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OPINIÃO


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RUY DUARTE DE CARVALHO: PELA MISCIGENAçãO DAS ARTES



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Há por vezes quem nos deixe confusos e indecisos, quem nos baralhe as referências, quem desarrume de si a ordem classificatória das coisas, das ciências e das artes, e quando assim acontece pode ser que questionemos as fronteiras com as quais nos acostumámos a lidar e a gerir o mundo à nossa volta.

No ciclo dedicado a Ruy Duarte de Carvalho “Dei-me portanto a um exaustivo labor”, que decorreu entre 11 e 17 de Fevereiro no CCB, foi-nos dado a ver a multiplicidade das formas e dos objectos com que se manifesta a obra singular deste artista, que tem a particularidade de nos desconcertar pela forma com que põe em causa os códigos e os limites classificatórios do seu trabalho. A obra de Ruy Duarte de Carvalho [RDC] é de alguma forma um arquétipo da pós-modernidade, operada através de uma mistura de signos e num ecletismo permanente. Uma obra que faz do sincretismo a sua própria linguagem e a sua mais valia artística, surpreendendendo o espectador ao baralhar os referenciais clássicos, em que a cada suporte corresponde uma linguagem e as suas ferramentas epistemológicas.

Nada representa tão bem os dias que correm como o trabalho de RDC, onde cinema, fotografia, ficção, poesia e antropologia não se entendem enquanto compartimentos estanques da sua própria vida e obra, mas transmutam-se com vista a uma hibridização das artes, que será afinal mais uma forma de questionar as fronteiras reais ou invisíveis no mundo “globalizado”.


O território da escrita não tem fronteiras

Os processos globalizantes trouxeram com eles a discussão sobre a validade das fronteiras nacionais e o questionamento sobre a essência das identidades nativas. Paralelamente fala-se cada vez mais de culturas desterritorializadas que permitiriam pensar novas formas de cidadania assentes noutros laços que não o estado-nação bem como na criação de novas paisagens, as etnopaisagens. No entanto, e como as contradições apenas servem para nos fazer pensar melhor, apesar da possibilidade de mobilidade ser uma das características mais marcantes dos dias que correm, e ao mesmo tempo que as fronteiras físicas se vão esbatendo, as pessoas não deixam por isso de estar apegadas aos lugares, e é precisamente essa geografia sentimental, esse apego afectivo ao território que aqui nos interessa focar.

Ruy Duarte de Carvalho nasce em Santarém em 1941 mas naturaliza-se Angolano. Apesar de encarnar como ninguém a ideia do homem desterritorializado e o viajante pós-moderno, o território Angolano adquire quase sempre uma centralidade e uma importância fulcral na sua obra. Angola está quase sempre, nem que seja nas entrelinhas, presente na sua obra. RDC demonstra nas suas abordagens ao país uma capacidade reflexiva característica da Antropologia, em que tanto observa de dentro como de fora, conseguindo posicionar-se por vezes enquanto espectador e outras enquanto actor, oscilando entre uma abordagem de escala alternadamente macro ou microscópica. Mesmo quando parte para o sertão brasileiro como em “Desmedida” (1), Luanda é sempre o ponto de partida e o ponto de chegada, e o Brasil quase um pretexto para se colocar na posição da alteridade, na pele do “outro” e do “estrangeiro”, invocando pelo caminho Blase Cendrais, Richard Burton, João Guimarães Rosa e Euclides da Cunha. É precisamente esta dualidade, entre a diáspora académica com que pontua o seu vasto curriculum e a necessidade de voltar à pátria afectiva para a filmar, fotografar, descrever e etnografar, que faz de RDC um paradigma dos dias que correm e das questões específicas da pós-modernidade.

Se, por um lado, a sua obra é o exemplo puro do esbatimento das fronteiras entre géneros e entre campos disciplinares, onde pauta o sincretismo e reina a mistura entre ficção e narrativa antropológica, cinema e poesia, e onde afinal a escrita é o que une tudo e o único denominador comum; por outro, RDC é um homem apegado a um território que escolheu e chama seu, essencializando de alguma forma a sua Angolanidade electiva.


