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ENTRE O SPLEEN MODERNO E A CRISE DA MODERNIDADEANTÓNIO PRETO2007-02-28ENTRE O SPLEEN MODERNO E A CRISE DA MODERNIDADE […] Rien n´égale en longueur les boiteuses journées,_ Quand sous les lourds flocons des neigeuses années_ L´ennui, fruit de la morne incuriosité,_ Prend les proportions de l´immortalité. […] [Nada iguala a extensão dos longos dias mancos, Quando sob os pesados flocos da neve dos anos O tédio, esse fruto da incuriosidade, Atinge as proporções da imortalidade.] Charles Baudelaire, «Spleen» – Les Fleurs du mal Confortavelmente instalados na exteriorização histórica de uma época sem revoluções, que se quer pós-moderna, devemos hoje questionar as múltiplas concepções, mais ou menos antagónicas, do debate entre o modernismo e a modernidade. A qualidade de ser moderno, que caracteriza a modernidade, demonstra desde logo, como observado por Chateaubriand, o carácter problemático desta noção: cada período histórico, sendo moderno em relação aos períodos anteriores, é, enquanto época, representativo de uma modernidade: ser moderno é pois viver no seu tempo, participar da sua época. Entendida como processo, a modernidade apresenta-se, antes de mais, como um campo aberto à necessidade de questionamento, como uma crise, segundo Husserl, uma crise de valores, mas também uma crise de pensamento (que a filosofia formaliza) e uma crise política: a etimologia grega do termo krisis pressupõe, precisamente, a necessidade de fazer um julgamento. O julgamento em questão não ser fará, no entanto, sobre o passado, mas sobre a “consciência” do presente, sobre o “agora” que é a modernidade, essa consciência crítica que cada uma das gerações sucessivas tem de si mesma, como o pretende Lefebvre. Arruinada a ideologia do progresso, que leva Jean Baudrillard a identificar o moderno em Théophile Gautier e em Charles Baudelaire como uma “moral canónica da mudança” – o primeiro, acredita que, por exprimir um sentimento absolutamente “recente”, o termo “moderno” poderá muito bem não se encontrar nos dicionários; o segundo usa “moderno” para designar o que é passageiro, efémero, em oposição ao que é eterno –, cumpre questionar os pressupostos teóricos e os instrumentos interpretativos que poderão servir para abordar a modernidade, no seu sentido mais abrangente, mas também na sua acepção mais radical de tábua rasa que o final do século XIX reclama. Encontramos em Baudelaire uma concepção fundamental da modernidade que se traduz no estabelecimento de uma teoria racional e histórica do belo, decorrente do enraizamento temporal e local da acção judicativa, ou seja, de uma moldura contextual. O belo, diz Baudelaire, é constituído por um elemento eterno, invariável e difícil de determinar, e por um elemento relativo, circunstancial, que corresponde à moda, à moral e à paixão e que permite “digerir” o “divin gâteau”, o ideal inconcebível e inapreciável fora deste enquadramento ou à margem da sua natureza dúplice. O que a percepção baudelairiana determina é a necessidade de repensar a crítica da modernidade enquanto imposição da razão como norma transcendental, de repensar as verdadeiras implicações do idealismo absoluto de Hegel (“o real é racional, o racional é real”) que desembocariam no estatuto epistemológico da modernidade enquanto “ideal tipo”, no sentido que lhe atribui Weber, ou seja, uma construção teórica que visa corresponder a uma realidade empírica, histórica, argumento que tem servido para justificar o fim de todas as utopias. A vocação a um tempo lococêntrica e fenomenológica do sentir moderno tematiza a cidade como espaço privilegiado do imperativo progressista, marcha triunfal que se alimentará da maquinaria da razão, é certo, mas também dos destroços do romantismo, agora urbanizado. Mas se a cidade é, por excelência, o lugar de manifestação da mitologia da modernidade, é-o, sobretudo, pela ruptura que faz do individualismo e da liberdade os avatares do moderno. Se o que determina o cidadão antigo é o seu engajamento na cidade, o que define o cidadão moderno é o facto deste se furtar à vida política, escudando-se no “contrato social”: as concepções aristotélico-platónicas sobre a natureza política do humano – que os críticos apelidarão “essencialismo” – deram pois lugar às perspectivas de auto-construção do sujeito, representativas do “idealismo subjectivo” cartesiano. A passagem de uma concepção agórica do ser no mundo – é o que traduz a polis – a uma “individualização do destino”, prefigurada pelo cristianismo, define em grande medida, assim o defendem Leo Strauss e Erich Voegelin, a modernidade como um “cristianismo secularizado”. Falta pois saber se à suposta exteriorização radical da consciência pós-moderna corresponde uma realidade pós-moderna. É que se a esquizofrenia como desordem e ruptura da cadeia de significados, o anti-racionalismo, o desconstrutivismo, o fim de uma “tradição de mudança e de ruptura”, o fim da ditadura da ciência, o fim da história, o fim do homem, o fim do indivíduo, em suma, se o fim de todas as narrativas (que é afinal a narrativa pós-modernista), não responder a esta questão, o pós-modernismo não passará de um modernismo, i.e., de uma representação. Mas a realidade é, por definição, a imagem do real, a