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MUNCH EM DIÁLOGOMARC LENOT2022-11-17
Na parte consagrada a Munch, metade das obras são quadros posteriores à sua viragem de 1908, momento onde, após a sua passagem por uma clínica psiquiátrica para "tratar os seus nervos", evoluiu para um estilo e temas diferentes: ainda que a maioria dos críticos (e dos amadores) se interessa apenas pelas telas mais trágicas e expressionistas do período 1890-1908, e negligencia, em alguns casos despreza, os últimos 36 anos do seu trabalho, a escolha de colocar aqui a ênfase sobre estas paisagens, estes trabalhadores, estes camponeses, nesta pintura mais colorida, mais fluida, que caracteriza este período, é extremamente sensata. Para o primeiro período (1895-1907), metade (16 em 30) das obras aqui apresentadas são gravuras, principalmente sobre madeira, um suporte no qual Munch se destacou e inovou; se algumas das telas deste primeiro período são bem conhecidas (O Beijo, Madona, A Criança Doente, Ciúmes), outras são menos como a Chuva de Outono de 1892. As obras não são acompanhadas de uma nota individual, só podemos lamentar a ausência de contexto. Os temas principais que sobressaem aqui, e que são os que inspiraram os artistas contemporâneos, estão simultaneamente associados ao assunto (as emoções, as angústias, o amor, o desejo e a morte, mas também a natureza) e à execução das obras (inventividade, criatividade, trabalho sobre a gravura, pintura ténue, deixando aparecer a tela). Se quiser saber mais sobre Munch, este provavelmente não é o livro mais adequado (nem a exposição o era), mas não é esse o seu propósito. Cada um dos artistas contemporâneos apresentados aqui foi influenciado pelos temas e pelo estilo de Munch em graus diversos. A influência mais formal diz respeito certamente a Jasper Johns e Andy Warhol. Johns parte de um motivo num dos últimos autorretratos de Munch (1940-43) onde ele se representa velho, de uma rigidez quase cadavérica, entre um pêndulo sem ponteiro e a sua cama, esperando a morte. Johns, recusando todo o pathos, desdobra, multiplica e recolora o padrão geométrico branco, vermelho e bronze da colcha da cama. Separando-se da leitura habitual que privilegia emoção e tragédia, ele presta homenagem ao talento do pintor, à sua composição e, sobretudo, ao flirt incerto com a abstração que Munch, pintor figurativo mas experimental, manteve toda a sua vida. Andy Warhol foi fascinado pelas gravuras sobre madeira de Munch, pela sua capacidade para compor e montar blocos coloridos, pela forma como a própria matéria da madeira aparece na gravura, onde os veios e os nós da madeira se tornam as linhas do desenho, e pelo seu interesse pelo múltiplo. Warhol desenvolveu então em serigrafia quatro das grandes gravuras emblemáticas de Munch: Madonna, Eva Mudocci com Broche, O Grito e o autorretrato com braço de esqueleto. Essa escolha não é evidentemente inocente: uma mulher ideal durante o amor, uma mulher real, desejada, amada mas (mais ou menos) inatingível (Eva Mudocci era lésbica), uma angústia absoluta, e o artista sério e sereno, já marcado pela morte. Reinterpretando estes ícones, conservando as suas linhas mas transpondo-as para um outro suporte, transformando-as em outras cores, Warhol parece devolver-lhes um novo vigor. O que mais interessou a Peter Doig, ao que parece, são as paisagens de Munch, a métrica vertical das árvores e a luz lunar que as banha: aí também uma inspiração bastante formal, mas que vai a par com a dimensão meditativa, silenciosa, melancólica dessas paisagens. Isso é tanto mais verdade quando a paisagem está quase vazia, despovoada, à excepção de uma personagem solitária e desamparada, como em As Cinzas de Munch (que não estava na exposição) onde, ao lado do homem abatido após o amor, a mulher exprime o seu desespero ambíguo numa pose semelhante. A influência formal sobre Georg Baselitz é menos evidente, mas ele recupera