Da Antropologia se faz arte

Muito mais do que a imagem, a centralidade da obra de RDC é dominada pela escrita nas suas múltiplas formas, nos seus múltiplos domínios e variantes. Não será certamente por acaso que refere frequentemente a ligação do cinema com a literatura. Ruy Duarte de Carvalho escreve como quem filma e filma como quem escreve, criando desta forma um misto de deslumbramento e perplexidade face à facilidade com que mistura os idiomas da escrita, com que maneja habilmente as ferramentas da linguagem, e finalmente a mestria com que as aplica aos mais diferentes objectos. Para RDC “a poesia é um extremo esforço e um extremo feito da linguagem” (2) enquanto que “o cinema representa e ritualiza aquilo que representa através do seu próprio rito” (3). A fusão e intersecção das linguagens que utiliza não impedem que RDC tenha uma plena noção do impacto e da validade dos suportes que utiliza para a apresentação do seu trabalho. Uma das suas mais óbvias características será a forma como consegue frequentemente criar uma tensão entre ficção e realidade, onde o meta-discurso assume um papel preponderante neste vacilar entre a totalidade e a fragmentação sempre presente na sua obra.

É de um trilho que se fala no percurso de RDC, uma coisa leva à outra para o aperfeiçoamento da tarefa da escrita, uma curiosidade desperta a outra e assim a antropologia aparece como uma necessidade imperativa para a compreensão do mundo: “Tanto a minha consciência de poeta como a de cineasta, e antes disso a de técnico agrário, porque essa função me punha em contacto com as populações rurais cuja ruralidade, cuja cultura enfim, eu entendia mal, me trouxeram à Antropologia” (4).
Se as ferramentas da Antropologia se revelam úteis para RDC, (e é afinal através das lentes da Antropologia que muitos dos seus trabalhos podem ser entendidos), em que o seu cinema não deixa também de ter um pendor manifestamente etnográfico, RDC acaba por partilhar também da reflexividade antropológica, pois é precisamente da subjectividade pura do observador e da sua validade que parte o seu trabalho etnográfico, e foi essa a prática antropológica, a subjectiva, que sempre quis fazer sua.
A partir das leituras subjectivas inerentes à prática antropológica RDC pode então fazer da antropologia um território misto, entre a arte e a ciência, entre a ficção e a realidade, um terreno miscigenado que serve como uma luva aos seus propósitos na senda de uma “meia-ficção-erudito-poético-viajeira”, e que encontra suporte técnico por exemplo nos seus filmes em exibição no CCB no âmbito deste ciclo: “Nelisita: narrativas nyaneka” de 1982, e “Moia: o recado das ilhas” de 1989.

Ruy Duarte de Carvalho não é apenas um escritor, e este ciclo que lhe é dedicado no CCB não pretende apenas figurar nas secções literárias dos jornais e das revistas, mas sim abrir ao conhecimento público o espectro abrangente e pluridisciplinar da sua obra. Ruy Duarte de Carvalho é acima de tudo um artista, cuja obra e percurso artístico utiliza a escrita como ponto de confluências e de inspirações, que a usa como o fio condutor e o instrumento de eleição, o que dota eficazmente de coerência e consistência o seu versátil trabalho. Desfrutemos pois da sua arte sem fronteiras.


Joana Lucas
Investigadora na área de Antropologia


NOTAS
(1) CARVALHO, Ruy Duarte de (2006), Desmedida. Luanda – São Paulo – São Francisco e volta, Edições Cotovia, Lisboa
(2) CARVALHO, Ruy Duarte de (1997), A Câmara, A Escrita e a Coisa Dita… Fitas, Textos e Palestras, Instituto Nacional do Livro e do Disco, Luanda
(3) idem
(4) idem ibidem