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DO FASCÍNIO DO TEMPO: A MORTE VIVA DO SOLO E DAS ÁRVORES, O CICLO DA LINGUAGEM E DO SILÊNCIOINÊS FERREIRA-NORMAN2023-11-13
Um dos meus maiores desejos, é que quando eu morra, já seja legal em Portugal ser enterrada em terreno privado, e em vez de num caixão, eu possa ser compostada numa vagem da qual nascerá uma árvore. A tecnologia já existe, falta a lucidez legislativa. E a tecnologia de que falo, não é necessariamente a de elaborar um produto vendável, mas de uma tecnologia que não foi inventada por nós humanos: a capacidade do tempo processar aspetos inerentes à matéria que nos rodeia, como a capacidade do tempo em processar como todos os seres sencientes vivem a sua experiência. A morte é uma experiência altamente física e sensorial (imaterial), um evento em que o tempo se manifesta na sua potência máxima, onde a divisória entre o material e o sensorial se obstruem por não serem compatíveis. Quem experiencia a morte de um ente próximo, experiencia uma espécie de disfunção vital, pois estes mundos desalinham-se, e paradoxalmente, ao permitir a continuação do ciclo material, destabiliza, interrompe, por vezes arrasa, o ciclo cognitivo de quem sobrevive. Isto acontece, a meu ver, por uma questão percetual do tempo: nós não queremos admitir que somos uma porção material de um ciclo, tal como uma árvore cai na floresta e é transformada em solo. Nós sentimos que a morte é permanente, porque não temos acesso póstumo à consciência que habita a matéria, e tratamos tal matéria de formas energeticamente deficientes e simbolicamente díspares: ou guardamos cadáveres embalsamados em químicos e em caixas de madeira blindadas na esperança de que se preservem o maior tempo possível; ou usamos quantidades exorbitantes de energia para queimar e reduzir a presença material dos que morreram, colocando-os em jarras, ou transformando-os em diamantes sintéticos. Até na morte, a nossa sociedade está completamente desligada da Natureza, da sua tecnologia cíclica. Numa planta, num animal, num humano, em qualquer organismo vivo, podemos encontrar azoto e carbono. E é através de um processo aeróbico que estes elementos presentes na matéria vegetal e animal se transformam em composto. Eu gosto de dizer que se transformam em solo, mas é cientificamente incorreto, pois solo tem uma componente mineral que o composto não tem. Nós partilhamos o nosso ADN com o ADN de tudo o que vive, e com o solo, através destes dois (e muitos mais) elementos químicos. É tão mais intuitivo nos devolvermos à terra (dust to dust), a um processo cíclico que não interrompa o passar do nosso valor material químico e inerente, ao nosso próximo momento de existência! No Tibete por exemplo, a prática de enterros celestiais consiste em deixar cadáveres decomporem-se no topo de uma montanha, para que os abutres nativos possam-se alimentar da matéria. A cultura (e as artes) serve também para isto, para estabelecermos formas e sistemas de honrar formas de viver e de morrer: formas de perpetuarmos a nossa efemeridade.
Ode Ficto-Crítica sobre a exposição ‘Eles falam em Arco-Íris’
Eles falam em Arco-Íris, os fenómenos irrequietos Linha: - Navego entre algodão, pano, papel e carvão... A linha une, a linha separa. A luz percorre e move (como se uma planta não soubesse!?) O tempo passa e a Erva Seca testemunha todos os artistas, todo o público que respira. Esse pautar curvilíneo, é uma manifestação contínua. No vagar dos serões, lembro-me de bordar com a minha mãe O arco-íris tem urgência, tem urgência de ser apanhado. Tem um curto espaço de tempo em que um fica molhado, todavia observado, pela calma do bonito. Num momento especial que de muitas formas pode ser escrito, ou levado até ao infinito nas nossas memórias, sem restrições definidas. O Belo do arco-íris foi nestas salas escrito, desenhado e bordado, até imitado. Para mim, o arco-íris nascia das papoilas dos prados, A moldura que nos cabe na cabeça de hoje já oscila mais vezes, Nesse solo e nos pés sedimentários, metamórficos ou ígneos, Mais-do-que-uma-linha é difícil entender, Do cuidado e da atenção nasce a força de viver,
