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O DECLÍNIO DA ARTE: MORTE E TRANSFIGURAÇÃO (I)MARIA BEATRIZ MARQUILHAS2012-05-21A problemática envolvida na teoria hegeliana do fim da arte é convocada pela actualidade, sendo uma reflexão em torno desta indispensável para uma compreensão dos percursos conceptuais e técnicos percorridos pela Arte até à situação em que esta se encontra na contemporaneidade. O fim da Arte em Hegel representa um declínio que configurou uma ruptura absoluta na narrativa das manifestações artísticas e uma crise da representação do real, pois que da Arte, em todos os conceitos e pressupostos teóricos e práticos que a constituem, apenas ficou o nome que lhe damos para estabelecer uma conexão entre duas tão longínquas eras da expressão humana. A arte moderna convoca a arte que a antecede para renegar o seu legado. Uma nova representação do real emerge e a arte torna-se superfície que espelha subjectividades na sua complexidade e singularidade. Uma autoridade divina e absoluta é deserdada e o humano volta-se para a experiência humana, em todas as suas vicissitudes, para a depositar na obra de arte. O que concebíamos como Arte não é mais aquilo a que esta corresponde hoje, e uma reformulação teórica torna-se indispensável para que possamos compreender não apenas a realidade artística na sua totalidade, mas também para que possamos compreender melhor o tempo em que vivemos através das representações do real que, nas obras de arte, podemos indagar. I. O declínio da Arte na estética hegeliana Em Hegel, o declínio da Arte é anunciado tendo por base o pressuposto filosófico de que a Arte consiste na expressão sensível da Ideia. O contributo da estética hegeliana para um pensamento da Arte de um ponto de vista histórico é intrínseco à singularidade da abordagem do filósofo, sendo esta inseparável do sistema filosófico que, na sua complexidade, o define. Pensada partindo do tríptico filosofia, religião, arte, a criação artística atinge o seu apogeu no seio da Arte Romântica, seguindo-se o seu declínio, que dá proeminência à Filosofia, enquanto expressão do Absoluto. No interior de uma abordagem historicista da Arte, o filósofo alemão distingue três formas de arte, correspondendo cada uma a três épocas históricas e aos respectivos estados evolutivos da Ideia na razão humana. As peculiaridades de cada uma das épocas artísticas prendem-se com o modo como, nas obras de arte, a forma se relaciona com o conceito a exprimir. Na arte simbólica, a ideia não adquiriu ainda a sua forma artística, exteriorizando-se sem, no entanto, se identificar com o seu suporte. À segunda época corresponde a arte clássica: forma e conceito identificam-se em equilíbrio e harmonia, não alcançando ainda a espiritualidade e a intimidade que revelam verdadeiramente o espírito absoluto. Por fim, na arte romântica, a ideia estética toma íntima consciência do seu carácter absoluto, conceito e forma unem-se estreitamente, o conceito, agora absoluto, transborda da forma, numa implosão que representa a manifestação mais elevada da ideia. Através da arte romântica a arte ultrapassa-se a si mesma [1]. A busca por uma (re)conciliação do espírito com o mundo, operada através da Arte, termina, dando lugar à liberdade do sujeito perante a criação artística [2]. O esgotamento da criação romântica, concomitante com o alcance do Absoluto e posterior queda em exaustão das formas e conceitos em uso, encaminha a Arte para o subjectivismo, e o criador volta-se para si mesmo, o humano tende assim a, mediante a criação artística, exprimir o humano, encontrando no seu interior os conteúdos que na obra adquirem uma forma. A Arte chega assim ao fim enquanto estrutura de expressão da ideia do absoluto e do divino, i.e., no interior da concepção hegeliana de Arte enquanto meio de ascensão do espírito humano [3]. A história da arte em ruptura e o domínio artístico é substituído pelo domínio filosófico no que diz respeito às questões espirituais intrínsecas à existência humana [4]. A Arte corresponde assim a um estado de transição no caminho de auto-conhecimento trilhado pelo ser humano na sua historicidade. Hegel é, ao anunciar a morte da arte, o arauto de uma nova era da razão, tendo esta por essência do espírito o pensamento filosófico, que, até hoje, se tem vindo a revelar como último e definitivo estado