|
XXIII BIAC: OS ARTISTAS PREMIADOS, AS OBRAS MAIS POLÉMICAS E OUTRAS REVELAÇÕESHELENA OSÓRIO2024-09-20
Neste âmbito, recordamos o performer madeirense Silvestre Pestana, também convidado nesta XXIII Bienal Internacional de Arte de Cerveira (XXIII BIAC), que alia as artes visuais à poesia como modo de resistir à censura, desde os anos 1960-67. Também a pintora luso-angolana Gracinda Candeias realiza na I BIAC uma performance de estreia envolvendo o próprio corpo, juntamente com o bailarino e músico francês Michel. Para citar alguns envolvidos nas manifestações artísticas em espaços adaptados mas em especial na via pública, cuja afluência e práticas dispersas pela vila minhota mudaram definitivamente o seu rumo assinalando-a no mapa internacional da Arte e dos artistas levando tantos a aí se radicarem. Não é que tenha mudado o papel dos novos artistas (este ano, 120 de 20 países), seguindo no fundo semelhantes constatações e reivindicações, que alertam para um mundo quiçá até tornado bem pior. Os políticos e as suas políticas cada vez mais oportunistas dominam um planeta cuja sobrevivência está seriamente comprometida. O tema “És livre?” sugere-o, e não apenas por remeter ao passado adotando o modelo de 1978, agora sob a direção artística partilhada entre a curadora e investigadora doutorada Helena Mendes Pereira e a pintora Mafalda Santos que dirige a Associação Projecto. “Já em 2024, o terceiro ciclo da programação da FBAC para o biénio 2023/2024 foi dedicado ao Brasil, país convidado desta XXIII BIAC. A instituição do país convidado foi um dos motes da revolução a que nos propusemos e, já em 2022, tínhamos dedicado agenda ao Japão”, explica Helena Mendes Pereira no catálogo oficial, fazendo referência ao convite da Art Macao - Bienal Internacional de Arte de Macau 2023 para a qual prepararam a exposição “A metafísica da sorte e a ciência do azar”, agora patente no Convento San Payo com 27 obras da coleção da Fundação Bienal de Arte de Cerveira (FBAC). “Ao longo de quase 50 anos de história e desde o primeiro dia, que as BIAC foram responsáveis por transformar o espaço público local num verdadeiro museu ao ar livre e num espaço de expansão intramuros e, acima de tudo, reflexo de como esta bienal transformou este território.” O Concurso Internacional resulta sempre em prémios de aquisição, num valor pré-estipulado, partindo de um júri de seleção e de um júri de premiação. As várias obras selecionadas espalham-se pelo espaço do Fórum. Em 2024, foram oito os agraciados. O Prémio Revelação Instituto Português de Desporto e Juventude (IPDJ) foi para o díptico da artista moldava radicada em Lisboa, Nicoleta Sandulescu, “Entre objetos” e “Corpo cansado”, 2023, carvão, tinta da china e acrílico sobre papel. “A objetivação da figura feminina (...) vista, apenas como uma dona de casa, ‘engolida’ pelos objetos domésticos diariamente, como simples objeto (...)”, informa o catálogo oficial que se pode adquirir em qualquer dos espaços expositivos. O Prémio Aquisição Câmara Municipal de Vila Nova de Cerveira (CMVNC) contemplou as restantes sete obras e artistas: Ana Mantezi do Brasil, “Mais que rio adentro”, 2022, fotografia digital com impressão em papel, moldura preta e lambe lambe; Bärbel Praun e Flaminia Celata, da Alemanha e Itália respetivamente, “Landscape Archive”, 2023, instalação de som e vídeo de dois canais; Luís Ribeiro, português, “Arder por dentro”, 2023, carvão sintético e pastel seco sobre papel; Natalia Loyola, Brasil, “F(r)icção de grito”, 2024, impressora térmica, papel térmico, componentes eletrónicos, caixa de metal, fios de aço, metal e pedra; Susanne Thurn, alemã, “In between”, 2024, tinta sobre tecido de algodão, fios parcialmente soltos; S4ra, Portugal, “bot3quim”, 2023, vídeo; Tito Senna, Brasil, “T1 30m2”, 2024, marcador com tinta permanente sobre azulejo. Estes prémios de aquisição da CMVNC são posteriormente integrados na coleção da FBAC, sendo revelados na semana anterior à inauguração.
