|
PERSPECTIVA E EXTRUSÃO. UMA HISTóRIA DA ARTE (PARTE 2 DE 4)FILIPE PINTO2013-10-25PERSPECTIVA E EXTRUSÃO Paisagem Não há imagem mais profunda, isto é, com mais distância intrínseca, que uma paisagem; paisagem refere-se à totalidade de espaço (e distância) que num determinado momento conseguimos abarcar pelo nosso campo de visão de frente para as coisas naturais, uma paisagem vai do limite esquerdo que a visão periférica do meu olho esquerdo permite, ao limite direito que a visão periférica do meu olho direito permite, incluindo tudo o que consigo intuir na mais última distância em frente e no céu; (numa representação, a paisagem possui o mesmo carácter totalizador); a distância desfoca os contornos das coisas e transforma, numa massa azul, cinzenta e informe, indistinguível e impronunciável, o que é diferente e distinto (distinto quer dizer que tem distância à volta). A paisagem é uma totalidade. A partir do século XV, a paisagem começa a autonomizar-se como género, deixa o fundo por trás da figura e chega-se ao primeiro plano, à boca de cena da pintura. A paisagem ganha importância e nome próprios landschaft (alemão), landchap (holandês), landscape (inglês), apresentando hoje várias declinações, tais como cityscapes, seascapes, riverscapes, etc. A paisagem deixa de ser apenas cenário ou referência, não designa já uma qualquer relação da terra com o homem o meu país, a aldeia natal , mas tão só a natureza já autonomizada, a valer-se por si própria. Uma paisagem é um abismo, embora um abismo horizontal sempre que pensamos no abismo queremos referir-nos a um buraco vertical aberto no chão, escuro e perigoso, que pressupõe uma queda, e não a um espaço amplo e luminoso como uma paisagem. Com os computadores, paisagem passou a referir-se também à orientação da página paisagem, folha deitada; retrato, folha ao alto. A paisagem oferece-se sempre deitada, estendida; a paisagem é sempre horizontal, oferece sempre distância; a distância é sempre horizontal a distância vertical é a altura; o habitat natural da distância, onde a distância mais facilmente acontece é a planície e o deserto, a pradaria e a savana, o mar descampado. Este abismo horizontal é construído por uma camada de tinta sobre a tela, e é esta camada relativamente fina que paradoxalmente espessa a imagem. Outro paradoxo que acompanha a paisagem representada é o facto de ser só extensão sem duração; como qualquer imagem estática, a paisagem aparece sempre petrificada representa um espaço sem tempo. A paisagem como tipo de imagem quer sempre dizer paragem a imagem paralisa o mundo toda a imagem é uma imagem desanimada. Qual seria a imagem mais apropriada, mais própria a esta inconveniência que é a petrificação? Poder-se-ia pensar num cemitério o lugar para a morte, lugar das coisas paradas ou última paragem dos já não vivos , ou uma natureza-morta, mas ainda assim, a morte tem ela própria um movimento específico a putrefacção, a degradação final, que é o modo de as coisas vivas serem recebidas pela terra; (podre quer dizer pronto a deixar-se abraçar pela terra, pronto a ser englobado, que é o preciso verbo do planeta; podre é quando as coisas se rendem finalmente ao seu peso). A Terra é finita mas mutável, infinitamente mutável; por isso mesmo, o seu conhecimento total torna-se impossível, e é nessa medida que poderemos afirmar que afinal a Terra é infinita o movimento intrínseco torna a Terra infinita; (e a paisagem, retrato da Terra, tende igualmente para uma imagem infinita, como vimos). Temos assim: Se o apocalipse é sobre o fim a iminência do fim, o seu anúncio, a perspectiva, que tornou finalmente a imagem infinita, será um dos seus contrários; quer dizer, a imagem perspéctica será, em certa medida, uma imagem da esperança. Terra infinita quer dizer que o seu total e completo conhecimento é uma impossibilidade, não só pela sua extensão, não só devido à sua permanente mutação, mas também a nível substancial; isto é, conhecemos o mundo consoante o avanço dos instrumentos de observação ou perscrutação nos permitem do telescópio ao microscópio. O mais ínfimo já foi a molécula, depois o átomo, o electrão, o protão e o neutrão, os neutrinos, e, ao que parece, no final desta escala infra-ínfima estão as cordas, minúsculas pulsações de energia. Os