sua figuração ou, no melhor dos casos, a sua interpretação. Nesta medida, à representação que o modernismo faz de si próprio, assente em imagens da industrialização, o pós-modernismo responderá com a industrialização das imagens. Este é o processo paradoxal do esvaziamento a que conduz a saturação, a embriaguez da amnésia com que se depara o pessimismo cultural de alguns críticos como George Steiner, para quem não vem longe o dia em que o nome Shakespeare precisará de uma referência explicativa à margem da página, do mesmo modo que o termo pós-modernismo terá por nota de rodapé o esquecimento. Sendo conservadora – como a cultura o é, por definição –, e, de certo modo, uma versão refinada do discurso catastrofista dos media, esta perspectiva sublinha a importância da activação da memória, contra a museificação, pretendendo destacar-se assim da monumentalização contemporânea do património (capitalização simbólica e económica que não se esgota no merchandising de relíquias, nem na disputa por um lugar de destaque nos roteiros de peregrinação dessa nova religião que é o turismo, cultural, “japonês” ou outro), colocando a tónica na vulgaridade dos produtos e dos consumos, resultados directos da falência do ensino e da consequente “formação” da classe média para uma serena mediocridade. Mas também da extinção da contracultura e do alinhamento, em massa, por uma mesma estética, naturalmente a do poder, que faz com que aqueles que se apresentam como os maiores dos libertinos sejam afinal os santos da indústria cultural e respectivos comércios. Pensando nestas e noutras questões, o trigésimo aniversário do Centre Pompidou fica marcado pela nova arrumação da colecção de arte moderna – orgulhosamente, a primeira na Europa –, patente desde 1 de Fevereiro último (também a colecção de arte contemporânea será reestruturada e reaberta ao público em Abril), que coincide com a apresentação, no mesmo centro, de duas exposições temporárias, “Les Peintres de la Vie Moderne” e “Le Nuage Magellin”, ambas votadas, embora de modos diferentes, à inquirição das aflorações modernistas na produção artística contemporânea e ainda com a organização, fora de portas, de “Paris du monde entier: artistes étrangers à Paris, 1900 – 2005”, exposição produzida a partir da colecção do Pompidou que inaugura, em Tóquio, o National Art Centre. Depois da experiência de duas disposições estruturadas tematicamente – nomeadamente, “Big Bang au Musée National d’Art Moderne – Destruction et Création dans l’Art du XXe Siècle” (Junho de 2005 – Fevereiro de 2006), perspectiva interdisciplinar e não cronológica que partia da concepção do projecto moderno como uma “destruição positiva”, uma mise en crise da representação para uma revolução formal; e “Mouvement des Images – Art et Cinéma” (Abril 2006 – Janeiro 2007), abordagem da arte do século XX a partir do prisma cinema, disciplina que recusa a fixidez e a imobilidade para conceber e pensar as imagens a partir do movimento e da reprodutibilidade –, o Museu Nacional de Arte Moderna propõe, com esta nova organização, uma leitura dupla da colecção, simultaneamente cronológica e temática. O percurso continua a salientar os grandes fundos monográficos que constituem a especificidade da colecção (Kandinsky, Matisse, Braque, Picasso, Malévich, Léger, Picabia, Dubuffet, entre outros), agora alternados com salas concebidas em torno de uma personalidade (André Breton ou Jean Paulhan), de uma publicação (Cahiers d’art ou Documents), de uma galeria (Maeght ou Jean Fournier), de um movimento (a Bauhaus ou a Arte Cinética) ou de um acontecimento (a Exposição de 1937), interligados por corredores de vitrinas onde são apresentadas cerca de 500 revistas provenientes da Biblioteca Kandinsky. O resultado é um grande labirinto iconográfico que se propõe como uma planificação diagramática da história da arte moderna, dos cruzamentos de artistas, movimentos e pólos de confronto, enfatizando a centralidade de Paris no desenhar dessa discussão internacional, questão que se prolonga estrategicamente na exposição de Tóquio. “Les Peintres de la Vie Moderne” apresenta-se, no pleno sentido da palavra, como uma exposição mais “acidental”. Tratando-se de uma doação recente (da Caisse des Dépôts) e tendo sido expostas todas as obras doadas – representativas da diversidade de práticas fotográficas contemporâneas –, o propósito da exposição foi o de salientar os eixos em torno dos quais a colecção se constituiu (a paisagem, a vista de arquitectura e as visões urbanas, a par de outras imagens encenadas, representativas da interrogação recorrente da fotografia dos anos 80 acerca da especificidade do médium), abordando ainda as relações entre a arte e a economia, bem como a própria noção de “colecção”, muito particularmente no que se refere aos critérios e propósitos da “colecção de empresa” que, com a presente recontextualização, altera o seu estatuto, passando a “colecção de museu”. A alusão a Baudelaire, que define o “pintor da vida moderna” como aquele que “compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus usos”, sugere assim que as obras da colecção estão de acordo com as problemáticas do seu tempo, nomeadamente com a discussão em torno da modernidade do médium fotográfico, tanto no que se refere ao seu