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PARA QUE SERVE A ARTE? (SOBRE ESPAçO, DESADEQUAçãO E ACESSO) (2.ª PARTE)FILIPE PINTO2011-07-27Para que serve a arte? * (sobre espaço, desadequação e acesso) (2.ª parte) II. Um artista tem pelo menos duas obrigações – construir uma visão do mundo e uma ideia de arte, e estas duas determinações devem ser legíveis no seu corpo de trabalho. Ora, é a partir daquele espaço de desadequação que se torna possível a alguém, ao artista, constituir uma visão do mundo; é esta visão do mundo que vai poder oferecer pertinência ao seu trabalho. Esse espaço de desadequação, fértil, constitui-se como distância que a obra vai tentar gerir. 5. Mas esta visão do mundo não deverá ser necessariamente explícita; esta visão do mundo não deve querer mostrar como o mundo é, nem como devia ser, nem como poderá vir a ser. Aquilo a que chamamos visão do mundo resulta do que se poderia denominar estratégia poética. A poesia pode ser entendida de várias formas, mas para agilizar a argumentação eu destacaria três: poesia como prática da bela forma; como exactidão; como acesso. A bela forma é talvez a maneira como a poesia é mais facilmente reconhecida; dizer o que se quer dizer e dizer beleza ao mesmo tempo; ao conteúdo o poeta acrescenta-lhe a sua ideia de beleza, e tudo isto se lê na pele dos versos; É pelo esforço de exactidão que a poesia se aproxima da filosofia; no verso exacto, com a palavra exacta, a poesia cria conhecimento e fundamento onde se pode alicerçar tudo o resto – só o verso exacto é de utilidade pública, escreveu Mário de Andrade. E é também devido ao carácter de exactidão que tantos poetas são citados; a exactidão, quando alcançada, mostra a melhor forma de dizer alguma coisa – palavras sem rugas, diria Breton; a exactidão é a resistência da poesia à infinitude da linguagem, de que fala Jean-Luc Nancy (5); A poesia, alguma poesia, disponibiliza-nos um acesso ao mundo, um outro acesso; não nos faz ver melhor o que nos rodeia, não nos permite aceder à suposta verdade que repousa debaixo da superfície ilusória das coisas, mas desloca-nos um pouco – Aceito a minha vida?/ Ou mexo no candeeiro,/ desvio-o alguns centímetros/ na mesa, altero/ as relações das coisas. (6) Com esta deslocação do candeeiro, a poesia (a arte) ilumina o espaço em redor da nossa sombra de meio-dia; não nos indica, não aponta, apenas dispõe. Propõe-nos um passo para o lado, uma deslocação, um novo acesso – A noite é a nossa dádiva de sol aos que vivem do outro lado da Terra. (7) Mas não se trata aqui de dar a ver de lado as coisas do mundo, nem de esguelha ou em escorço, nem, muito menos, de as reproduzir dessa maneira, seja em pintura, desenho ou fotografia. 6. A outra obrigação do artista é ter uma ideia de arte, isto é, deve ser possível ler em cada peça o que o artista acha que a arte pode ou deve ser – uma ideia peculiar, pessoal e necessariamente pertinente; aqui, falamos do novo. A pertinência mostra-se-nos como o factor essencial de tudo o que é novo. A pertinência (que é o lugar do novo, o espaço que ele vem ocupar) é o que mune de utilidade e consequência toda a novidade, pois sem aquela, o que é novo não passará de algo absurdo e inconsequente, sem nada que o faça distinguir das outras ocorrências. O novo impertinente – palavra que significa aqui, mais do que incómodo ou arreliação, algo desnecessário, algo que não pertence –, é um novo fátuo, temporário e passageiro, que acontece e desaparece sem que a sua fugacidade tenha aberto qualquer tipo de possibilidade ou linha de fuga; impertinente, logo inconsequente. O novo é um espaço agora ocupado mas antes vazio; um espaço pré-existente, como se percebe. É o novo que cartografa o vazio, isto é, acrescenta-o ao mundo, disponibiliza-o, e com ele, proporciona espaço e possibilidade. O novo implica então este espaço pronto a acolhê-lo, que não o prevê, não o determina a priori, mas como que o aguarda; e é esta pré-existência que lhe confere pertinência e que finalmente o justifica. Este novo não nos concede um vislumbre do futuro, nem nos disponibiliza um ponto através do qual possamos traçar a direcção do progresso; não vai recalibrando o movimento à medida do nosso passo. O novo não recua de um tempo futuro para nos iluminar o caminho, não está à nossa frente, não é uma vértebra da desintegrada vanguarda; enfim, o novo não estende o seu braço e nos puxa na sua direcção, transportando-nos de frente para um tempo à frente, ou melhor, para a frente do tempo; o novo não orienta o nosso devir, apenas desequilibra a nossa lentidão dolente e nos abre espaços – esses são os seus maiores poderes. O novo não muda o horizonte mas o próprio plano que se encontra aquém – o plano onde assenta o passo. O novo faz-nos negociar o mundo como se negoceia