espiritual. Os postulados lógicos da filosofia hegeliana levam a uma dissolução da Arte, enquanto processo ideal e histórico. A Arte passa a pertencer ao passado, constituindo uma matéria histórica, sendo o acesso a esta agora de cariz arqueológico. O declínio da arte romântica, bem como a consequente subjectivização na arte e o pluralismo de vozes que esta assim adquire, estão, concomitantemente, na origem do declínio da arte e de uma narrativa histórica contínua a esta anteriormente associada. Toda a Arte é hoje pós-histórica. A dissolução da Arte corresponde assim à libertação da mesma relativamente a conceitos e mormente, no que diz respeito à sua afinidade com a esfera do espiritual e do divino [5]. A expressão artística continua, e continuará, a ser uma prática humana, no entanto, a sua forma cessa de ser a da manifestação sensível do espírito, i.e., a função histórica que anteriormente desempenhava perde razão de ser, sendo esta função remetida para outras esferas da existência. A contemporaneidade é uma época habitada por artistas que, libertos das amarras do absoluto, criam obras que reflectem a sua interioridade humana, demasiado humana, deixam de olhar para cima procurando explicar, pela Arte, o que vêem. Voltam-se para os meandros da existência humana, representando-a, em toda a sua complexidade, numa Arte que, deste modo, se complexifica numa polifonia de vozes coexistentes. Em liberdade, o sujeito ensimesmado da modernidade vê (re)nascer a Arte, agora a-histórica e marcada por rupturas e descontinuidades [6]. Maria Beatriz Marquilhas NOTAS [1] “When the content is exhausted and all the symbols bereft of their meaning, then the absolute interest is lost, and art, having fulfilled its special mission, is rid of this content. Further artistic activity along this line proceeds only in contradiction to the content.” Hans Belting, The End of the History of Art?. Chicago: The University of Chicago Press, 1987, p. 10 [2] “A fidelidade a um conteúdo particular e a um modo de expressão que lhe seja adequado, é, para o artista moderno, uma coisa do passado, e a mesma arte se tornou um instrumento livre que o artista pode aplicar, na medida dos seus dons técnicos, a qualquer conteúdo de qualquer natureza. É assim que o pintor se coloca acima das formas e figuras consagradas, evolui livremente e não se subordina aos conteúdos e concepções que outrora se impunham à sua consciência como sagrados e eternos.”, G. W. F. Hegel, Estética. Lisboa: Guimarães Editores, Lisboa, 1993, p. 337 [3] “Art is now an object for study and philosophical analysis, but it no longer satisfies, by itself alone, the deepest needs of the spirit. We have outgrown art.” Arthur Danto, Hegel’s End of Art Thesis, 1999, p. 2 [4] “Vêm, finalmente, o humor que rompe a união do divino com este conteúdo especificamente limitado, que abalou e até destruiu todas as precisões e assim obrigou a arte a ultrapassar-se a si mesma. A consequência disto foi, porém, o regresso do homem a si mesmo, ao seu mundo interior, e a arte viu-se assim libertada do mundo interior, e a arte viu-se assim liberta de toda a ligação a um conjunto limitado de conteúdos e concepções. Teve, então, a arte um novo ídolo representado pelo humano, ou seja, pelas profundezas e cumeadas da alma humana, o humano em geral com as suas alegrias e seus sofrimentos, suas aspirações, seus actos e seus destinos. A partir desse momento, o artista encontra em si mesmo o seu conteúdo, é o espírito humano que a si mesmo se determina, que medita sobre o infinito dos sentimentos e situações, que descobre esse infinito e o exprime, espírito humano a que nada do que há na alma humana é estranho. É um conteúdo que como tal, está desprovido de expressão artística pois é a invenção pessoal que lhe confere precisão e lhe elabora a forma, sem no entanto excluir qualquer outro interesse; a arte não se limita, assim, a representar o que é domínio seu mas pode alargar-se a tudo o que se refere e se relaciona com o homem.” Hegel, Estética, p. 338-339 [5] “The whole internal logic of the history of art culminates in an absolute artistic freedom.” Arthur Danto, Hegel’s End of Art Thesis, p. 8 [6] “Art therefore has become a free instrument which the artist uses for himself and with regard to the substance of his own consciousness.” Hans Belting, The End of Art History?, p. 10 |