A exposição ‘Eles falam em Arco-Íris’ está patente no CAPC, Círculo Sereia, em Coimbra até 30 de Dezembro. Vale a pena visitar um espaço que dá espaço, não linear, suspenso no pensamento artístico, na sua contemporaneidade ecologicamente atual. No entanto, é um espaço que questiono se dá visibilidade à arte feita sobre os assuntos em questão ou aos assuntos em questão também? Os assuntos, esses, são claramente propostos pela curadora nos seus textos de obra: ‘Como é que a Natureza se cura? Como podemos sarar as nossas feridas, recuperar a nossa natureza? Qual é o papel da arte neste processo de mudança de paradigma, de comportamento e de atitude com o nosso planeta? Como podemos escrever uma nova narrativa sobre os escombros da contemporaneidade?’ pergunta. Em entrevista a Filipa Oliveira ela falou-me de ‘um olhar cuidado que consegue ver aquilo que a maioria de nós não vê. [E que] essa capacidade [de ver] (...) vem de uma atenção profunda e concentrada e de um respeito imenso pela natureza. Acho que é [(o discurso académico-artístico sobre as urgências climáticas)] uma leitura do mundo atual, uma necessidade profunda de lidar com a crise com que estamos a viver, de estar alerta, de propor soluções. Espero que não seja temporário porque é um problema muito sério que temos que enfrentar e os artistas ajudam-nos a encontrar caminhos. Contudo, a história relembra-nos que quase todas as temáticas em arte são temporárias e que se relacionam com períodos do contexto histórico local e mundial. Por isso, de certa maneira, espero que seja temporário porque quereria dizer que a crise climática encontrou soluções. Mas para além de uma resposta a esta situação em particular, há na história da arte uma relação profunda, longa e muito enraizada com a natureza. Não acredito que essa temática, abordada de formas muito diversas, alguma vez desapareça da arte.’ [1] A obra ‘Léxico Lítico’ de Marcelo Moscheta patente nesta exposição, com xisto provindo da Serra da Lousã, dá o mote para uma justaposição temporal e geográfica. Este xisto, que sob erosão e acumulação de nitrogénio e carbono se transforma em solo, coze-se com os pés dos pinheiros, carvalhos e sobreiros que nesta serra crescem. A Serra da Lousã é uma zona florestal contemplada na Rede Natura 2000, uma rede ecológica europeia com zonas determinadas de conservação e de proteção. Deste 2021, e elencadamente durante a inauguração desta exposição, a Serra da Lousã estava a ser alvo de cortes rasos por parte da empresa madeireira Álvaro Matos Bandeira e Filhos, Lda., quer em propriedade privada pertencente à Silveira Tech, quer em terrenos públicos pertencentes à Câmara Municipal da Lousã. Estes eventos foram reportados ao ICNF/GNR em tempo real, sendo que esta entidade não procedeu à apreensão dos madeireiros que já estavam embargados e consequentemente a cometer o crime de infração ao embargo. Viu-se desaparecer 7 hectares de floresta ilegitimamente, com as autoridades a testemunharem e a pedirem às vítimas que tivessem paciência: o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas a falar do desaparecimento criminoso da floresta. As minhas interrogações prendem-se sempre muito com o transbordar empírico da arte para a nossa vida, e da nossa vida para a arte. E para mim é evidente, tal como Oliveira menciona, que o tema da natureza irá perdurar nas reflexões artísticas ainda por vir. Quando convergirmos o membro da equação ‘tempo’ presente na abordagem desta exposição e com os acontecimentos surreais a meros quilómetros da sua inauguração, surge uma reflexão paradoxal, que na realidade está no cerne da atividade de quem se identifica com um discurso ecológico atual: como é que um desacelerar do tempo, que nos permite observar e ser natureza, pode impedir o acelerar das feridas ao mesmo tempo que estas se aprofundam? Parece lógico que para parar o acelerar, é preciso desacelerar, não é? Mas vivemos uma situação de urgência. Se é urgente, aquilo ‘que [por definição] é necessário ser atendido ou feito com rapidez; que não pode ser retardado’ [2], como é que retardar pode sarar? Este é um exemplo de dissonância cognitiva, algo que é denominado como uma patologia, no entanto, não vejo que este seja o sinal de que o mundo está