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O AGORA QUE É LÁRITA XAVIER MONTEIRO2014-02-25É de longe, de muito longe que acompanhamos os nublosos conflitos do Médio Oriente. De longe, tão longe que o conhecimento mediado pelas imagens televisivas e os vídeos das redes sociais surgem casa dentro em situação quase ficcionada, quase inacessível. Como se os média perdessem precisamente essa justeza que é estar no meio. Entre a circunstância e o espetador. É de perto que o artista libanês Rabih Mroué acompanha a realidade da vizinha Síria. Mas é sobre a utilização, a narrativa e o poder dos instrumentos virtuais de comunicação que decide falar. A conferência-performance Pixelated Revolution [1] que apresentou em Serralves, exibe ao mesmo tempo que pensa os registos de acontecimentos em curso: a revolução Síria, os sírios, a morte. “Os Sírios estão a filmar a própria morte” Pixelated Revolution é uma palestra não-académica que estreou no P.S. 122 em Nova Iorque em 2012 e passou como projeto de instalação pela dOCUMENTA (13) de Kassel. Em Portugal, Mroué vem apresentando os seus trabalhos individuais e em dupla com Lina Saneh, desde Biokhraphia (2002), Who’s afraid of representation (2004), How Nancy wished that everything was an April Fool’s joke (2007), tendo também colaborado, em Yesterday’s Man (2007) [2], com Tiago Rodrigues para a companhia Mundo Perfeito. Todos se enquadram numa pesquisa sobre a representação do corpo-pátria libanês ou do corpo-estrangeiro em território de circunstâncias políticas problemáticas. A sua criação baseia-se na recolha de documentos e imagens pré-existentes, veiculadas pelos dispositivos de comunicação no espaço público. Talvez por isso tenha escolhido o discurso como modo eficaz de relatar essa experiência de reflexão. Mesa, cadeira, computador Apple MacBook, pequeno candeeiro, copo de água, folhas de papel impressas. Rabih Mroué entra de expressão séria no corpo descontraído. Senta-se na cadeira e inicia a leitura enquanto manipula as imagens e os vídeos projetados numa tela que ocupa todo o palco do auditório. Não deixa de ser curiosa esta desproporção entre a figura do intérprete-conferencista, ao canto, e a enorme tela que configura importância às ideias, imagens e vídeos comentados. E como se torna paradoxal que dos vídeos amadores que vai mostrando não restem senão caras pixelizadas, cuja identidade é diluída. Não identificada. A sangue-frio e com certa [e necessária] distanciação, o artista analisa o Facebook dos grupos revolucionários, incluindo vários vídeos amadores, tremidos e sem foque. É sobretudo “Double Shooting”, colocado online no Youtube, que nos obriga a ver. Frame a frame. Da habitual visualização rápida das plataformas sociais à análise exaustiva. Trata-se de um registo através da câmara de telemóvel de um homem que é atingido por um atirador quando percebe que está a ser filmado. Decerto não vemos o homem por detrás da câmara, embora possamos ouvir a sua voz. Anónimo. O olho da sua câmara viu o que depois se torna acessível à escala global na world wide web. O olho somos nós. Também não definimos os traços do assassino, ainda que todo o seu rosto – no frame super ampliado – se espalhe na tela gigantesca do auditório. Anónimo. No olho do furacão da civilização da imagem, estes vídeos destacam-se pelos seus elementos chocantes, perversos ou imprevisíveis. Muitas vezes tornam-se virais. Mroué quer tentar perceber, chegar à meta-narrativa. Portanto, recorre à metodologia dos cineastas dinamarqueses Vinterberg e von Trier que redigiram o Manifesto Dogma 95, colocando-o em paralelo com os modelos de filmagem dos revolucionários sírios: como filmar uma manifestação? Nesta guerra da imagem, ou guerra contra imagens, as câmaras móveis funcionam como armas de arremesso. Ainda que trémulas, permitem denunciar ao mundo fragmentos da violência praticada. Correm, errantes, são bípedes. Os homens e mulheres que as seguram testemunham a própria morte sem, no entanto, serem mártires. Sem que saibamos se o corpo-humano