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ARTE E CINEMA EM WALTER HUGO KHOURIDONNY CORREIA2020-05-19
I.
A respeito do Cinema Novo brasileiro, há um sem-número de estudos e referências que reputam ao eixo Bahia-Rio de Janeiro a contestação da estética visual, a incorporação da crítica social e implosão da narrativa convencional. Glauber Rocha (1939-1981), é tido como o maior expoente desse movimento e dono de várias obras que sintetizam a revolução máxima do cinema brasileiro. Para o leigo, pode ser algo de menor conhecimento as recorrentes celeumas que envolveram a “turma do Cinema Novo” e os jovens cineasta do estado de São Paulo. Os realizadores do Rio de Janeiro acusavam os paulistas de terem pouco compromisso com ideias políticas revolucionárias; em São Paulo, o trauma dos constantes fracassos de um cinema industrial lançou muitos novatos à aventura da produção independente que visava a retratar o ambiente frio, hostil e indiferente da metrópole. Hoje, fica-me cada vez mais claro que a tentativa de levar às telas dos cinemas internacionais as mazelas do povo brasileiro, as favelas, o cangaço, a fome etc, surtiram, em grande medida, um efeito contrário ao que Glauber pregava em seu manifesto “Estética da fome”. Ao assumirem a condição de colonizados e usarem suas obras para mostrar ao mundo um cinema verdadeiramente terceiro-mundista, tais filmes – olhando em perspectiva – somente reforçaram o fetiche do colonizador. Filmes que deveriam ser manifestos da condição miserável do brasileiro apresentaram-se mais ou menos como as grandes maravilhas das colônias africanas e asiáticas levadas à metrópole europeia para deleite da burguesia, no século XIX. Posto isso, gostaria de comentar um pouco sobre um outro realizador que, acusado de estetizar o filme brasileiro e se alienar dos problemas de sua época, aventurou-se no que hoje vemos como a verdadeira revolução estilística, tão crítica quanto as obras de seus colegas cinemanovistas. Walter Hugo Khouri (1929-2003) nasceu em São Paulo, chegou a cursar Filosofia na Universidade de São Paulo, mas próximo dos vinte anos de idade abdicou do ambiente acadêmico para perseguir uma carreira no audiovisual. Chegou a ser assistente de direção no filme O cangaceiro (1952), de Lima Barreto, no ocaso da Cia. Cinematográfica Vera Cruz, mas em seguida foi admitido na TV Record, onde trabalhou por três anos como diretor de imagem. Paralelamente a isso, escrevia críticas cinematográficas para o jornal O Estado de S. Paulo, chegando a apresentar ao público brasileiro o cinema de Ingmar Bergman (1918-2007). Dirigiu seu primeiro filme em 1953, O gigante de pedra, um drama passado numa pedreira. Seu estilo próprio começaria a surgir no trabalho seguinte, Estranho encontro (1958), um suspense psicológico intimista e expressionista, mais preocupado com as várias faces da psicologia dos personagens do que com uma trama propriamente dita. O filme serviu para chamar a atenção de alguns produtores independentes e Khouri chegou a rodar uma aventura passada num garimpo em Fronteiras do inferno (1959), e um épico histórico sobre a Guerra do Paraguai, Na garganta do diabo (1960). Mas, somente no filme seguinte, A ilha (1963), é que Khouri amadureceria o tema recorrente de sua obra futura. A mesquinharia, o vazio interior, as contradições morais e éticas de uma burguesia paulista decadente em meio às mudanças de paradigma que ocorreriam no âmbito social urbano a partir da década de 1960. O cineasta passou a deixar evidente a influência de realizadores como Michelangelo Antonioni (1912-2007) e do próprio Bergman. Sua primeira obra internacionalmente conhecida é Noite vazia (1964), em que Khouri trabalha com apenas quatro personagens centrais, dois jovens hedonistas e duas prostitutas, isolados num apartamento em busca de uma noite de prazeres sem limite, que se torna um pesadelo insuportável de culpa, frustrações e agressões. Nesse filme, o cineasta dá forma à inadaptabilidade do ser no mundo, da incompletude da alma e dos desejos voláteis e ocos. É uma obra que se refere muito à trilogia da incomunicabilidade de Antonioni, nos filmes A aventura (1960), A noite (1961) e O eclipse (1962). Àquela altura, os primeiros filmes do Cinema Novo começavam a ganhar o cenário dos festivais internacionais, como Cinco vezes favela (1962), Os fuzis e Deus e o Diabo na Terra do Sol, ambos de 1964, ano do golpe militar que ceifou a democracia no Brasil. Por essa razão, os cineastas do movimento viam em Khouri um diretor hermético cujas ideias não se comprometiam com a realidade nacional. Para contestar seus detratores, Khouri realizou, em 1968, As amorosas, que mostra o outro lado do espírito revolucionário dos jovens. No filme, Marcelo – personagem que se tornaria um alter ego do próprio cineasta por anos adiante – é um universitário