cientistas perguntam-se agora o que estará para além destas. Trata-se também de uma espécie de escavação, cada vez mais funda, cada vez mais ínfima mas mais significante, sem fim previsto nem à vista, e sempre com a possibilidade de finalmente se achar o buraco do coelho. Instantâneo À frente de uma imagem (paralisada), paralisamos nós também, porque observar, tal como escutar, implica a paragem do espectador. Em algumas imagens (desenhos, pinturas, fotografias), esta petrificação que transforma o gesto em pose (numa imagem apenas se vêem homens-estátua) [ii], a queda em voo, que emudece o som parece funcionar como o silêncio sepulcral mas potente de uma caverna; a quietude aguarda o grito discordante para demonstrar a sua potência; o silêncio do vazio de uma caverna amplifica, multiplica, estende, reverbera, até a mais ínfima colisão de uma gota cadente de água com uma poça parada. As imagens são superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos, algo que se encontra lá fora no espaço e tempo. As imagens são, portanto, resultado do esforço de se abstrair duas das quatro dimensões espácio-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do plano [10]. Não existem imagens mais petrificadas do que aquelas tempestades marítimas com céus ensanguentados de Turner, onde os espirros colossais das ondas, e os movimentos dos barcos, aparecem-nos subitamente interrompidos, num instante; estas paisagens marítimas, tempestuosas como a guerra, adquirem, na sua petrificação, o carácter quase solene de uma parada militar tropas guerreiras em jeito de estátua, paradas [iii]. Conta-se que foi precisamente uma paisagem marítima que fez com que o jovem Joseph Mallord William Turner se tornasse artista; Turner que, curiosamente, viria a ser durante 30 anos professor de perspectiva na academia, ao referir-se à gravura Shipping in a storm de Willem van de Velde, terá dito, Foi isto que me fez ser pintor. Turner seguia uma rotina de trabalho que se dividia entre viagens nos meses de Verão, muitas vezes patrocinadas por coleccionadores e políticos, e trabalho de atelier no Inverno. Naquelas viagens, realizava os esboços nos quais mais tarde se baseariam as suas pinturas a óleo, aguarelas ou gravuras; conta-se que uma vez se tenha mesmo amarrado ao mastro de um navio, em plena tempestade, para ver como o horizonte balançava e as águas se transtornavam. É possível que algumas das suas obras, quase proto-abstractas, provenham dessa confusão visual causada pela vivência de uma tempestade marítima por dentro nada é estável, espirros de água por todo o lado, contornos indefinidos, formas confundidas, vento. Toda a paisagem (toda a imagem) é uma imagem lítica, petrificada, mais ainda quando representa um mundo em alvoroço. Toda a paisagem é uma imagem parada, uma still life; toda a paisagem (toda a imagem) é uma natureza-morta. Em 1830, o japonês Hokusai (1760-1849), verdadeiro contemporâneo de Turner (1775-1851) no outro lado do mundo, cria a sua mais conhecida obra uma paisagem igualmente marítima. A Grande Onda (Kanagawa oki nami ura), que faz parte das Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji (Fugaku Sanjurokkei), representa precisamente uma onda gigante, petrificada no momento imediatamente anterior ao seu colapso sobre três barcos incautos. Ainda que a protagonista desta imagem seja aquela enorme massa de água, é o Monte Fuji na sua real e exacta simetria , no fundo distante da imagem, que significativamente justifica e dá título a esta série de gravuras [iv]. Hokusai, e a gravura japonesa em geral, viriam a influenciar decisivamente a arte europeia e os impressionistas em particular; quando o Japão foi forçado, em meados do século XIX, a desenvolver relações comerciais com a Europa e a América, essas gravuras, muito usadas como invólucros, podiam ser compradas por preços módicos nas casas de chá. Os artistas do círculo de Manet estiveram entre os primeiros a apreciar as gravuras e a coleccioná-las avidamente. Viram nelas uma tradição não contaminada pelas regras e lugares-comuns académicos que os pintores franceses lutavam por eliminar, como por exemplo, o elemento protagonista de uma imagem poder ser colocado atrás das figuras do primeiro plano, como vimos no caso de A Grande Onda, figuras