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DE QUEM FALAMOS QUANDO FALAMOS DE VENEZA?LÍGIA AFONSO2009-08-03“Would you say yes to Venice?” A primeiríssima de todas as bienais de arte abriu em Veneza no início de Julho, com a pompa habitual a contrariar as reservas economicistas, dirigida, em primeira instância – o que é o mesmo que dizer um histérico fim-de-semana de filas, jantares e festas mais ou menos glamorosas – a um séquito de milhares de profissionais do meio entre os quais se contabilizaram cerca de quatro mil jornalistas credenciados. Apesar da sua historicidade, suposta importância e escala incontornável, Veneza revelou-se praticamente invisível na imprensa portuguesa. Relevante seria que a razão desse silêncio se prendesse com a sistemática omissão de interesse dos curadores protagonistas destes grandes eventos na integração de obras de artistas portugueses, e que esse manifesto estimulasse um debate consciente e conducente à definição de uma estratégia política de actuação internacional. Mas não. São os viciosos desamores internos que explicam, alimentam e agigantam os vazios que gradualmente adensam o buraco negro. E se este aprisiona o som, o que será feito da voz? Bienal de Veneza ou “Things and people deserving a kick” segundo Marinetti É verdade que há pouco de bom (ou de novo, ou de sério, ou de a sério) para dizer. Mas raramente há. E pelas estatísticas de quem passa e vai ouvindo lá e cá, há menos a cada dois anos que passam. Está velha e cansada a bienal (o que é perfeitamente compreensível aos cento e catorze anos) e leva de arrasto, com a sua proposta curatorial, os exercícios expositivos dos setenta e sete países participantes com pavilhões nacionais. Ou será que são, pelo contrário, as múltiplas exposições, com múltiplas escalas, formatos e discursos, sofregamente dispersas em números que a sanidade, física e intelectual, de um humano médio recusa, que contribuem para a fragmentação e esvaziamento do modelo? São territórios subestimados, os das ilhas, e Veneza expande-se, constante e invisivelmente. Doutra forma, como justificar as dezenas de quilómetros calcorreados para chegar ao fim de uma semana e perceber que ainda faltavam quinze pavilhões nacionais, trinta eventos colaterais e mais um número indefinido de exposições, supostamente imperdíveis (assinaladas por cartazes que não param de aparecer com protagonistas de meter inveja) para visitar? Curiosamente, os fungos também se desenvolvem e multiplicam em locais quentes e húmidos. O meu país é melhor que o teu * A competição é feroz. A popularidade de um país (e toda a gente sabe isto) mede-se pela preponderância do design de sacos de pano impressos utilizados, ora ao ombro ora a tiracolo, pelo visitante, cromaticamente conjugados com a indumentária de autor eleita para o dia. E todos os artistas deixam de se importar que o seu nome se substitua ao do seu país, se for para ser o melhor, receber mais prémios e estrelinhas do júri. Todos esperam que o público lhes dedique mais do que cinco minutos de atenção. E alguns merecem-no, evidentemente, não fosse a prostração artística decorrente da farta miscelânea tornar esse desejo em arrogância (estou certa que tudo seria diferente se deliberassem democrático o usufruto funcional dos iates e do submarino por ali aportados). Com a luta de classes e as dores na cabeça não conseguimos deixar de ir, ano após ano, na expectativa de nos surpreender e começamos, como se de um jogo de geopolítica estratégica se tratasse, a coleccionar países. Grandes homens, Grandes nações Os Estados Unidos de Bruce Nauman, o Reino Unido de Steve McQueen, a Alemanha emprestada a Liam Gillick e a França de Claude Lévêque são os protagonistas por direito e superintendência política no Giardini. Nauman, o grande, veio para ganhar (e ganhou o Leão de Ouro) com “Topological Gardens”, uma retrospectiva museológica dos seus quarenta anos de carreira com eixo naquele pavilhão e ramificada em dois outros palácios da cidade. Muito dinheiro para uma incontornável implantação topográfica na ilha. McQueen, o controlador, o hiperbólico ou o clássico, apresenta “Giardini”, um filme de dupla projecção espacialmente ensimesmado. Misterioso, intenso, silencioso, não narrativo, com admissão a cada trinta minutos para permanência obrigatória. Reifica uma astuta seriedade anti-veneza. Lévêque, o revolucionário tanatológico, resolve o pavilhão através da sua própria subversão, assinalando-lhe, com bandeiras negras esvoaçantes, o luto institucional. Gillick, o moderno, o pós-nacionalista ou o apátrida, domestica o pavilhão da Germânia nazi com uma cozinha Ikea e humaniza-a com a presença de um gato fofinho. Para além da incontornabilidade das superpotências destacam-se ainda, no cerco do Giardini, o humor negro dos premiados Emlgreen & Dragset, a representar o bairro