Em visita guiada O museólogo João Duarte, formado em História da Arte, levou-nos em visita guiada opinando sobre as obras levadas a concurso, patentes desde 20 de julho no Fórum Cultural de Cerveira, entre outras de convidados que fazem a ponte para as restantes expostas na Galeria Bienal de Cerveira (antigo edifício dos Bombeiros). É assim possível visitar as exposições do Fórum até ao próximo 30 de dezembro e a da Galeria (exclusiva a artistas convidados) até 28 de setembro. Estas são complementadas por outras exposições paralelas como “A metafísica da sorte ou a ciência do azar”, que esteve patente até 15 de setembro no Convento San Payo – a qual passou por Macau, com 27 obras da coleção da FBAC representativas de oito países de quatro continentes – e “Jaime Isidoro: o pai das bienais”, na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Cerveira, em homenagem ao pintor, contemplando as primeiras edições da Bienal que assinala 46 anos, encontros e atividades. “Somos financiados pela DGArtes que aprovou o projecto bianual ‘És livre?’, que abarca todo o percurso expositivo de três ciclos ao longo de dois anos. A Bienal é o quarto ciclo”, continua João Duarte. “Ao longo destes dois anos tivemos várias exposições, conseguimos manter esta dinâmica do museu estar aberto em permanência com diversas atividades a decorrer, desde logo residências artísticas. Conseguimos estabelecer alguns protocolos com outras instituições, como a Fundação Árpád Szenès - Vieira da Silva ou a Fundação Calouste Gulbenkian. Conseguimos trazer algumas obras no âmbito das exposições que estávamos a organizar”. “Em termos institucionais também procuramos relacionar-nos com outras instituições que trabalham as mesmas temáticas que nós para não estarmos isolados”, destaca ainda. “A exposição de homenagem à escultora e poetisa surrealista Isabel Meyrelles, de 95 anos, é feita em colaboração com a Fundação Cupertino de Miranda com curadoria de Marlene Oliveira da FCM e do Perfecto Quadrado que é do coordenador do Centro Português de Surrealismo. Consideramos o momento oportuno para homenagear a Isabel desde sempre ligada à Bienal”. “Temos a nossa própria coleção, trabalhamos nela, mas queremos trazer outras coleções para estabelecer diálogos entre a nossa coleção e a de outras instituições, partilhar uma dinâmica diferente...” “A Associação Projecto é fundadora da FBAC e três artistas por sua vez fundadores da Bienal Jaime Isidoro, José Rodrigues e Henrique Silva. Daí termos também na parte norte do edifício as quatro salas dedicadas a estes fundadores”, reforça o museólogo da FBAC. “São exposições permanentes à exceção da sala da Projecto que se vai renovando com a própria direção da Projecto acabando por criar uma dinâmica diferente de novas exposições. Agora temos Mónica Favério e Sérgio Lopes com a inVidro, a marca associada ao trabalho desenvolvido na sua unidade produtiva artesanal, que por acaso também está representada nos artistas do Concurso Internacional”.
Organização espacial Logo no átrio do Fórum, estabelece-se uma triangulação: a obra dum artista convidado do Hawai, Andrew Binkley, intitulada “Stone Cloud”, 2017, como seja uma imensa escultura insuflável feita de nylon impresso fotograficamente que paira no ar elevando-se ao piso superior como uma nuvem em forma de pedra com musgo; a obra de Isabel Meyrelles, “Chef d’Orchestre”, sem data, em terracota pintada, que nos remete para essa sala de homenagem no alto do edifício também debruçada sobre o espaço onde se encontram as obras dos artistas do Concurso Internacional; por sua vez, a obra de João Carqueijeiro, um mural modular tridimensional em cerâmica vidrada de 3 x 10 metros, 2011, relembra uma parte da história uma vez que foi feito especialmente para o edifício quando este foi transformado em espaço museológico. “Eram uns estaleiros municipais e, na altura, era necessário um local fixo de exposições e a autarquia fez a reestruturação do espaço”, recorda João Duarte. “Criámos assim neste edifício espaço para a coleção mas também para sede da FBAC e salas de exposição e o Carcajeiro fez este trabalho que fica aqui permanentemente, em material