecnológicos para refletir e questionar o momento presente. Reconhecida como uma das vozes mais ousadas e singulares da pintura contemporânea mundial, as suas obras exploram temas como a automatização, cultura digital e a interseção entre arte e tecnologia. Questionado e ultrapassado os limites da prática artística, assim como o nosso papel e os das estruturas políticas e económicas que nos sustentam, a exposição em Serralves abrange temas como blockchain, finanças e tecnologia, dando-nos a conhecer o universo de códigos QR, memecoins, criptomoedas e os paradoxos da economia digital. Sem esquecer a relação entre arte, arquitetura e tecnologia, Avery Singer - que pela primeira vez expõe em Portugal - apresenta um projeto ambicioso resultante de uma longa investigação e do seu interesse pelas economias digitais, em especial o atual mercado criptográfico e a sua relação com o sistema financeiro tradicional. Centrando-se nestas duas realidades aparentemente distintas - economia digital e tradicional - a mostra revela como ambas se influenciam mutuamente, partilhando vários aspetos, nomeadamente a constante instabilidade, que definem e moldam a nossa vida económica e social. Como nota introdutória à temática expositiva destacamos a presença de duas pinturas de grande escala em tons cinza, que nos recebem, intituladas Poker TV. Retratando jogadores profissionais de póquer online, as obras refletem a decisão ousada da artista em chamar a atenção, por um lado para o crescimento do jogo online e por outro lado, mencionando o pintor alemão Christian Schad (1894-1982), para a vontade de refletir e retratar o seu próprio tempo e a comunidade tecnológica na pintura contemporânea, facto que a levou a uma pesquisa exaustiva no Twitter e Telegrama sobre criptoeconomia. Tenho muitos amigos que estão inseridos no mundo das criptomoedas e que são investidores Ethereum. Decidi focar-me neles e na sua cultura visual que considero muito interessante e inspiradora: o calão que usam, as obsessões, as suas preocupações e interesses são fascinantes para mim. (...) Reativei a minha conta Twitter e ao fazer pesquisa para esta exposição reparei que há muitos influenciadores de criptografia que se proclamam como sendo metade jogadores de póquer e metade ativistas, por isso pensei em apresentar-vos imagens que inspiram essa perspetiva. Ao longo da exposição verão retratos de hackers, de alguns amigos meus que são programadores de criptografia e carteiras de criptografia. [3] O inconformismo de Singer em relação aos modos tradicionais de exibição reflete-se no modo de instalação das telas, que se deslocam das paredes para serem instaladas em longos cabos metálicos de estilo industrial que se estendem do chão ao tecto, como se estivessem suspensas no espaço. Quais elementos escultóricos, instaladas a poucos centímetros do chão - para que o público não se sinta intimidado pelas obras - este modo de exibição das pinturas permite à artista distanciar-se da estética tradicional do cubo branco, ao mesmo tempo que possibilita ao espectador caminhar livremente por entre as telas, observando-as e lendo-as de vários ângulos e até do seu reverso. O interesse recente de Singer em combinar diferentes formas de aplicar tinta, num cruzamento entre técnicas manuais e digitais; o recurso ao aerógrafo e a diferentes gerações de imagens digitais, definem a sua prática e identidade artísticas que se revelam nas pinturas em exibição. Radicando do universo digital, todas as obras presentes em Serralves foram pintadas num gesso cinzento produzido por Avery a que se seguiu a aplicação de camadas de imagens digitais pintadas pela própria com recurso a um aerógrafo industrial. Numa etapa seguinte, a artista recorreu à aplicação manual de uma goma líquida, que interfere na camada final da pintura e que quando removida apaga certas partes da imagem, intensificando sombras e expressões, num jogo entre precisão tecnológica e toque humano. Numa procura constante por alternativas e formas de expandir a pintura enquanto medium, Singer não só inclui nas superfícies das suas composições softwares tecnológicos e modelação 3D, como também integra a arquitetura, ampliando assim o conceito de exposição pictórica. Partindo do princípio que a pintura não é apenas um meio de expressão, mas um campo de experimentação crítica, seguimos para o segundo espaço expositivo: uma sala totalmente idealizada e transformada pela artista, que ao ter crescido no distrito financeiro de Lower Manhattan se inspira nas memórias da estética corporativa. Portas de vai e vem, semelhantes às de alas hospitalares, dão-nos acesso à sala alcatifada em tons de rosa e cinza; de paredes laminadas e janelas com estores; mobiliário datado das décadas de oitenta e noventa – cadeiras e mesas –encostado às paredes e vasos com plantas que pontuam o espaço iluminado por luzes brancas. Transformei a parte frontal desta galeria numa sala de espera, cuja estética é inspirada pelo muito tempo que passei em hospitais e recrio esse espaço. É algo entre um hospital, escritório e uma sala de espera. [4] Numa das paredes da “sala de espera” exibem-se dois desenhos emoldurados da autoria da ilustradora Jane Rosenberg, sobre o julgamento de Caroline Ellison, CEO do fundo de investimento Alameda Research, condenada a dois anos de prisão por fraude com criptomoedas e lavagem de dinheiro. No mesmo espaço, ao fundo, uma tela monocromática de grandes dimensões retrata novamente jogadores de póquer numa composição, algo cubista, feita a partir de um modelo concebido no SketchUp e que a artista pintou à mão usando aerógrafo e tinta preta. A representação de uma comunidade que normalmente permanece invisível – investidores de criptomoedas, jogadores, hackers – e cujos retratos fantasmagóricos Avery Singer nos oferece, sem revelar as suas identidades, constitui um dos aspetos singulares de run_it_back.exe?. Retratos com que nos deparamos na terceira e última sala da exposição, cujo acesso é feito por uma rampa que a artista transforma num estreito e longo corredor de tons neutros e chão de linóleo. Pintado em tons pastel, coberto por alcatifa cinzenta e com a única janela tapada, observamos as grandiosas telas que parecem flutuar no espaço, revelando-nos retratos, figuras geométricas tridimensionais, inspirados em amigos programadores, investidores e personagens da era digital. Na mesma sala, destaque para Market Maker (2025) obra motivada pela figura mítica e poderosa do “criador de mercado” do universo criptográfico, em que um conjunto de olhos [5] parecem observar-nos segundo a artista, como se estivessem à procura do Market Maker. À medida que contactamos com a pintura, verificamos a presença de elementos diversos provenientes do feed do Twitter de Singer: saldos de contas bancárias; nomes de criptomoedas; e a presença de códigos QR que permitem aceder à carteira virtual da artista na plataforma blockchain Ethereum, numa obra que Singer associa à serie de composições com dinheiro físico de Isa Genzken (1948) – Gilbilder, 2014 – ao considerá-la o seu equivalente digital. Na mesma sala, destaque para Shit coin maxi (2025), que apresenta colagens de carteiras de fontes fantasmas – na qual se inclui uma carteira portuguesa - inspirada por contas do Twitter que postavam narrativas sobre o crescimento e/ou o colapso dos seus saldos. Não se considerando uma artista digital, a vontade de Avery Singer em representar a comunidade tecnológica perpassa run_it_back.exe? [6], numa mostra que se impõem como um apelo urgente à reflexão sobre o impacto da tecnologia na nossa existência e sobre os desafios e paradoxos de uma sociedade cada vez mais digital e desumanizada.
Mafalda Teixeira
Notas [1] Com curadoria de Inês Grosso, curadora chefe do Museu de Serralves e coordenação da curadora Filipa Loureiro, a mostra inaugurada a 13 de fevereiro estará patente até de 7 de setembro de 2025. |