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PERSPECTIVA E EXTRUSÃO. UMA HISTóRIA DA ARTE (PARTE 1 DE 4)FILIPE PINTO2013-09-16PERSPECTIVA E EXTRUSÃO A arte parece não se dar muito bem com a sua condição solitária; quer dizer, a arte mostra-se sempre ao seu público – mais ou menos conhecedor – e funciona apenas dentro dos seus próprios limites, ainda que por vezes fora dos seus espaços habituais, precisamente para chegar a um outro público; (não deixa de ser assinalável, contudo, que as exposições em galerias sejam ainda de entrada livre e gratuita – funcionam como lojas de rua, onde se entra para ver, mesmo que não se adquira nada). A arte tem os seus códigos, as suas linguagens, a sua história, e todas essas características afastam-na do mundo real; todos estes factores constituem-lhe os limites, as suas fronteiras. A arte parece não se dar muito bem com a sua solidão – a sua autonomia. O artista quer que a sua obra seja consequente fora da mera experiência estética, da pertinência artística. Cada vez mais parece que os artistas desejam que a arte transborde para a vida, para finalmente ter uma consequência tão assinalável como o resultado de uma colisão na chapa do automóvel. Sempre se defendeu que a arte é inútil – é esta a sua maior potência, diz-se, (a arte seria mesmo um dos últimos bastiões da inutilidade numa sociedade cada vez mais instrumentalizada onde o que apenas interessa é produzir) – e que só sendo inútil poderá ser livre, e que só livre poderá ser desinteressada, e que só desinteressada poderá ser interessante, quer dizer, nova. Ora, torna-se cada vez mais difícil defender esta posição num mundo em profunda crise – como proclamar a inutilidade da arte ao mesmo tempo que se é contra a diminuição das verbas estatais de apoio às variadas artes? Como defender os apoios estatais para algo completamente inútil em vez do aumento dos salários ou do subsídio de desemprego (na mesma altura em que se fala precisamente da redução destes)? É claro que a arte nunca foi inútil – sempre teve e ainda tem funções específicas, mas apenas dentro da sua própria lógica; por isso mesmo, as suas consequências reais, dificilmente assinaláveis fora dessa esfera particular, são cada vez mais insuficientes; a obra quer interpor-se, interromper, quer ser consequente e determinante; quer ser política, porque a política é o meio de a arte se imiscuir na vida. A arte política – fonte de tantos equívocos – representa a possibilidade da arte na vida; o seu movimento é o de afastamento da superfície das coisas artísticas. A política afasta a arte da sua própria superfície, e nesse movimento de afastamento irrompe pela vida. Voltaremos mais adiante às questões sobre a possibilidade política da arte, mas por agora interessa apenas reter este movimento – um afastamento perpendicular à superfície da arte, para cá da obra. PERSPECTIVA, PAISAGEM, PETRIFICAÇÃO Nem sempre foi este o movimento das coisas da arte. Nas primeiras tentativas de representação, os homens ainda sem história, arranharam desenhos de animais nas pedras e paredes das grutas, e após essas primeiras incisões, a arte foi escavando a sua própria superfície, foi-se aprofundando, abismando literalmente, até bater no fundo perspectivado das telas florentinas do Quattrocento – deriva espeleológica, o primeiro movimento. Tal como acontece com os desenhos das crianças, a infância da arte foi caracterizada por traços puramente bidimensionais – escavavam as linhas na rocha, com o esforço físico a que esse tipo de prática lenta obriga, mas o desenho mantinha-se teimosamente à superfície; (não interessa aqui discutir o estatuto destes primeiros gestos – se artísticos, mágicos, celebratórios, ou outros). Com o tempo, com as técnicas, com os materiais, com as ideias, os artistas foram acrescentando espaço e distância às suas imagens – como faz o labirinto, que distancia o que é perto –, foram empurrando, muitas vezes toscamente, os elementos de menor importância – as personagens menores, os objectos gratuitos, a parede do fundo – foram experimentando até alcançarem a profundidade