cerâmico”. Por outro lado, nas costas da recepção, o espaço com palco ao fundo conta com a intervenção da Oficina Arara, um coletivo do Porto que aí esteve em residência. De 2022 até então aconteceram três ciclos expositivos, um deles dedicado ao Brasil que é o país convidado em 2024. “Nesta dinâmica dos ciclos expositivos temos sempre exposições temporárias e um período de residências artísticas que se chama ‘Livre Trânsito’, e neste espaço temos uma intervenção da Oficina Arara que apresenta “Olho da rua”, buscando a ideia da pintura de mural e sempre questionando ‘És livre?’, que é a pergunta que fazemos aos artistas, aos curadores, aos programadores para discutirmos a liberdade, porque também estamos a celebrar os 50 anos do 25 de Abril e acaba por se conjugar tudo.” João Duarte salienta ainda que a Oficina Arara faz esta intervenção não apenas com panos-cartazes pendurados, mas também com murais nas paredes e “através do nosso serviço educativo que trabalha a questão de querermos estar em diálogo com as diferentes comunidades que circulam à volta do museu. Contactamos uma série de escolas, associações e outras instituições para fazerem aqui uma participação neste mural. Algo que tentamos fazer quase sempre quando temos artistas em residência. Trabalhamos muito com a APPCDM de Valença”. As respectivas intervenções foram feitas não apenas por utentes da APPCDM, mas por discentes da Universidade Sénior e por um artista de arte popular de Viana do Castelo, Joaquim Pires, que recolhe lixo do rio e doutros entulhos acabando por o trabalhar dando formas diferentes. “Seja quem seja, queremos sempre envolver o artista com alguém da comunidade nestas residências.” “Queremos honrar o legado que nos deixaram, sem esquecer todos os outros que por aqui passaram, os fundadores e os que lhes deram continuidade como nós. Isto é um ‘work in progress’ e nós estamos a dar continuidade ao que foi o trabalho sobretudo de Jaime Isidoro e dos que se seguiram”, mais acrescenta João Duarte. “O projeto Livre-trânsito ciclo permanente de residência e intervenções artísticas pretende recuperar Vila Nova de Cerveira como território de ação e criação artística, estabelecendo uma relação entre a Casa do Artista Jaime Isidoro, os espaços oficinais e das galerias do Fórum Cultural de Cerveira, bem como as freguesias de Vila Nova de Cerveira”, explica a organização da FBAC logo à entrada do salão onde se desenvolve o dito projeto.
Concurso Internacional Segue-se Alexandre Vogler, também artista convidado, vindo do Brasil, que se antecipa aos restantes que dispersam pelo imenso open-space. Melhor dizendo: é o guardião da obra dos concorrentes selecionados, quase estabelecendo um elo com um planador de asa delta que ocupa grande parte do espaço. Como se pretendesse sobrevoar a exposição resultante do Concurso Internacional, revelando porém outro sentido no vídeo do primeiro voo de asa delta que apresenta, relacionado com a obra “1974”, óleo sobre madeira (vela), e asa delta (monumento), 2024. “Em 74 temos a nossa revolução em Portugal, mas também em 74 no Brasil, em contexto de ditadura militar que se vivia à época, dá-se o primeiro voo de asa delta no Brasil, e este é o registo desse voo no Rio de Janeiro”, esclarece João Duarte. “Criámos assim uma ligação não apenas aos artistas que andam neste vaivém transatlântico mas a ideia de liberdade, para estes dois voos livres entre os dois países irmãos". Como se fosse sobrevoar os planos expositivos e ligasse umas e outras mostras de artistas convidados, concorrentes e homenageados. Acaba por ocupar uma grande área do espaço, quase passando para segundo plano as restantes peças. Mais propriamente no cerne do edifício, descortina-se a seleção de obras do Concurso Internacional, que desenham um circuito serpenteante no espaço quiçá simulando esse primeiro voo. “Tivemos 469 projectos artísticos que se candidataram, foram selecionados apenas 50, portanto esta é uma ínfima mostra daquilo que é um concurso internacional na Bienal de Arte de Cerveira.” João Duarte aponta “Arder por dentro”, 2023, do artista português Luís Ribeiro, logo à entrada do Fórum, um desenho onde “vemos plantas que insistem em renascer no terreno queimado, entre pedras, na luta permanente pela liberdade”, pode ler-se por sua vez no catálogo da mostra. O brasileiro Tito Senna, com “T1 30m2”, 2024, também premiado, apresenta “um trabalho muito especial porque é pintura sobre azulejo não cosido. Como o Brasil foi o país convidado tivemos muitos artistas brasileiros que se candidataram e alguns foram selecionados”, remata o museólogo. “Tito Senna vive em Portugal, no Porto, e faz-nos olhar para esta obra e perceber algumas práticas da contemporaneidade, daquilo que é o mercado imobiliário e a forma como os imigrantes são recebidos seja em Portugal seja noutro país. Quantos cabem num T1, é a proposta. É uma planta de quantas pessoas cabem num T1 porque não têm hipótese de ter uma casa própria, especialmente com os preços praticados em rendas atuais. É uma crítica social”. “Neste contexto é importante percebemos quais são também as preocupações dos artistas. Temos de perceber que vivemos numa nova era de escravatura, os próprios portugueses são escravizados pelo sistema, não é preciso ser imigrante. Convém-nos a nós olhar para anos da história não omitindo só o que nos interessa”, afirma. “Lembra-me os navios negreiros dos séculos XVI-XVII, mas também me consigo lembrar das práticas atuais diárias que tantas vezes assistimos nas notícias sobre o Alentejo onde as pessoas são enfiadas em contentores sem qualquer tipo de condições”. Também a brasileira Natália Loyola se destaca com “F(r)icção de grito”, 2024, “uma obra ingrata porque avariou. Este díptico é uma coluna com um som direcionável. A fricção do metal cria um som muito próprio e as partes estão relacionadas porque o sistema sugere quase que o som funcione como laser. A coluna é apontada em diferentes direções e ouve-se o som noutros sítios por causa da ressonância que faz nas paredes, o que está relacionado com este registo”, explica João Duarte. “Esta obra já foi apresentada pela artista e esta decide não a pôr a trabalhar como devia ser mas por opção sua. Era uma obra que estava conectada via Wi-Fi com um sistema ligado à bolsa de valores e cada vez que subiam as ações da Vale, a maior mineradora do Brasil, com uma produção diversificada que inclui minério de ferro e níquel, dava um sinal à impressora que acabava por imprimir um poema de Drummond de Andrade”. “As pessoas podem pegar no registo e ler. Era algo quase interrupto, mas depois a artista acabou por perceber que a própria impressora tinha alguns erros de programação. A impressora veio da China e acabamos por ter ao longo dos textos alguns caracteres em Mandarim. Algo que veio do acaso acaba por completar ainda mais a obra. Há uma crítica clara àquilo que é a exploração dos recursos naturais do Brasil, neste caso.”
Burhan Yilmaz, Circle (2023). XXIII BIAC, Fórum Cultural de Cerveira. © Helena Osório
No centro da mostra, destaca-se a obra do turco Burhan Yilmaz, “Circle”, 2023, à imagem dum sol que ilumina tudo em redor (ou girassol, absorvendo a forma do astro-rei). A instalação é feita de luvas de trabalho amarelas, que “cria uma forma que faz lembrar a do girassol”, reforça João Duarte. O material remete a certas peças da artista japonesa Yayoi Kusama, que expõe no Museu de Serralves (até 29 de setembro) a sua maior retrospectiva europeia. “Uma instalação sobre placa de MDF que pode ser aplicada diretamente na parede. O artista fala-nos sobre uma história de luta pela liberdade, quase um lugar ao sol, acabando por assumir as luvas de operário em amarelo como representantes da construção de factores que possibilitam as condições de um ambiente libertador e propício ao trabalho invisível que, muitas vezes, não é valorizado.” Afinal, quantas mãos fazem a obra? O tema “És livre?” leva a muitas reflexões sobre a comunidade LGBTQIA+. O brasileiro Élcio Miazaki apresenta dois vídeos, “Tonsores”, 2023, e “Ablução”, 2023, que “trabalham a homosexualidade em contextos em que, normalmente, as pessoas não associam a questão afetiva e amorosa entre várias pessoas, neste caso em contexto de guerra”. Num dos vídeos observamos dois militares; no outro, um atleta a ser cuidado