cortadas pela margem do suporte ou por uma cortina, etc. Por que havia uma pintura de mostrar sempre o todo ou uma parte relevante de cada figura numa cena? Tratava-se, como escreve Gombrich, do último esconderijo da antiga dominação do conhecimento sobre a visão [11]. A petrificação de A Grande Onda funciona como um haiku não se repetirá nunca, mas também não se desvanece. Preso na cascata O Japão sempre foi muito marcado pelas coisas da natureza o seu território peculiar e instável, tão instável que parece apenas boiar à superfície do oceano, continuamente redesenhado por sucessivos tremores de terra e consequentes tsunamis, as suas cerejeiras em flor branca, etc. , e esse vínculo endémico sempre teve reflexos óbvios nas suas manifestações artísticas. É da natureza da paisagem dir-se-ia que provém o haiku, com as suas temáticas recorrentes: a Primavera e a flor de cerejeira; o Verão, o cuco e a peónia; o Outono, o crisântemo e a lua; o Inverno, a neve. Importante é aqui referir que em certos idiomas orientais, como no japonês precisamente, a palavra que designa paisagem pode ser traduzida por imagem do vento. Como mostrar o vento numa imagem? Uma imagem, uma janela. Na Roma antiga, as janelas não serviam para olhar o exterior, nem sequer para iluminar os interiores das habitações; as janelas serviriam apenas para arejar, quer dizer, deixar o ar (o vento) entrar. No castelhano e no inglês essa raiz ainda é perceptível ventana, window. A imagem, a janela, o vento. Como mostrar o vento numa imagem? Hokusai tentou isso mesmo captar a imagem do vento, uma paisagem na obra Trabalhadores Apanhados por uma Súbita Rajada de Vento em Ejiri; com o mesmo Monte Fuji ao fundo, embora pertencendo a outra série que não a de A Grande Onda, Hokusai retratou o vento através de umas folhas de papel, um chapéu e roupas esvoaçantes, mais duas árvores dobradas. Nos finais do século passado, Jeff Wall repetiu-o com a fotografia A Sudden Gust of Wind (After Hokusai); a repetição de uma paisagem, de uma imagem do vento um rewind [v]. Uma pintura, uma janela, uma imagem petrificada, um instantâneo. Instantâneo significa imediato, sem tempo, sem duração. Porque é sem duração, o instantâneo é sem movimento, parado; instantâneo quer dizer, afinal, sem movimento, estático. Para além de tudo o resto, instantâneo representa sempre uma paragem. E quando tudo pára, aparece o silêncio; o som é o habitante por excelência da duração; quando esta falha como no instantâneo o silêncio floresce finalmente. Instantâneo quer dizer afinal silêncio. Paisagem e silêncio une-os a paragem da pintura, o instantâneo fotográfico e a caça; a caça necessita tanto do silêncio como do estrondo do disparo disparo que é tanto do chumbo como da máquina fotográfica; (o silêncio garante confiança aos animais e receio aos humanos). Em Picture of Women e em todas as minhas fotografias de um certo formato, a imagem deve ser tirada em duas partes, a partir de películas diferentes. Depois junto as duas partes, em geral, com fita-cola transparente. No local da colagem sobrepõem-se ligeiramente. E isso cria uma linha quase negra que se vê. E a união das duas imagens faz-nos olhar de novo para a superfície e cria uma dialéctica entre profundidade e superfície plana, dialéctica que fui buscar à pintura e de que sempre gostei. Pergunto-me sempre onde deve aparecer o corte e qual a sua relação com a imagem no seu todo. Às vezes dissimulo-o, outras vezes não. Por exemplo, em A Sudden Gust of Wind, que fiz muito mais tarde, o sujeito da imagem é o céu com todas as folhas de jornal a voar. Mas a linha de corte tem de atravessar o céu, o que cria uma interrupção muito feia, ter uma linha horizontal que corta este céu magnífico. Mas isso agrada-me [13] [vi]. Filipe Pinto [o autor escreve de acordo com a antiga ortografia] :::: Notas [10] Vilém Flusser, Ensaio sobre a Fotografia. Lisboa: Relógio D’Água, 1998, p. 27. [11] Ernest Gombrich, A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koonan, 1993, p. 417. [12] Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho, trad. Jorge Sousa Braga. Lisboa: Assírio & Alvim, 1986, p. 34. [13] Depoimento de Jeff Wall in Contacs, Realização Jean-Pierre Krief, Arte France / Ks Visions / Le Centre National de la Photographie, 2000. |