plana. Inscrição, incisão, abertura na superfície como uma ferida; mais tarde se passará dessa mera incisão à escavação – em vez de uma linha, um buraco, uma área, uma janela, por fim. Profundidade A pintura, uma janela; tal como esse furo arquitectónico no muro vertical, a pintura expõe-se, geralmente, numa parede, à altura média dos olhos, perpendicular ao vector da visão; a parede abre-se portanto; trata-se de uma descontinuidade na parede, uma interrupção. Uma pintura – uma imagem – está sempre na margem do mundo (imargem); para lá da superfície plana tudo é outra coisa – uma imagem é sempre tangente ao mundo, como o é a vida, tangente à Terra; (é apenas na crosta terrestre que a Terra se mostra fértil; só na pele a Terra fecunda, sendo o resto intestino, rochas em estado confuso, inferno movediço e calor mortal). A moldura da pintura – da imagem – serve para sublinhar, literalmente, aquela interrupção da parede; a moldura cava a parede em direcção ao abismo quieto que a pintura oferece; a moldura é como um caixilho da janela que deixa ver através. Através é aqui uma palavra central; o nosso olhar atravessa a superfície da imagem profunda e deambula pelo fundo que afinal parece não existir – o fundo não tem fim e a superfície é transparente. Profundidade quer dizer distância entre o plano que contém o contorno da abertura e o fundo. Superfície e profundidade – é a transparência que une estes dois contrários; na transparência, superfície e profundidade dão-se ao mesmo tempo (e no mesmo espaço) sem no entanto anular a distância que os intervala. Neste sentido, a transparência é sempre paradoxal. A profundidade, e ainda mais com a engenhosa perspectiva, tentou tornar a imagem finalmente permeável – a visão infiltra-se, transgride a superfície plana e abole a fronteira; a perspectiva escancarou a imagem como escancarada é uma colher (que acolhe sempre). Ver através é o que perspectiva quer dizer; (e perspicaz, ver melhor). A perspectiva consolidou a janela da pintura para aqueloutro mundo parado. Aquela abertura para um espaço de lá é uma espécie de remuneração ou contrapartida pelo espaço que ocupa na parede em vez da janela luminosa. O que a perspectiva fez foi transtornar o axioma que assegura que todo o mundo está do lado de cá; quer dizer, também há mundo para lá da superfície da tela; (com a perspectiva, a hierarquia que estruturava as coisas da pintura, baseada em graus de importância e poder, foi substituída por uma hierarquia cega e pragmática – a da distância; coisas grandes ao perto, coisas pequenas ao longe). A perspectiva clarificou o espaço do lado de lá; ao precisar as geometrias da profundidade, iluminou a potência abismal de uma superfície – de uma tela ou folha de papel. Perspectiva quer dizer afinal, eliminação da superfície por uma acção de escavação. Perspectiva = Superfície + Escavação A imagem perspéctica escava a parede onde se pende; (na verdade, a pintura – a janela – levita, porque um buraco significa ausência de massa e logo de peso, tem apenas espaço e comporta simplesmente o peso do ar que o preenche). Do emaranhado de linhas que constituem uma história, neste caso uma história da arte – linhas cruzadas, interrompidas, tracejadas, rectas, curvas, linhas que perfazem planos, linhas simultâneas, que se juntam, que se afastam, que se dividem, se bifurcam, linhas que sublinham outras, etc. –, é possível isolar uma linha recta muito precisa. Esta linha começou a ser desenhada logo nos primeiros sulcos infligidos nas rochas antigas; progrediu a partir daí, sempre perpendicularmente ao plano da superfície do suporte, até se tornar verdadeiramente infinita, até conseguir representar essa ideia, para nós impossível mas ainda assim real, do sem fim. Infinito Dizem os cientistas que o universo se expande; tendo havido um Big Bang – precisamente a explosão primordial – os detritos daí resultantes continuam ainda hoje a afastar-se. Se tentarmos reverter esse movimento expansionista do universo, chegaremos inevitavelmente a um ponto zero, a um início, chegaremos àquilo a que os cientistas chamam singularidade. Singularidade