evocando a camaradagem. “Há um cuidar da outra pessoa mas, claramente, estamos a falar de pessoas do mesmo sexo e é uma crítica àquelas áreas em que pessoas do mesmo sexo convivem diariamente, um grande estigma que possam ser carinhos e que umas e outras possam apaixonar-se numa situação caótica, sentirem amor”, pondera João Duarte. Segundo o excerto do texto de Andrés I. M. Hernández, no catálogo: “O artista aviva registos que nas décadas de 1960/70 contribuíram para a reafirmação da libertação do corpo. (...) uma cumplicidade provocadoramente erótica que se solidifica na fruição e no controlo do outro”. Já Mariana Duarte Santos, com “Last chance”, 2022, linogravura de grande formato sobre papel, “fala simbolicamente sobre as pressões e entraves que a sociedade põe à nossa liberdade”, desmistifica o excerto de texto no catálogo sobre a obra que apresenta um grupo de cinco homens que parecem conspirar em ambiente prisional, um deles acendendo o cigarro dum outro supostamente a ser interrogado. Há ainda uma “singela homenagem” a Amílcar Cabral, “Um marco chamado Cabral”, 2024, da portuguesa Isabel Ribeiro em guache sobre papel. “Uma obra muito delicada, muito frágil”, intervém novamente o museólogo da FBAC que nos acompanhou na visita. Segundo a nota do catálogo: “Este trabalho convoca a figura de Amílcar Cabral na luta pela independência da Guiné Bissau e Cabo Verde (em 2024 faz 100 anos do seu nascimento). Pegando no ‘súmbia’ (gorro típico africano) que ele usava nas intervenções públicas (...)”. “A mensagem é que não precisamos de armas para levar as nossas ideias avante”, remata por sua vez João Duarte. À mistura com as obras concorrentes, surge inesperadamente o artista madeirense convidado, António Barros, que já está representado na coleção da FBAC “É um artista sénior bastante respeitado no meio, temos uma obra dele que foi prémio da Bienal, mas ao contrário dos outros anos em que os artistas recebiam o prémio e eram automaticamente convidados para a exposição dos convidados tomou-se uma decisão e a meu ver bem, que deve existir um projeto curatorial para os artistas convidados, não ser um convite tácito porque isso não trás a novidade e a vanguarda do que se está a fazer”. Ainda segundo João Duarte: “Esta obra é especial porque tem uma carga política associada. Obriga-nos a fazer uma reflexão sobre a atualidade política nacional e a atualidade do que são os nossos dias num contexto em que temos a dimensão que temos. Entre a cegueira que nos querem impor, disfarçadamente dizendo que são muito democráticos e logo deixam de o ser”. António Barros confessa-nos o porquê da adesão à XXIII BIAC: “Eu continuo a participar por memória aos meus Amigos do passado – José Rodrigues, Jaime Isidoro, Egídio Álvaro, Miguel d’Alte, que também já não estão entre nós, e pelo Henrique Silva e Augusto Canedo. Afetos meus. Sou um artista de PAZ contra a guERRA que ERRA. E nas artes (que é também um território de guerra devido à competição) tento não fazer parte de guerras”. “Dos muitos, um dos momentos interessantes da minha relação com a BIAC, é a surgida com elementos do Movimento FLUXUS (o Filliou, o Serge III Oldenbourg, o Vostell) [1]. A análise e a crítica considera que sou um dos artistas portugueses mais enquadrável na identidade FLUXUS.” Seguem-se as salas da Associação Projecto e dos três fundadores homenageados (Jaime Isidoro, José Rodrigues e Henrique Silva) organizadas pelas famílias que assinam a curadoria, a nosso ver merecedoras de uma maior visibilidade (e respiro). Se bem que na Biblioteca, sedeada no setecentista e belo Solar dos Castro, mais uma sala se encha com a mostra documental sobre a passagem por Cerveira do pintor e aguarelista portuense Jaime Isidoro e também com alguma pintura feita na eleita vila das artes. “O centenário do nascimento bem como os 70 anos da Galeria Alvarez, aberta a 4 de maio de 1954, foram efemérides assinaladas de diferentes modos, nunca esquecendo que o mais importante do legado de Jaime Isidoro é sermos capazes de fazer da sua ação passada, exemplo para o futuro”, opina a curadora da mostra, Helena Mendes Pereira no catálogo da XXIII BIAC.