transnacional da Dinamarca e Países Nórdicos com uma encenação curatorial satírico-gay do mercado falido da arte contemporânea; o naturalismo de Roman Ondák que encorajou a flora autóctone a invadir e habitar o pavilhão da Eslováquia; e o oportunismo político de Zoran Todorovic’s que colocou tapetes cortados a partir de aglomerado de cabelo humano, militar e civil, à venda no pavilhão sérvio por uma quantia democrática de euros. “It’s not you, It’s me” Ao contrário do pavilhão da América Latina, que faz ali tanto sentido quanto faria um na China chamado Europa (exactamente o mesmo que fez com que o fashionable Pavilhão África na última bienal não tenha conseguido criar raízes sequer a Angola, a sua vedeta principal, cuja não fixação se deveu, provavelmente, ao facto de se tratar de um país pobre), os estreantes Emirados Árabes Unidos surpreenderam positivamente. Mas não é óbvio e chega a ser confuso pela existência, ali perto e à distância de um barquinho, de um segundo pavilhão, ao qual chamaram plataforma (provavelmente para sugerir almejar maior autoridade intelectual) e sobre este, inexplicavelmente, não temos nada a dizer, a não ser que é comissariado por Catherine David e que se dedica, em exclusivo e para quem está interessado, ao emirado de Abu Dhabi e às suas problemáticas endógenas. O pavilhão de todos os emirados foi conceptualizado por Tirdad Zolghadr (comissário não menos influente que a anterior, já que se move entre a Frieze, a Cabinet, a Bidoun, a Parkett e outros meios mais académicos) que lhe determinou o título “It’s not you, It’s me”, reflexivo da inteligência crítica e consubstanciação teórica da possibilidade, significado e contextualização política, económica e cultural, da presença daquela federação num evento histórico como a Bienal de Veneza. Indispensável a utilização desconstrutiva do aúdio-guia e a leitura do catálogo. Surpresas maiores com “After War” da Estónia de Kristina Norman, documentário político sobre a retirada do monumento da libertação de Tatlin da sua praça principal e as violentas consequências civis ao acto autoritário; com o muito bem premiado “A Life of Imitation” da Singapura cinéfila de Ming Wong; e com a crueza forense e politicamente implicada de “What Else Could We Talk About?” do México (e da sua fronteira americana) de Teresa Margolles. Verdadeira e insuportavelmente dramáticas são, e só para referir algumas a evitar a todo o custo, as prestações de Israel, Bélgica, Irão, Tailândia, Nova Zelândia, Japão, Uruguai, Grécia, Veneza ou Itália. Fare Mondi Fazer mundos é a proposta curatorial, solidária e universal, de Daniel Birbaum apoiada em obras fundamentais de Lygia Pape, Yoko Ono e John Baldessari (todos premiados nesta edição da bienal), ou ainda de Cildo Meireles e (ainda que à revelia post-mortem da sua conduta artística) de André Cadere. O discurso contém uma espécie de mensagem apaziguadora e de esperança que se desdobra expositivamente entre um palácio (de princesas?) e um arsenal (naval e de armamento). É politicamente correcta, optimista e amiga de todos. Considera que o processo criativo é uma forma de criar outros mundos que, por o transcenderem, dão imenso jeito para fugir a este. Sugere, ainda que rodeada por ambiciosas manifestações de poder político e económico, que a arte é autónoma a estes factores, através de uma proposta facilitista e de concretização literal que se apoia na aparência construtiva das propostas artísticas seleccionadas. Ou seja, que fazemos mundos quando empilhamos muitas coisas, enformando-as em arquitecturas mais ou menos informais, e lhes damos um nome bonito. As obras vencedoras em exposição são assim, grandes, espectaculares, coloridas e interactivas: um bar cinético (Leão de Ouro para Tobias Rehberger) e um jardim grotesco (Leão de Prata para Nathalie Djuberg). Das obras dos noventa artistas em exposição destacam-se particularmente os postais ficcionais da Veneza de Aleksandra Mir; a instalação cósmico-filosófica de Tomas Sarraceno; a animação vídeo projectada “Sade for Sade’s Sake” de Paul Chan; o imaginário encantado do bric-a-brac de Hans-Peter Feldmann e a biblioteca pública desenhada por Rirkrit Tiravanija. A Guerra dos Mundos O Padiglione Internet de Miltos Manetas; a Keyword School de Xu Tan; a Palestina na Giudecca; a República do Gabão e a União das Comores; a Catalunha; Gales, Irlanda, Escócia, Cumbria e o subúrbio londrino de Peckam; o principado do Mónaco e o Montenegro; o Pavilhão da Manifesta de Múrcia ou o Palácio Grassi da colecção Pinault são os admiráveis mundos novos que concorrem no panorama esgotado da Bienal de Veneza. Lígia Afonso NOTA * Sobre a exposição “Experiments and observations on different types of air” de João Maria Gusmão e Pedro Paiva no Pavilhão de Portugal ver artigo crítico de Joana Lucas em www.artecapital.net/criticas.php?critica=243 |