insatisfeito com as utopias de seus colegas. Ele carrega em si uma profunda melancolia advinda de questões que para os outros parecem urgentes, mas que para si não passam de miudezas se comparadas com as grandes pautas da existência. Aquela foi a forma com que Khouri criticou seu tempo e as discussões vigentes no período. Marcelo quer apenas gozar a vida, ainda que isso signifique prazeres efêmeros e sem sentido. Ao fim dos anos 1960, com o endurecimento político repressivo, o Cinema Novo se inviabilizou. Muitos diretores abandonaram o país, entre eles Glauber Rocha. A produção de um cinema contestador já não era mais possível, mas Khouri não se afetou diretamente por isso e aliou-se a alguns produtores especializados em financiar filmes eróticos, de maneira a dar continuidade à sua poética. Obviamente, a carga de erotismo aumentou, mas Khouri não abriu mão de discussões filosóficas e sociológicas em filmes como As deusas (1972), O último êxtase (1973) e Convite ao prazer (1980). Com isso, houve duas reações opostas. De um lado, seus costumeiros detratores o acusavam, agora, de ter se tornado um diretor de “pornochanchadas”, enquanto outros saudavam a beleza plástica com que enquadrava a sensualidade feminina. Ao longo dos anos 1970, Khouri investiu não somente no amadurecimento de seu personagem Marcelo, e na sua busca obsessiva por uma ascese metafísica a partir do sexo, mas também dirigiu filmes do gênero de terror, como O anjo da noite (1974) e As filhas do fogo (1978). Enquanto a gramática de câmera e as alegorias cinemanosvistas não faziam mais sentido, Khouri levava ao exterior um cinema brasileiro requintado e de conteúdo analítico potencialmente mais relevante. Ao mesmo tempo, valeu-se da ruptura narrativa, dos enquadramentos inventivos e mais soltos e das discussões históricas em Eros, o deus do amor (1981), que representou o Brasil no Festival de Cannes. Em 1982, mais uma produção revolucionária e controversa: Amor, estranho amor, filme que reconta os bastidores do Golpe do Estado Novo, levado a termo por Getúlio Vargas em 1937, a partir de uma mansão onde funciona uma casa de meretrício de luxo, em que políticos influentes passam uma longa noite de orgias e negociatas institucionais em favor de seus partidos políticos. Esta crítica ao modus operandi daqueles que detêm o poder da nação nas mãos tornou-se alvo de uma disputa judicial, já que uma de suas atrizes, Xuxa Meneghel, se tornaria uma reconhecida estrela do universo infantil, anos depois e entraria com pedido legal de interdição do filme, onde aparecia em umas poucas cenas seduzindo o garoto protagonista da trama. Em verdade, todo o contexto da polêmica cena se justifica pela trama do filme. O personagem do garoto, que existe no passado daquela casa, é o mesmo personagem de um comendador que retorna à mansão, agora abandonada, e recorda momentos daquela fatídica noite que antecedeu o golpe. Khouri discute a validade das memórias, os traumas da juventude e as incongruências comportamentais dos adultos. Infelizmente, por anos o cineasta ficou conhecido como “o diretor do filme pornô da Xuxa”, algo extremamente pejorativo e reducionista, que vem se diluindo graças a trabalhos de recuperação de sua obra total e estudos como este, que visam a explicitar o quão revolucionário foi no contexto da extroversão do filme brasileira pelo mundo. Após alguns trabalhos de menor repercussão, realizados num momento que coincidia com uma nova recessão da indústria cinematográfica brasileira, Khouri dirigiu seu último filme em 1998, Paixão perdida, em que encerra a saga de Marcelo, agora um homem de mais idade que convive com o drama de um filho que vegeta em estado catatônico desde a morte da mãe, o que o impede de seguir a linhagem consanguínea em busca da transcendência tão almejada pelo pai. Com vinte e cinco filmes no currículo e diversos prêmios nacionais e internacionais, Walter Hugo Khouri experimentou o ostracismo após sua morte. Ao longo dos anos 2000 e 2010 quase nada foi dito ou feito por seu legado. Um único livro, O equilíbrio das estrelas, de Renato Pucci Jr., foi lançado em honra dos estudos que o cinema de Walter Hugo Khouri incita. Somente a partir de 2018 o cenário começou a mudar e desde 2019, há um intenso trabalho de recuperação e estudo detalhado de seus filmes, para haja um contraponto sólido à ideia de que o cinema paulista não se comprometia com a revolução dos novos cinemas no mundo. Khouri não fetichizou o estado de coisas que se abatia sobre o coletivo brasileiro. Ao invés disso, apropriou-se de uma estética cinematográfica europeizada, a exemplo do que fizeram os modernistas paulistas, principalmente Oswald de Andrade (1890-1954), para examinar em minúcias as várias faces do indivíduo social e como suas contradições afetam, numa reação em cadeia, o aspecto coletivo.