A convite pessoal Sobre a exposição dedicada a artistas convidados, no antigo edifício dos Bombeiros, que se segue ao mural-retrato do escultor luso-angolano José Rodrigues lá fora, as obras encontram-se expostas com respeito à respectiva leitura, ao mesmo tempo que dialogam umas com as outras de forma eficaz e única tendo em conta as diferentes expressões e temáticas trabalhadas. Gigantescas peças enchem as paredes e espaços centrais obrigando-nos a parar e a repensar o mundo global que nos rodeia como faz a arte e os bons artistas. Logo à entrada, anotamos algumas delas como o vídeo cíclico do escultor israelita radicado em Londres, Zadok Ben-David, “Sour sweet” (Agridoce), 2022, em que a sombra do observador entra na obra. Quase se relacionando com a borboleta que “aparece e desaparece, como se fosse um intruso colorido”, que presencia também “a transformação contínua de uma flor de lótus”, pode ler-se no catálogo.
Zadok Ben-David, Sour sweet (Agridoce), 2022. XXIII BIAC, Galeria Bienal de Cerveira. © Helena Osório
Em grande plano, o estudo do lisboeta Ramiro Guerreiro, “Salò”, 2015-2024, “à escala real de duas tapeçarias que constam do décor do filme ‘Salò o Le 120 Giornate di Sodoma’ de Pier Paolo Pasolini (1975)”. Um imenso desenho com lápis de cor e tinta acrílica sobre pano cru preparado. No mesmo contexto, ao fundo, destaca-se o vídeo do portuense Luís Palma, “O milhafre”, 2024, que se divide em duas partes, “separado por duas perguntas, que acabam por marcar a nossa atualidade política”, onde um homem velho “questiona o futuro de uma causa que parece perdida”. Noutro oposto, surge “Água”, 2020, da artista angolana Ana Silva que destaca nesta sua série de bordado e desenho sobre tecido “o difícil acesso à água no seu país de origem”, não obstante a abundância deste recurso no território: “Angola país da água, onde a água corre por todo o país, por todo o lado menos para o povo”, lê-se também no catálogo. Por sua vez, o luso-moçambicano Manuel Santos Maia surpreende com “alheava - outras paisagens afastadas”, 2024, fotografia, sublimação sobre tecido, integrada no projeto Alheava “dedicado às questões do colonialismo e pós-colonialismo, numa perpectiva transtemporal, aliando a História social e política, às narrativas familiares e à auto-ficção (...)”. As duas ilhas individuais do dinamarquês Søren Dahlgaard, “The inflatable island”, 2013, em tecido ripstop de nylon e ventoinha, obrigam-nos a parar não apenas pelos oito metros de cumprimento ou pela ideia dum paraíso perdido, mas pela chamada de “atenção para as questões das alterações climáticas e da migração”. Sem esquecer o filme “The island” que prende relacionando-se com “a paisagem de várias formas”. Contracenam com a fotografia de João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira, “Pink flamingos”, 2024, tirada por ocasião da aquisição do parque de campismo em Melides para um resort de luxo, que fez com que milhares de pessoas fossem privadas do espaço. “Comprem tudo e atirem-nos ao mar. Teremos sempre as nossas bóias cor de rosa para flutuar”, refere a dupla de artistas portugueses. Seguidamente, o poeta performer madeirense Silvestre Pestana está representado com a instalação com painéis LED a cores, “Vitrine”, 2024, que anuncia uma nova poética. Noutro espaço, o lisboeta Isaque Pinheiro radicado no Porto apresenta “Torna viagem”, 2018-2022, em mármore de Estremoz, madeira, borracha, corda, tecido e aço. “Esta peça hesita entre o clássico e algo a haver”, por entre destroços e movimentos dum navio imaginário que a nós recorda a poesia versus naufrágio de Camões que comemora 500 anos do nascimento precisamente em 2024. Na envolvente, intriga-nos Maria Trabulo – artista portuguesa que vive e trabalha entre o Porto e Berlim – com “Dome Bunker I”, 2022, da série Fragile Stones, solo (areia e argila) proveniente de escavações na Síria e em Portugal, “sugerindo que, apesar de desaparecida, em parte soterrada, a coleção e o museu podem ‘ressurgir do solo’(...)”, informa um excerto de texto no catálogo, referindo-se a Raqqa que foi palco de grandes batalhas. De cima abaixo do espaço, o catalão Antoni Muntadas, radicado em Nova Iorque, eleva “Palabras...”, 2017-2020, impressão digital sobre lona têxtil, que chamava nos anos 70, de paisagem mediática’. A política e os media têm contribuído para esta degradação”. Também Fabrizio Matos apresenta um tríptico negro, no caso intitulado “Don’t get me wrong I’m only dancing”, 2024, em pó de carvão sobre linho, representando esqueletos em “danças macabras, que são uma alegoria artístico-literária do final da Idade Média sobre o carácter universal da morte, que expressa a ideia de que não importa o estatuto de uma pessoa em vida, a dança da morte une a todos”. Uma verdade que nos tornaria melhores se a pensássemos mais. Nesta exposição, a comissária Mafalda Santos “reúne 26 artistas de diferentes gerações e geografias, com obras inéditas, ou especificamente selecionadas pela pertinência e afinidade com o tema proposto. (...) Dos Estados Unidos à Dinamarca, de Portugal ao Brasil, Espanha, Angola e Moçambique, nas obras dos artistas podemos destacar diferentes abordagens e perspectivas transversais que se prendem com questões associadas à liberdade”, refere no catálogo, “englobando o questionamento da nossa história e legado colonial, as lutas de poder e de memória, da liberdade de identificação e afirmação de género, a força política e poética das palavras, o humor e a vitalidade da dança entre a vida e a morte”. Em suma: uma exposição muito completa, com grandes vultos da arte internacional, repleta de mensagens contemporâneas que despertam todos os sentidos e nos deixam a (re)pensar.