à sua maneira alguns dos autorretratos de Munch, sublinhando a tensão trágica (assim como os quadros de árvores). Os numerosos autorretratos de Munch (onde quase sempre se representa mais envelhecido do que ele era na verdade) estão todos imbuídos de melancolia, de angústia, em alguns casos de desespero. Nesse quadro dos Amantes, Baselitz reproduz na verdade uma série de telas (algumas na exposição) que Munch pintou depois de, durante uma disputa com a sua amante Tulla Larsen, um tiro ter disparado e uma bala de revólver destroçou-lhe um dedo (quem atirou? ela ou ele? não sabemos). Essas telas de Munch têm por título A Morte de Marat e representam (sem grande relação com o próprio revolucionário) um homem ferido, sangrento, deitado e, ao lado da sua cama, uma mulher triunfante, às vezes nua, a sua assassina. É essa cena traumática (mas cuja representação foi catártica para Munch) que Baselitz inverte e transpõe. Para Tracey Emin, é a dimensão trágica e autobiográfica da pintura de Munch que é fonte de inspiração: melancolia e medo são os seus temas principais. A sua maneira de pintar não é tão diferente da de Munch em certos quadros onde a linha se torna incerta e onde a cor deixa ver partes da tela deixadas cruas, virgens. Na exposição no Albertina, Emin apresentou também um filme, Tribute to Edvard Munch and all my dead children, uma alusão muito clara aos seus abortos, onde, sobre um pontão à borda da água diante da casa de Munch em Åsgårdstrand, um grito longo e trágico sai do corpo nu e prostrado da artista, uma evidente citação. Em Marlene Dumas, é também a intensidade emocional de Munch que se impõe: trata-se de amor e de dor, de identidade e de morte. A sua obra mais próxima de Munch não está presente nesta exposição no Albertina: Dumas transpôs em em Vénus e Adonis a série gráfica de Munch Alpha e Omega. Mas há várias telas aqui que, sem serem citações literais, evocam muito bem o universo de Munch. Snow White and the broken arm ao mesmo tempo que retoma o tema da brancura de pele comum na sul-africana Dumas e o da fabricação das imagens com câmara fotográfica em primeiro plano, evoca também, nesta composição cadavérica (Holbeinesca), o episódio trágico de Munch ferido na mão por essa bala de revólver: ele havia-se pintado sobre a mesa de operações, nu, sangrando, e sob o olhar dos espectadores, como aqui os Sete Anões. A escolha menos convincente é a de Miriam Cahn. Havia contudo matéria, para uma artista feminista, para evocar a relação complexa e ambígua de Munch com as mulheres (e com A Mulher…), a sua aceitação progressiva da nova condição das mulheres no seu país por volta de 1900, as suas tragédias amorosas, e o seu posterior apaziguamento. Mas nada disso aparece nestes quadros de Cahn, que são sobre ela, os seus medos, a sua sexualidade, as suas visões sobre a opressão das mulheres; pouco em comum com Munch.
Edvard Munch, A Viela, 1895, litografia, 43.5×22.7cm, Albertina, p. 65.
O catálogo inclui três ensaios. Dieter Buchhart evoca diversos aspectos importantes da originalidade radical de Munch, o “maltrato” que ele infligia às suas telas, o seu flirt ambíguo com a não-figuração, a sua desconfiança do mercado. A comissária Antonia Hoerschelmann retoma para cada artista as principais semelhanças com Munch, às vezes esticando a linha longe demais (a Factory de Warhol inspirada pela relação entre Munch e Auguste Clot, o seu litógrafo parisiense, p. 34? a organização – muito banal – semelhante do espaço expositivo em Cahn e Munch, p.31? a curva da costa, um tema comum a Doig e a Munch, p.35?), mas na maioria das vezes de maneira justa e sintética, fazendo no entanto uma pequena duplicação com as notas de Lydia Eder sobre cada artista no corpo do catálogo. Richard Shiff enfatiza as formas, a sua separação e a sua incompletude, evocando também Bourgeois e Bacon, ausentes aqui, e chamando Deleuze em sua ajuda. Nada inesquecível.
Marc Lenot |