doente, mas vejo a dissonância cognitiva como uma capacidade, a de entender a inerente complexidade da natureza da vida. Nós não temos a capacidade logística - pois só vivemos no máximo um século – de ter a percepção fenomenológica do tempo no seu todo; as ciências tentam através da documentação e da invenção, mas há um aspecto experiencial que não nos permite isso de forma consciente e essa incapacidade intemporal, junto com a soberba, faz com que chamemos patologia a algo tão natural como a complexidade da existência. Há uma citação do poeta indiano Rabindranath Tagore que me traz conforto nesta questão da nossa percepção do tempo, e que é muito apta devido ao tema arbóreo desta reflexão: ‘Aquele que planta árvores sabendo que nunca se vai sentar na sua sombra, já começou a perceber o sentido da vida’. Há que acatarmos a humildade que nos foi concedida e ativarmos aspetos sensoriais que estão adormecidos para reavermos as nossas referências ancestrais, e entendermos o mundo atemporalmente. É fácil sermos transportados para os arco-íris de cada artista nesta exposição, pois o cuidado e a atenção são aspetos que esta exposição envolvente demonstra, tal como era a intenção da curadora, e nos faz sentir. No trabalho contemplativo e exaustivo de Margarida Lagarto e Gabriela Albergaria existem imensas analogias nas metodologias, na obra estética e material que remetem para o oximoro da suspensão do aspeto linear do tempo através do motivo da linha e da repetição, mas que nos transportam para um mundo espacial, sem limites; e é muito aqui que eu vejo o arco-íris: algo que não se sabe onde começa nem acaba, quer temporalmente, quer espacialmente. Também nos transporta para a meditação, para a aproximação entre o artista e o seu sujeito... e os pespontos, que se sustentam como símbolos da nossa vontade de unir. Filipa Oliveira pergunta no texto de obra ‘Textileremediation #1’ de Gabriela Albergaria ‘Como escrever uma nova narrativa sobre os escombros da contemporaneidade? Como criar uma nova linguagem que é a das pedras, a das plantas, das linhas de algodão?’. Esta pergunta une esta obra e o léxico de xisto de Moscheta mesmo ao lado, uma tentativa de novas linguagens. O trabalho dos Otolith Group fala desta necessidade: ‘Com os métodos tradicionais de aquisição de conhecimento, as ciências naturais por um lado e as humanidades por outro, a humanidade atingiu o seu limite. (...) No seu filme-ensaio ‘Medium Earth’ (2013), o Otolith Group explorou a geologia ameaçada por terramotos da Califórnia, assim como o inconsciente capitalista estrutural planetário. Através de imagens que apelavam aos sentidos e da voz de um medium cujo corpo é sensível a ocorrências sísmicas, o filme escuta os desertos da Califórnia, traduz a escrita das rochas e descodifica a caligrafia das fendas da terra.’ [3] Não me surpreende que artistas estejam em busca de novos abecedários, de novas traduções sensoriais, inclusive extradimensionais ou até espirituais, num mundo que nos falsifica conexão. Novas linguagens irão permitir-nos entender o mundo de outra forma, literalmente. A linguagem é um dos elementos mais fortes e determinísticos numa cultura e podemos observá-lo através das suas mudanças orgânicas através do tempo, da forma como é permeável e, fundamentalmente, porque se manifesta em forma de sistema. Na cultura Budista por exemplo, é aconselhado selecionarmos as palavras que dizemos, os vídeos que vemos, a música que ouvimos, pois como se traduzem em sons, e consequentemente em vibrações, influenciam o estado energético do mundo à nossa volta. É para eles um sistema. Mas não é necessário a cultura Budista para nos dizer que nos sentimos melhor ao pé de uma pessoa que nos fale mansamente, do que alguém que profere palavrões ou gritos. A linguagem mesmo se for visual ou plástica, é para mim um mundo sinestético onde os sons e o silêncio, na minha perceção e cognição estão sempre presentes, e numa galeria cheia de imagens, é-me muito intuitivo sentir o timbre dos sons ou dos silêncios que as imagens, esculturas ou qualquer outro trabalho plástico proporcionam. E sobretudo, o som e o silêncio, por sua vez, ditam a velocidade com que o tempo passa.