Helena Osório
:::
Notas [1] Segundo António Barros, “uma obra de contaminação situacionista [Guy Debord] e neodadaista”, pois vários analistas consideram-no um dos artistas portugueses mais enquadráveis na senda do movimento artístico internacional FLUXUS onde começou por encontrar-se com Robert Filliou, o gerador do “1.000.010' Aniversário da Arte” [Neue Galerie der Stadt Aachen, 17.01.1973], Filliou cuja obra vem a ser apresentada pela BIAC, mas foi aí que veio António Barros a colaborar com Serge III Oldenbourg, num happening sobre “Arte Sociológica”, criando uma peça inédita [hoje na coleção da Fundação de Serralves]; e a fazer legado de um Concerto FLUXUS dirigido por Oldenbourg, também na BIAC. António Barros gerou um genuíno Objecto Livro-de-Artista, que retrata este Concerto, gesto “único”, e momento singular na História da BIAC [com interpretação de: Henrique Silva, Assunção Pestana e Manoel Barbosa]. Numa Cultura FLUXUS, António Barros trabalhou fundamentalmente com Wolf Vostell, na Alemanha, e em Espanha no MVM_Museo Vostell Malpartida, e colaborou ainda com Yoko Ono [MuseuSerralves] e hoje traz-nos uma elegia a Ben Vautier [Galeria dos Prazeres, em: “ESCRAVOS.INSULAE...”, 2024]. Também numa identidade FLUXUS, e num jus às artes performativas, António Barros criou o ARTITUDE:01 [comunidade artística que gerou o: “Projectos & Progestos”] que, na BIAC, no cenário do crepúsculo apresentou a distintiva performance, nas águas e margens do rio Minho – “Aquaplaning”.
:::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::
Silvestre Pestana, Vitrine, 2024. Instalação com painéis LED a cores. Grande Prémio XII Bienal Internacional de Arte de Cerveira 2003.
“VITRINE”, POEMA EXPANDIDO COM ESCRITA LUMINOSA
A produção artística em qualquer uma das formas institucionais, na qual a POESIA se destaca, ao exercitar o VERBO, e desse modo, formular imaginários carregados de Sentido, estes acompanham historicamente as múltiplas mudanças tecno-sociais fortemente transformadoras no seu específico modo de produção. A Poética que ainda perdura, de raiz modernista, acompanha de uma forma eficaz o exercício da montagem de múltiplos dispositivos que ampliados e transmitidos pela rádio, enfatizam os sentimentos, ampliando exponencialmente as sensações cinestésicas do ouvinte. A leitura da instalação VITRINE, 2024, enquanto Poética da Escrita Luminosa disponibilizada em painéis Leds de baixa resolução, é intensamente urbana, opera nas auto-estradas, hospitais, aeroportos, painéis de comando, videogames e é anunciada como veículo inerente ao desenvolvimento da comunicação nas emergentes Smart Cities. A instalação VITRINE, vem assim na sequência de uma outra chamada TERRAS RARAS, 2019, dedicada ao poeta e académico brasileiro, investigador do pós-verso Omar Khouri. Esta instalação, poema expandido, foi apresentada no Museu Coa e no Museu Nadir Afonso em 2023 e por último no Museu da Misericórdia no Porto em 2024.