II.
É no momento em que atinge sua maturidade como realizador que a arte começa a mostrar uma imbricação mais pujante e significativa. Noite vazia, de 1964, filme que colocou Khouri no mapa do cinema mundial e o fez ganhar o respeito de audiências na Europa, narra algumas horas na vida de dois rapazes hedonistas, com sérios conflitos internos, trancados numa garçonnière com duas prostitutas, em busca de prazer. Só o que conseguem é a completa diluição de seus egos e o mergulho em suas próprias angústias. Filme minimalista, em que o silêncio e os longos planos próximos dão o tom da impotência diante da vida, Noite vazia abre com imagens de máscaras de gesso carcomidas e quebradas, que fazem referência ao íntimo dos personagens que conheceremos. É, também, uma citação das máscaras que cada um carrega e alude ao teatro Kabuki e Nô, já que Khouri sempre teve especial apreço pela arte oriental e que a cultura japonesa é citada ao longo do filme. Além disso, por se tratar de uma obra que explora a compulsão pelo corpo e pelo gozo que dele advém, também é possível vislumbrar uma crítica ao estatuário grego: a perfeição do corpo corroída por pesadelos ocultos do espírito. Além disso, todo a estética do filme alude a obras de Edward Hopper (1882-1967), com longos exames imagéticos da solidão que transborda do semblante de alguns personagens, sempre deslocados de si e dos ambientes que habitam. São Paulo é uma cidade fria, cinza, obscura e impessoal. Sempre foi. O cinema paulista tem a tradição de representar o que há de mais solitário na alma de quem convive com cerca de 13 milhões de habitantes, mas está sempre só e ensimesmado. A obra do pintor americano guarda muita similaridade os ânimos da metrópole mais triste do Brasil. Na esteira do sucesso de Noite vazia, em 1966 Khouri realizou O corpo ardente, filme mais sofisticado e hermético, seu trabalho favorito até o fim da vida. Nele, o diretor apresenta o espectador a uma bela mulher da alta sociedade paulistana enfastiada de sua vida conjugal e de seus amigos e amantes. Ansiosa para escapar da vida que leva e desintoxicar-se de pessoas rasas e fúteis, ela se refugia na fazenda da família, onde irá tomar contato com a natureza implacável que existe ao redor, a despeito das angústias dos seres e se contrapõe ao ruído da selva urbana. Khouri toma esta premissa para reproduzir a mesma sensação de impotência da qual já falava Giulio Carlo Argan ao estudar a obra dos paisagistas ingleses, como Constable e Turner. A personagem de Khouri está constantemente perdida em meio à sublime força destrutiva do mundo natural que se abarranca diante de seu mundo burguês e enfadonho. Ainda, ao longo do filme, Khouri encontra uma forma de criticar o afetado mundo das artes visuais e dos artistas conceituais, no momento em que, durante uma das festas na mansão da personagem, alguns convidados conversam sobre o sistema das artes e bajulam um pintor que está tentando vender uma de suas obras aos presentes. No entanto, longe de argumentos sólidos a respeito do assunto, todos proferem apenas jargões decorados dos livros de História da Arte, denotando um conhecimento menor que superficial sobre os temas que pensam compreender em profundidade. A classe abastada paulista é autopsiada pelo cineasta na medida em que tem exposta a frivolidade e o desapreço por temas complexos, reduzindo-se ao consumo de boa comida, boa bebida, sexo e negociações da ordem financeira. O corpo ardente presta, ainda, uma bela homenagem a Antonioni, na medida em que muitas cenas remetem o espectador à longa sequência final de A noite. Outro bom exemplo da pluralidade visual em Walter Hugo Khouri é a referência que faz à arte Pré-Rafaelita. O desejo, de 1975, é uma das histórias do personagem Marcelo. Nesse filme, o alter ego do diretor já é um homem mais velho, um escritor desinteressado do mundo e dos problemas cotidianos, trancafiado na relação falida