olhar instantâneo e às suas propostas de representação do real, como no que respeita à inclusão da fotografia nas colecções de arte. Organizada em torno de um núcleo central marcado por uma grande densidade de imagens, evocação do cabinet de curiosités, antepassado dos salões de pintura e de todas as colecções ocidentais (e referência ao modelo pictural que fez da fotografia, nos anos 80 e 90, um dos últimos refúgios da pintura), a exposição desdobra-se em três secções temáticas, a representação do poder, as dimensões sócio-políticas do mundo e a ficção. A ligação entre a antecâmara da exposição – que marca a passagem do universo funcional da empresa, a mise en scène da instituição, à solenidade respeitável do museu – e a primeira sala, dedicada às imagens e símbolos do poder, sintetiza a proposta expositiva. O expediente pós-moderno da desconstrução pela ironia – sugere-se de que os ritos da empresa e do museu são afinal idênticos –, converte-se imediatamente em caução teórica e na ironia de um aparente distanciamento crítico: numa das paredes pode ler-se que “as paredes do museu, como as da empresa, são espelhos do poder: aí se reflecte o jogo das alianças, a audácia dos investidores, a prudência dos avaliadores e o gosto dominante de uma época”. Versando ainda a interrogação da percepção contemporânea do modernismo como projecto social e código estético, sobretudo no que se refere aos domínios da arquitectura e do urbanismo, a exposição colectiva “Le Nuage Magellan” – o título é de um romance do escritor polaco Stanislaw Lem, publicado em 1955 – reúne seis artistas originários do antigo bloco de leste. Situando a narrativa num país comunista, o autor do romance visionário sobre os desenvolvimentos da tecnologia, usa a descrição de uma viagem interestelar à Grande Nuvem de Magalhães como pretexto para uma análise da sociedade da época que, projectando-se no futuro, adquiriria uma dimensão universal. Metáfora das questões que os artistas contemporâneos se devem colocar hoje sobre as suas escolhas, a história deste romance e da sua recepção constituíram assim, como é referido no texto de apresentação da exposição, o ponto de partida para “uma reflexão sobre as possibilidades e as armadilhas associadas à utilização de referências históricas nas práticas artísticas contemporâneas”. A reescrita da história, a análise do modernismo como ferramenta crítica para compreender o presente, a ressemantização do espaço e dos ícones comunistas, a reactivação da memória ou a proposição futurológica, são algumas das estratégias comuns adoptadas pelos artistas apresentados na exposição que, partilhando um ponto de vista convergente sobre o fracasso do modernismo – entendido como última grande visão política ligada ao progresso, em que o código estético, o projecto sócio-cultural e um futuro omnitecnológico se entelhariam na construção de uma nova sociedade –, usam os seus escombros para mostrar ao ocidente “liberal” aquilo que ele já conhece, aquilo que ele já produz(iu) e, sobretudo, aquilo que ele quer ver. Longe da radicalidade da crítica ao modernismo iniciada nos anos 50, alimentada por situacionistas e letristas e prosseguida, tanto na Europa como nos Estados Unidos, pela Pop e por uma legião infindável de artistas a operar isoladamente, a desilusão (legítima) dos artistas de “Nuage Magellan”, questão que exigiria uma abordagem de outra amplitude, é pois, legitimamente, uma desilusão. Chegado à idade adulta e gerindo uma das mais importantes colecções de arte moderna e contemporânea do mundo, o Centre Pompidou – ele próprio na encruzilhada das concepções da modernidade, considerado, ao mesmo tempo, o último grande edifício moderno e o primeiro pós-moderno – tem sabido cumprir, de modo competente e consensual, a sua principal missão: dar a conhecer, de modo transdisciplinar, a produção artística do século XX, através de olhares diferenciados. No entanto, falando de uma estrutura com as dimensões, o passado e o prestígio internacional do Centre Pompidou, não podemos acreditar que as suas pretensões institucionais se resumam à manutenção da arte moderna e da sua história, mesmo que isso equivalha, num certo sentido, ao culto de uma ancestralidade genealógica, ao reclamar da paternidade da arte contemporânea e à demanda de uma renovada centralidade histórica de Paris. Sendo difícil saber onde começa e acaba o presente, a incitação proustiana à redescoberta do passado, à atribuição de um sentido à persistência do passado e à natureza dessa mesma persistência, não pode estar desligada de um projecto político: a história da arte moderna é o presente. Em oposição à filosofia, essa é, segundo Deleuze, a função reveladora da arte, pois se na Recherche de Proust só os signos artísticos salvam do tempo perdido é porque as descobertas se produzem pela violência dos factos e não pela delimitação cognitiva da filosofia ou da história. Dando crédito ao imperativo moderno, é pois urgente repensar e radicalizar a os propósitos, a metodologia e o alcance do olhar de hoje sobre o passado e os seus modernismos, caso contrário, o argumento da herança do século XIX (e agora também do XX) não será suficiente para restabelecer Paris como a capital da modernidade, mas apenas como a capital da moda. António Preto |