‘SILÊNCIO DESPALAVRADO
Na realidade, ‘Léxico Lítico’ fez-me lembrar do artigo que escrevi ‘Abordagens que procuram a vida em práticas eco-artísticas: uma proposta para uma mudança cultural radical através da linguagem’, no qual investigo a relação entre som, silêncio, inércia e plasticidade de uma obra, assim como também explico como a escrita de Robin Wall Kimmerer influencia o meu pensamento relativamente ao poder da linguagem:
‘Linguagens Europeias atribuem por norma género aos substantivos, mas Potawatomi não divide o mundo entre masculino e feminino. Nomes e verbos são ou animados ou inanimados. (...) Pronomes, artigos, plurais, demonstrativos, verbos – todos aqueles pedaços de sintaxe que eu nunca conseguia aprumar no liceu em inglês são alinhados em Potawatomi para nos prover de diferentes formas de falar do mundo que tem vida e do que não tem. Conjugações verbais, plurais, tudo é diferenciado conforme se o que estás a falar está vivo ou não.’ [5]
Esta atenção e cuidado para com o que está vivo, que se desenrola num tempo cíclico, pode ser consagrada em algo tão ubíquo como a nossa linguagem, aproximando-nos de forma muito real aos valores que andamos por aqui a filosofar e artificar, de forma sistemática. Na cultura ocidental, já existe um movimento para que sejamos inclusivos com vários pronomes conforme o género com que cada individuo se identifique. Eu exploro essa noção no trabalho ‘Enterro Vital’ (2022) mas com o pensamento da cultura Potawatomi em mente. Após uma meditação pré-enterro sobre a formação da primeira célula (que sob a teoria de Cairnes-Smith foi através da presença de silicatos ferrosos no barro) levei os participantes a recitar um mantra que incluía a dicção de ‘wey’ enquanto pronome para denominar o que estava vivo. A repetição foi sem dúvida a metodologia de escolha para atingir uma certa atemporalidade, e para que este produzisse a energia vibracional que pudesse levar os participantes a assimilar o conceito. O que se constatou, conforme o feedback que posteriormente me deram. É claro que questões como estas terão de ser avaliadas juntamente com as comunidades de onde este pensamento originou por questões de apropriação cultural. É um trabalho que já iniciei, mas que ainda não produziu os frutos necessários para desenvolvê-lo.
Tradescantia pallida purpurea II, Margarida Lagarto. © Inês Ferreira-Norman
Esta transformação na nossa linguagem levaria a que houvesse uma reflexão revolucionária sobre o que consideramos na cultura ocidental estar vivo e não estar, o que é estar vivo no contínuo espaço-tempo, e consequentemente o cuidado e atenção que devemos dar às coisas, deixando assim de as coisificar. Filipa Oliveira fala da ‘cegueira vegetal’ num dos trabalhos de Margarida Lagarto; eu diria que o mundo tem uma cegueira mais viral, mais geral que é a cegueira vital. O desprezo que se dá aos nossos próximos, aos animais, à vida microscópica, é tanto que me atrevo a dizer que o único ato onde não há discriminação é no ato de negligenciar o valor da vida. Vejam-se os conflitos armados a crescerem e intensificarem-se por todo o mundo de dia para dia. Vejam-se os problemas de produção alimentar por culpa da chacina da vida no solo e dos insetos benéficos. Vejam-se árvores centenárias e públicas a serem cortadas para lucros de privados. ‘Muitos artistas mostram-nos outras possibilidades de relacionamento, mostram-nos o que podemos aprender com os mais-que-humanos. Novamente aqui a arte abre o caminho’ [1] diz Filipa Oliveira. E sei que isso é verdade, mas só me traz uma porção de alento. Sei que o mundo da arte nos traz o copo meio cheio, mas o mundo lá fora esvazia a outra metade. Visitar a exposição ‘Eles falam em arco-íris’ fez-me sentir a mudança do paradigma mais difícil em modo dissonância artística: a produção artística nesta galeria convida-nos a ser, a estar, e não a produzir. Há quem diga que este é o valor autodestrutivo mais intrínseco na sociedade ocidental: que os humanos são julgados pelo que produzem, e não por aquilo que simplesmente são. Mas esta exposição é na realidade uma exposição do futuro, e dos antepassados. Há certamente uma dissonância temporal presente, pois os valores que os artistas apresentam e articulados pela curadora, não estão absorvidos pela nossa sociedade. Oliveira inclusive sublinha que ‘possivelmente falta-nos que o pensamento crítico e filosófico nestas áreas saia da academia’ [1]. Talvez assim se comece a escrever uma nova narrativa, onde a linguagem deixa de ser da academia, e passa a contar novas histórias criadas por todos. Estamos realmente num momento histórico de dissonância temporal, em que uma parte da sociedade se move para um futuro que ainda não chegou, a cura, e outra que se agarra às escaras de um presente sem sentido, num conforto falso e sem longevidade. Um presente que não é o mesmo presente de que falo na Ode Ficto-Crítica. Esse é um presente omnitemporal e não um presente patológico que impede a apreciação da dimensão complexa e fascinante que o tempo tem. Afinal de contas, quantos tempos o tempo tem?
Inês Ferreira-Norman
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[1] Entrevista a Filipa Oliveira por correspondência de email, recebida a 1 de Novembro 2023.
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