que está do lado invisível do corpo-máquina [implantado como prótese óptica, o telemóvel], sobrevive. Sabendo que alguém fez o upload daquele registo do corpo-máquina. Do outro lado, a estabilidade traduz-se nos tripés e nos aparelhos de alta resolução, símbolos da firmeza revestida do regime. Com momentos de uma lucidez crua, quanto incrivelmente irónicos [até cómicos, não fosse tudo tão trágico] a performance instiga mais do que esclarece. Aponta-se dos factos: a morte de mais de 130 mil sírios e milhões de refugiados, mantendo-se a guerra civil que mistura revolucionários com islâmicos fundamentalistas, iranianos, curdos, libaneses do Partido Hezbollah,…contra a milícia e o regime de Bashar al-Assad. Do olho da vítima ao olho da câmara, do olho do assassino ao olho da sniper há uma bala disparada. Faz um ricochete. Aponta-se diretamente ao espetador. “É muito provável que atrás desta janela estivesse sentado um snipper” Este agora de lá também se torna mais perto pelo que traz a exposição Preso por Fios [3] da artista tunisina Nadia Kaabi-Linke, com curadoria de Isabel Carlos e em exposição no CAM-Gulbenkian. Comovente e sofisticada na execução dos diversos suportes e materiais e na exploração do seu potencial teórico, a artista evoca perturbações do traçado histórico entre povos e culturas. Falando da simbologia dos israelitas e judeus escondida no belíssimo ready-made Smooth Criminal, do deslocamento imagético da instalação de vídeo Non e do apagamento da memória em Tunisian Americans. Neste contexto há uma obra recente que me prende a atenção. Snipers (2014) mostra a impressão de uma parede de Berlim – cidade onde a artista atualmente vive e trabalha. Marcada de balas, alude ao passado da II Guerra Mundial e simultaneamente enuncia a história recente da Tunísia. Na sinopse também exposta lemos: “(…) No dia em que o ex-presidente Ben-Ali abandonou o país houve uma escalada de combates de rua entre as forças policiais e os civis, e snipers começaram a atirar sobre pessoas a partir de telhados de edifícios. Imediatamente foram colocados no Facebook vários vídeos feitos com telemóveis para mostrar e registar a presença de snipers.” Será interessante pensarmos esta obra específica de Kaabi-Linke em analogia com a performance de Rabih Mroué. É verdade que, em ambos os trabalhos, se revela a vontade de testemunho de situações flagrantes que as notícias muitas vezes obliteram. Escolhe-se acompanhar o trajeto da bala. Tanto no vídeo exibido pela performance como no trabalho plástico, o espetador envolve-se com o lado de cá da vítima, sobre o lado de lá do assassino. Frente à câmara, a mira. Detrás da janela, o sniper. * Hoje, a utilização pessoal e profissional das redes Facebook, Youtube, Twitter manifesta-se como uma necessidade quase básica, quase imprescindível de conexão social. Podemos sentir que mal existimos se não correspondermos a essa identidade virtual registada numa qualquer janela virtual. Ainda que os excessos e perigos do seu uso cause preocupação, há vantagens: um acesso ao mundo sem filtros, onde a informação que prolifera é tão suspeita quanto democrática. Entre protestos e resistência – do Médio Oriente a Portugal - o tempo é de desespero. Traduzido e partilhado. Pixelated Revolution (2012) e Snipers (2014) constituem modos singulares de inscrever o discurso do medo e o discurso da coragem. Para assim nos relacionarmos mais perto. [Rita Xavier Monteiro escreve de acordo com a nova ortografia] The Pixelated Revolution Rabih Mroué Auditório do Museu de Arte Contemporânea da Fundação de Serralves Programação: Cristina Grande 8 de Fevereiro, 2014 ::: Preso por Fios Nadia Kaabi-Linke CAM - Fundação Calouste Gulbenkian 13 de Fevereiro a 25 de Maio, 2014 >>>>>> Notas [1] Para mais informação ver: http://www.serralves.pt/pt/actividades/the-pixelated-revolution-de-rabih-mroue/ [2] Para mais informação ver: http://www.mundoperfeito.pt/yesterdays-man-ev.php [3] Para mais informação ver: http://www.cam.gulbenkian.pt/index.php?article=71888&visual=2&langId=1 |