Silvestre Pestana Museu Coa | Museu Nadir Afonso | Museu da Misericórdia
António Barros, Não cega, 2024. Instalação em ferro, zinco, tecido e texto gravado (175 x 50 x 50 cm). Coleção Particular António Barros.
N ã o c e g a ! [ Não arte _ artitude, a: #49/50 ]
O poema visual: “E cega?”, aqui inscrito na assemblage objecto-livro: “Não cega!” [1], surge como uma artitude – uma sociológica arte de acção, e pretende cumprir um desígnio do binómio: Arte_Educação. Procura o gesto responder, de modo operativo, a um manifesto plural na senda da celebração dos 50 anos do 25 de Abril, razão do devir da Liberdade e Democracia em Portugal, em 1974. A presente edição do poema de situação, versão #5/5, surge numa condição hermenêutica a cumprir o tema em desígnio convocado pela XXIII BIAC – “És livre?”, e aí presente até dezembro de 2024. Sofrerá depois o obgesto, em legado, uma metamórfica leitura performativa, criando-se assim o texto final, e a inscrever numa colecção pública – seja o progesto, um: texto_escultura_social. A unidade #1/5 de “E cega?”, camisa com o poema grafado, presenteou o Presidente da República Portuguesa. #2/5, reside, em convulsiva operação, em: “ESCRAVOS.INSULAE_Do 25 de Abril, 50 anos depois”, Galeria dos Prazeres, ilha da Madeira, até 28 de outubro [e a ser inscrita, junto à obra: “Silêncio...”, 2018 [2], no Museu da Presidência da República Portuguesa (MPRP)]. Inscreve a peça #3/5 a colecção do reitor de uma universidade portuguesa, que ‘veste’ a camisa. #4/5 pode ser visitada no CAA, Águeda, em: “Ainda, um elefante na sala”, até 13 de outubro, onde acompanha o objecto-texto: “Portugal no seu melhor” [3]. Assim, como nos 40 anos do 25 de Abril, com a operação “Lástima”, gerei 40 poemas visuais enviados à Assembleia da República, agora, na celebração dos 50 anos da Causa de Abril, trago 50 artitudes, onde “Não cega!” para a BIAC, artitude #49/50, surge a par das presenças em: “Revolução já! _poesia pública”, Jornal Público; “Pré/Pós - Declinações visuais do 25 de Abril”, Museu de Serralves; “Cravos e Veludo_Arte e Revolução, 1968-1974-1989, MNAC; “O exercício da Liberdade”, Aveiro 2024, Capital Portuguesa da Cultura; e. o. – 50 artitudes, com a camisa para o Presidente ao fundo. No alinhamento dos Encontros Internacionais de Arte, desde a sua V edição, aí a primeira edição da BIAC, 1978, a seu tempo, acompanhei a construção deste lugar como um pretenso território experimental e convivial para as artes, mormente performativas, e das artes do comportamento e de situação. No início dos anos 80 – depois de apresentar no CAPC, Círculo de Artes Plásticas de Coimbra, e nos “30 anos da Fundação Calouste Gulbenkian” – levei à BIAC a peça icónica: “Algias, NostAlgias”, 1980. Surge, anos depois, “EX_Patriar”, 1999-2012, Prémio Aquisição da 17’BIAC, em 2017, tendo participado como artista convidado nas edições seguintes (com obras hoje em colecções como a do Museo Vostell Malpartida, Espanha; ou a do MPRP); e antes fui eleito autor da Identidade Visual da BIAC, para a VII edição. Em 2024, à pergunta: “És livre?”, respondo com uma das 50 artitudes (d)enunciando que: 50 anos de Liberdade e Democracia não chega. Não cega!
António Barros
_____ Notas [1] A instalação_work in progress: “Não cega!” espelha-nos, e aos nossos conturbados tempos, contando a fatal história de um pássaro, a desnorte, que con_fundiu a gaiola com a liberdade. Metafórico, hoje vestindo uma armadura na finitude de um pássaro, surge “Não cega!” – um corpo sombra entre a multidão, como um cidadão anónimo diluído na sala, inventando o voo, e seu norte.
[A adopção do acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores do texto.] |