será esse momento primeiro, imediatamente anterior à explosão, onde densidade e temperatura se encontrariam a níveis impossíveis. O Big Bang levanta, claro, duas perplexidades à partida irresolúveis – a) o que havia antes (e à volta) dessa singularidade? Ou, como entender que com o Big Bang se tenha criado também o tempo, e que por isso mesmo, o problema do antes não se possa pôr? b) E, se o universo se continua a expandir, para onde se expande? Tem de haver espaço para algo se expandir, mas se o universo é tudo, terá de incluir também todo o espaço existente. Imagine-se que surfamos a crista da onda da expansão do universo – que há para além de nós? É possível que o universo crie o preciso espaço que logo irá ocupar? Será essa onda de expansão uma espécie de soleira dinâmica do universo, que vai alagando o que afinal ainda não existe? Dadas as circunstâncias anómalas, soleira não é aqui outra coisa senão a única possibilidade de exterior; “importante aqui é o facto de a noção de ‘exterior’ ser expressa em muitas línguas europeias, por uma palavra que significa ‘à porta’. (…) O exterior não é um outro espaço situado para além de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – numa palavra: o seu rosto, o seu eidos. A soleira não é, neste sentido, uma outra coisa em relação ao limite; é, por assim dizer, a experiência do próprio limite, o ser-dentro de um exterior.” [1] a) ? → Singularidade → Big Bang → Universo em expansão → ? b) É este o problema do infinito – tudo tem uma causa, isto é, tudo tem algo que o precede, e tudo tem um limite; a) o que existia antes da explosão inaugural (perplexidade temporal)? b) O que existe para além dos confins do universo, ou, para onde se expande o universo (perplexidade espacial)? “Pelo que vemos, portanto, devemos afirmar o infinito, visto que nenhuma coisa nos ocorre que não termine noutra, e nenhuma consta que termine em si própria”, palavras de Giordano Bruno, dignas do fogo inquisidor [2]. “Finalmente, pelo que se passa à nossa vista, cada objecto parece limitar outro objecto: o ar limita as colinas, os montes limitam o ar, e a terra o mar, e, por seu turno, o mar termina todas as terras; mas na verdade, nada há, para além do todo, que lhe sirva de limite.” [3] “A morte da terra é tornar-se água e a morte da água tornar-se ar e a do ar, fogo, e vice-versa.” [4] O infinito é uma prisão precisamente porque não se pode sair dele, não tem o muro ou fronteira por onde saltar e fugir – “O erro e o facto de se estar a caminho sem jamais poder parar transformam o finito em infinito. Ao que se acrescentam estes traços especiais: apesar de o finito ser fechado, é sempre possível esperar sair dele, enquanto que a infinita vastidão, por ser sem saída, é prisão” [5]. O que obvia o infinito é o apocalipse; Derrida, a partir de um estudo de André Chouraqui, mostra que o apokalyptô grego – tradução das palavras derivadas do verbo hebraico gala – quer dizer afinal “descobrimento, desvelamento, o véu erguido sobre a coisa: desde logo, se o podemos dizer, o sexo do homem ou da mulher, mas também os olhos ou as orelhas. Chouraqui nota que ‘descobrimos a orelha de alguém levantando os cabelos ou véu que a cobre para aí murmurarmos um segredo, uma palavra tão escondida quanto o sexo de uma pessoa.’” [6] Se o apocalipse é, na sua origem, um descobrimento, um desvelamento, uma revelação, então será a revelação do fim; o apocalipse é afinal não a catástrofe terrível mas a revelação de que o mundo tem um fim (não uma finalidade mas uma morte). O apocalipse é reconhecimento e anúncio, não o desastre último, embora “a iminência não [seja] menos importante que o fim” [7], como a notícia de uma doença terminal contraída, de um despedimento próximo, da partida anunciada de alguém, do iminente fim de um amor. Só admitimos a ideia de infinito através do loop, quer dizer, pela repetição, pelo pisar das próprias pegadas, como se estivéssemos num campo minado. O infinito (∞) é a versão bidimensional da tridimensional Tira de Moebius; é-o porque se baseia no loop, na sucessiva repetição, tão sem princípio nem fim como