uma curva cega. A pertinência, prévia como vimos, não impede o novo de causar espanto e admiração, mesmo que, simultaneamente, lhe reconheçamos um traço familiar e próximo. A pertinência não implica previsão; na verdade, o previsível nunca pode ser novo, senão este seria apenas o desfecho lógico do que se anteviu; o novo não funciona como a adivinha – a adivinha é a pergunta que pede a resposta que a construiu. (8) O novo é como uma ilha inaudita e ainda sem nome, que se descobre no meio de um mar inóspito; ou uma montanha numa floresta num qualquer recanto ainda não percorrido. Só a partir do momento da sua descoberta e cartografia, esses espaços passarão a fazer parte do mundo e das possibilidades do homem. E, claro, essa descoberta original não permite repetições. O novo é sempre uma espécie de descoberta; e só se descobre o que de um certo modo já preexiste. 7. Há contudo um novo que escapa a esta lógica, um novo sem equivalente geográfico – o radicalmente novo; aquele que não descobre mas efectivamente cria; uma nova raiz (radical). É o verdadeiro criador de mundo – exacerba os seus limites, coloniza o infinito. Ao contrário do novo, que apenas ocupa um vazio, este novo radical cria o próprio espaço que irá ocupar, engendra esse espaço inexistente até então, e o seu povo, a sua condição, enfim, a sua pertinência. Cria-se a si próprio e à sua circunstância. Este novo, por assim dizer, nasce, e um nascimento é sempre dramático, seja no caso da rocha ainda lava ardente do vulcão, no choro ensanguentado do recém-nascido, nos gritos de dor da mãe; um nascimento é perfuração do ar, ocupação de espaço. Como exemplo deste radicalmente novo poderemos relembrar a história da Fountain de Marcel Duchamp e da fotografia fundamental de Alfred Stieglitz. Em 1917, Duchamp apresentou ao salão da Society of Independent Artists de Nova Iorque um urinol virado ao contrário, com a assinatura R. Mutt e com o título Fountain. Este salão, sem júri nem prémios, era organizado por aquela associação de artistas que por sua vez tinha sido criada à imagem da francesa Société des Artistes Indépendants, fundada em 1884, para fugir à ditadura de gosto da Academia. Nestas associações, eram os próprios artistas que decidiam o que seria exposto, e, consequentemente, o que se denominaria arte – a arte aos artistas, dir-se-ia. No salão de Nova Iorque, organizado pela associação a que Duchamp obviamente pertencia, cada artista tinha apenas de pagar os seis dólares da taxa de participação para ter a sua peça exposta. Apesar desta estrutura democrática e horizontal, o comité executivo (que verdadeiramente organizava e montava a exposição) excluiu a obra deste Duchamp ocultado atrás do nome R. Mutt. Tenha sido devido à peça se mostrar indecente e grosseira ou apenas por ser um objecto do quotidiano, o certo é que a Fountain não foi exibida. Mas o que nos interessa aqui é o facto de que a peça de Duchamp, depois de negada a sua participação no salão, ter desaparecido – partida, perdida, roubada, destruída, não se sabe. No entanto, já depois da recusa do salão, mas ainda antes do seu desaparecimento, Stieglitz, num acto de solidariedade com Duchamp e de protesto contra a decisão da sociedade de artistas – organização supostamente libertadora de ditaduras de gosto, como vimos –, prudentemente, fotografou o infame urinol em cima de um muito aceitável plinto. É essa a mais famosa, e na verdade, uma das duas únicas fotografias que se conhecem da Fountain original (a outra é uma fotografia do atelier de Duchamp onde o urinol aparece pendurado sob uma porta). Passados uns anos, e devido à importância decisiva dada à Fountain e aos readymades em geral, Duchamp recriou-a. Mas ainda não é a questão da autenticidade que nos interessa. O que se pretende demonstrar com esta história é que, quando Duchamp criou a Fountain, esta não tinha ainda o espaço necessário para existir – mesmo fisicamente, se pensarmos no salão nova-iorquino –, mas logo nesse instante começou a engendrá-lo, a criar o seu povo e a sua circunstância, enfim, a sua pertinência e a sua falta. E esse vazio agora existente seria já tão ensurdecedor que o artista foi levado a recriar a peça para o reocupar. Esta peça não era esperada; não tinha lugar no mundo, e portanto, criou-o. E talvez aquele tipo de vazio criado nunca tenha sido tão visível e sentido como nessas primeiras décadas do século passado. E esse novo vazio foi fotografado (caso insólito), daí a sua perseverança ao longo dos tempos – esse vazio fotografado aparece forçosamente em todos os manuais de História da Arte que cubram as revoluções decisivas. A obra de Duchamp, e nomeadamente esta peça, bifurcou definitivamente o rumo da arte, ou melhor, criou um novo sentido divergente, mesmo que a Fountain não tenha sido o