que tem com a esposa e com suas amantes. Em vários momentos da fita, Khouri recorre a referências de diversas épocas e escolas, sobretudo na decoração dos cenários e, principalmente, numa das sequências, que emula uma das obras mais conhecidas de John Everett Millais (1829-1896), Ofélia (1852). Aliás, esta referência não se dá apenas em O desejo. Também, em As deusas (1972) e em O último êxtase (1973) a citação se repete sempre que alguma personagem feminina se abandona às águas de algum riacho na dicotomia da vida que emana da natureza e a morte espiritual que assombra o ser. Paixão e sombras, de 1977, foi um fracasso de bilheteria, segundo seu próprio diretor, mas é compreensível, na medida em que hoje pode ser visto como um dos filmes mais belos e profundos produzidos numa década em que o cinema nacional já havia se rendido às comédias eróticas produzidas por todo o país. O filme é uma espécie de testemunho pessoal a respeito do ofício de cineasta. Na trama, Marcelo, novamente, desta vez um diretor de cinema, tenta realizar um novo filme num estúdio velho e abandonado, que logo será demolido para dar lugar a um supermercado. Enquanto se lamenta pela falta de estrutura qualificada para trabalhar, tem lembranças de sua atriz favorita e amante, que o está deixando para trabalhar nas telenovelas, onde ganhará mais dinheiro e projeção. Paixão e sombras é um documento sobre a decadência do cinema industrial paulista, tão importante no início da carreira de Walter Hugo Khouri. A luz do filme oscila entre o sépia e o vermelho. Entre as impressões ancestrais e o desejo perdido. Entre o ofício e a emulação. Encontramos uma importante referência a Velázquez (1599-1660) numa das cenas, quando se é possível identificar similaridades como a obra As fiandeiras (1656-58). No contexto da trama do filme, há a dialética entre o ofício da arte e o papel de mero operário do sistema. Em ambos os casos, vemos ao fundo das imagens a ficção encenada diante de uma vida real. No caso de Velázquez, o teatro antecedido pelas fiandeiras em plena ação. No caso de Khouri, o galpão vazio com o diretor iludido tentando montar sua cena. Em ambos os casos, a crua realidade sobre o mundo dos sonhos. A confortável ficção do entretenimento é a emulação a partir do esforço mecânico e impessoal. Embora haja muitos mais exemplos, quero propor somente mais uma alusão, precisamente do filme mais polêmico de Khouri, Amor, estranho amor (1982), em que um importante político retorna à velha mansão em que sua mãe trabalhou nos anos 1930. Era uma prostituta de luxo e a mais cobiçada por homens das mais diferentes variações ideológicas. Ao passear pelo local, suas memórias de menino revivem. Elas o levam de volta aos doze anos de idade, quando esteve, circunstancialmente, naquela mansão num dia em que grandes decisões políticas foram tomadas, consolidando uma ditadura no Brasil. Entre as descobertas de um mundo mesquinho e sujo e a reconciliação com a mãe, Khouri filma o âmago de uma Pietá profana, em que a mãe ampara seu filho num misto de acalanto e desejo incestuoso. A polifonia da obra total de Walter Hugo Khouri o coloca numa posição de um dos mais versáteis e inventivos cineastas brasileiros de seu tempo. Trabalhando sempre com orçamentos diminutos, conseguiu extrair da imagem aquilo que há de mais pulsante para que o espectador se sinta compelido a interagir com a obra. Por vezes, taxado de pornográfico, pernóstico ou desengajado, em verdade Khouri se tornou autor de filmes que assentaram terreno para diversas outras figuras no cinema brasileiro, por provar que a criatividade e o repertório intelectual se sobrepõem a qualquer disputa pelos holofotes que se acendem fora do campo da arte e iluminam apenas os caprichos contingentes.
Donny Correia
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Filmografia de Walter Hugo Khouri
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