sem interior nem exterior. Também a vida, e não só o universo, parece infinita. O homem não assiste à sua própria morte, apenas a pode pressentir – na aflição última, o corpo oferece-nos o desmaio para que não assistamos de olhos abertos à nossa própria morte; igualmente, a sua consciência não lhe permite aperceber-se do seu nascimento; (também não estivemos presentes no momento da nossa concepção, como repetidamente refere Pascal Quignard); assim, o tempo da vida do homem é ladeado por duas incógnitas, é, em certa medida interminável, isto é, infinito, sem princípio nem fim – “trata-se de passar de zero a zero. – E é assim a vida. – Do inconsciente e insensível ao inconsciente e insensível. Passagem que não se pode ver, pois passa do ver ao não-ver, após ter passado do não-ver ao ver.” [8] “Nascer parece-me mais alto que viver, porque nascer é mais contraditório que morrer. Nascer nada tem a ver com reproduzir-se. Não custa muito olhar como estranha uma luz que se ignora: é nascer.” [9]. Se na grande maioria das vezes é possível perceber a relação entre o acontecimento fatídico e a morte consequente, mais difícil seria, nos primórdios, relacionar cópula e nascimento, ainda para mais porque são acontecimentos desfasados no tempo e espaço. O infinito visual foi a possibilidade radical trazida por aquela novidade matemática florentina – a perspectiva linear de Brunelleschi. Contudo, no seu rigor geométrico, nas rectas e pontos de fuga que escavavam as telas do Renascimento, a perspectiva negligenciava a curvatura da Terra – o terreno curvo onde o mundo assenta foi sempre transformado num seguro e estável plano horizontal; de igual modo, o ponto de vista era, claro, imóvel e único; isto é, tratava-se do presumível ponto de vista de um ser ciclope paralisado – visão monstruosa, inumana, irreal, apesar de nos parecer tão certa, como é costume com as coisas matemáticas. Perspectiva, para além de ver através, quer dizer também ponto de vista, e é isso mesmo que a imagem perspéctica nos oferece, um ponto de vista, único [i]. Com as imagens cada vez mais profundas, cada vez mais de acordo com a experiência do real, a pintura constituiu-se como uma possibilidade de continuação do espaço (visual) do espectador, isto é, do mundo de cá. Uma janela é uma possibilidade de exterior – a paisagem que penduramos na sala passa a ser um novo espaço contíguo à nossa casa –, e por isso mesmo não há janela mais cruel que a da prisão; ou a janela invertida que é a da montra – dispositivo para se ver de fora para dentro –, que mais do que mostrar separa; (a montra, a vitrina, a moldura, a peanha, o plinto ou o púlpito, o palco, o trono, todos elementos estratégicos de separação); o que a montra faz é instaurar distância entre o sujeito e o que este vê e deseja; distância é precisamente o outro nome para o desejo, como já nos mostrou Blanchot; (janela quando se vê por dentro, montra quando se vê por fora). A profundidade e a perspectiva tornaram a imagem paradoxal, uma coincidência dos opostos – o infinitamente distante na fina proximidade da superfície da tela; tornaram longínquo o próximo – imagem aurática? – instituíram um lapso impossível entre o rente à superfície e o fundo; o mesmo é dizer que instituíram distância e espaço. Filipe Pinto [o autor escreve de acordo com a antiga ortografia] :::: Notas [1] Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p. 54. [2] Giordano Bruno, Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008 (5ª edição), p. 5. [3] Lucréce, De la Nature, trad. Henri Clouard. Paris: Garnier-Flammarion, 1964, p. 44. [4] Heraclito, “Fragmentos 76”, in Fragmentos Contextualizados, trad. Alexandre Costa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005, p. 97. [5] Maurice Blanchot, O Livro Por Vir. Lisboa: Relógio D’Água, 1984, p. 104. [6] Jacques Derrida, De um Tom Apocalíptico Adoptado Há Pouco em Filosofia. Lisboa: Vega, 1997, p. 8. [7] Idem, p. 15. [8] Paul Valéry, O Senhor Teste. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1985, p. 111. [9] Pascal Quignard, Vida Secreta. Lisboa: Planeta Agostini, 2002, p. 257. |