primeiro readymade (como é sabido, o primeiro foi Roue de Bicyclette, de 1913). De um lado teremos a herança romântica, que evoluirá pelo expressionismo alemão, americano, os Color Field painters, Picasso, etc., do outro, aparecerá toda a linhagem da arte conceptual, que, claro, se mostrou determinante nas práticas contemporâneas. Ser novo é ser recente e diferente. Ora, é-se diferente porque se difere – difere-se de algo já existente. No diferente, e igualmente, no novo, existe uma relação entre o existente e o recente; há, por assim dizer, uma linha traçável, uma ligação possível; dir-se-ia até, uma lógica, daqui para ali. O radicalmente novo não permite esta linha. Terá antecedentes, presume-se, mas não serão lógicos, de causa e efeito; no radicalmente novo, como no caso que escolhemos para o tentar ilustrar, a Fountain, parece existir um certo grau de acaso frutuoso, de encontro feliz. 8. A visão do mundo cria acessos – estratégia poética; a ideia de arte – o novo – cria espaço ou disponibiliza-o; na verdade, o novo constitui também ele sempre um acesso, uma abertura ou possibilidade, uma linha de fuga, uma ligação, que ao desaparecer ou degradar-se, faz-nos voltar ao isolamento congénito e à prostração. E é na dor do vazio, quando esse novo acesso subitamente nos é negado, que melhor se percebe o seu poder e alcance. É neste movimento de extensão do mundo que a arte se torna verdadeiramente política; é neste deslocamento que provoca ou disponibiliza ao espectador que a arte se pode tornar determinante. Qualquer obra na qual não seja legível um vislumbre sequer destas duas possibilidades é necessariamente uma obra pobre. Falamos de acesso e de disponibilização de espaço; lembro-me de algo que li num texto de Paul Chan, num dossier da revista Artforum sobre Jacques Rancière: 1968, Checoslováquia. Activistas do Partido Comunista assumem o poder e começam a promulgar uma série de reformas económicas e culturais para tentar reanimar este satélite soviético estagnado. A liberdade de expressão e de imprensa são concedidas. São feitos planos para eleições livres. O movimento torna-se conhecido como a Primavera de Praga. O Inverno chega. Moscovo não pode tolerar estes movimentos de reforma por mais tempo e decide invadir o país. No início de Setembro, meio milhão de soldados da União Soviética e de quatro países do Pacto de Varsóvia marcharam sobre Praga. Ainda que sem armas nem dinheiro, os checos conseguem montar uma campanha de resistência civil contra o exército invasor durante oito meses. Eles não têm nada. E talvez por isso, lutam contra o exército de uma forma que ninguém poderia imaginar. Existem, é claro, os cocktails Molotov e barricadas humanas. Mas o que dizer sobre a pornografia (atirada para os jovens e assustados soldados que patrulhavam as ruas, para tentar distraí-los e assim os impedir de disparar sobre os cidadãos) e os graffitis (como aquele onde se lia: “Porquê preocuparem-se em ocupar o nosso banco estatal? Sabem que não há lá nada?” ) E o meu favorito: Nas primeiras horas da invasão, todos os sinais e placas de indicação de direcções nas ruas de Praga são pintadas por cima. Os tanques invasores vagueiam sem rumo pelas ruas durante horas, depois dias, e depois durante o resto da ocupação, pois todos os mapas da cidade foram também destruídos. (...) A vitória foi de curta duração. As pessoas continuaram a ser abatidas, e a cidade acabou por ser ocupada. (9) Esta é uma bela e possível ilustração de como a questão do acesso é eminentemente política. 9. A arte serve para criar acessos, tanto a si própria como ao mundo que a rodeia; isto é, propõe-nos descobertas não só do que ainda não conhecemos, mas também, e talvez mais determinante, do que já está próximo de nós – ver o novo no mesmo; não mudar o mundo – essa não parece ser a sua função –, mas esticá-lo. Leio em René Char que o olhar é um voto (10); um voto é tanto decisão como desejo; um voto é igualmente opinião, e o verbo da opinião é o mesmo que o da descoberta – eu acho, eu acho que; eu encontro-me; um acesso; um ensaio. Filipe Pinto NOTAS * Este texto é uma continuação do ensaio disponível em: www.artecapital.net/opinioes.php?ref=106 (5) Jean-Luc Nancy, Resistência da Poesia, Lisboa, Edições Vendaval, 2005. (6) Carlos de Oliveira, “O Inquilino”, in O Aprendiz de Feiticeiro, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p. 32. (7) Carlos de Oliveira, “Provérbio”, in Trabalho Poético, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1998, p. 116. (8) Pascal Quignard, Sombras Errantes, Lisboa, Gótica, 2003, p. 167. (9) Paul Chan, “Fearless symmetry”, in Artforum, March, 2007. (10) “(…) Procura o seu igual no voto dos olhares”, in René Char, “Consolação”, in Este Fanático das Nuvens, Lisboa, Livros Cotovia, 1995, p. 93. |