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PERSPECTIVA E EXTRUSÃO. UMA HISTóRIA DA ARTE (PARTE 3 DE 4)FILIPE PINTO2013-11-28PERSPECTIVA E EXTRUSÃO EMERGÊNCIA E SUPERFÍCIE Superfície A fotografia, ao flutuar sobre a superfície plana e íntegra do papel fotográfico, anula-o, fá-lo desaparecer, faz precisamente desaparecer a própria superfície, escavando-a, neste caso em forma de paisagem. Ora, aquela junção das duas folhas de papel fotográfico desneutralizam a superfície; quer dizer, se a fotografia tem por regra neutralizar a superfície – torná-la neutra, invisível, impotente, inexistente –, Wall, ao escolher situar aquela junção dos papéis no céu limpo, expõe-na, elimina a ilusão e ilumina a própria superfície que a fotografia precisamente é. A superfície de uma imagem (uma pintura, uma fotografia) é então uma pele colorida que se anula, que camufla a superfície; camuflagem é o acto de interpor uma imagem entre um corpo e um observador, como aquela do camaleão, que tanto para a defesa como para o ataque, tanto para comer como para não ser comido, tenta não interromper o fundo, que é o que, por definição, uma figura normalmente faz [14]. Este corte no céu funciona como a superfície de um rio saudável e lento – a água quase quieta tanto espelha como permite o fundo; profundidade e superfície. Uma imagem que anula a superfície – trata-se de uma ideia poderosa, daí ser tão desejada pelas estratégias militares. A invisibilidade como um poder – exactamente o contrário do que acontece com as coisas sociais. Invisível como um espelho – “fui para o quarto de banho com o sobretudo vestido e fiquei a olhar mais para o espelho do que para mim próprio.” [15]. O espelho é invisível e impenetrável; carece também de memória; o espelho é incapaz de reter qualquer presente que passe pela sua superfície escorregadia; igualmente, não lhe é possível qualquer anúncio de futuro; tudo o que é no espelho é agora. Como se anula uma superfície? Transparência, brilho, reflexo (no espelho, num vidro), camuflagem – quatro irmãos de sangue da superfície (ou quatro adversários), quatro formas de a interditar e invisibilizar; (por exemplo, as nuvens aderem aos vidros dos carros – transparência, brilho, reflexo, camuflagem); a transparência não deixa o olhar repousar, o brilho encandeia – o brilho é a forma de a luz se colar à superfície de determinados materiais –, o reflexo e a camuflagem transformam uma superfície em imagem, travestem-na. O reflexo transforma a superfície numa imagem do que está para cá, a camuflagem numa imagem do que está para lá. Três fórmulas sobre questões superficiais: A preocupação de Jeff Wall em desiludir a imagem através da (sobre)exposição do papel fotográfico vem no seguimento de uma reconhecível preocupação crítica com a superfície, nomeadamente, na pintura. Até meados do século XIX, a arte não se queria fazer ver como pura materialidade; a pintura não se queria fazer ver apenas como tinta, mas sim como representação; representação entendida como exposição de coisas e espaço para lá da superfície da tela – profundidade e perspectiva. Se o primeiro movimento da arte, durante séculos e séculos, foi o da escavação, para longe da superfície, quer dizer, para longe de nós – da vida e mundo reais –, dá-se entretanto uma inversão, e as coisas da arte começam a aproximar-se dessa superfície; começam a tornar-se superficiais – após séculos a suster a respiração, séculos de mergulho em apneia, a emergência finalmente. “No rio, alguém mergulhou pela primeira vez naquele ano, e quando a cabeça emergiu de novo ao ar e ao sol, sentiu nas narinas, a sensação de saúde e de um adiamento transitório.” [16] Superfície provém do latim super (por cima de) e facies (face); superfície é a face, o rosto, de alguma coisa – o que é visível, isto é, o que está em contacto com o ar; superficies é a tradução latina do grego chroma (cor), embora já tenha significado pele, a cor da pele mais exactamente. Superfície tem então esta ligação original (radical) à cor; quando falamos das cores das coisas, falamos da cor da superfície das coisas (a única excepção serão os materiais transparentes e aquele objecto único e invisível que é o espelho). Ora, que outra coisa será a pintura senão uma superfície colorida, uma pele – chroma? São reconhecíveis alguns estádios no desenho desta inversão no caminho da arte, inversão que se poderia denominar por opacidade em contraposição à transparência das imagens profundas. A superfície da pintura, por exemplo, foi-se turvando à medida que se aproximava da superfície: algumas obras de Turner, que de tão difusas se aproximam do abstracionismo, isto é, da pura camada de cor – da superfície; outras pinturas de Monet, dos nenúfares à Impressão Sol Nascente, até ao artista que tantas vezes é designado como um dos inventores da modernidade, Manet, que muitas vezes usava espessas (e bem visíveis) camadas de tinta, como que para evidenciar a matéria de que é constituída uma pintura – a tinta antes de mais, uma pele colorida por cima do tecido inócuo da tela [vii]. Este movimento de emergência torna-se claro numa pintura específica e profusamente comentada – a Olympia, de Manet, de 1863, exposta no Salão de Paris dois anos mais tarde, com o escândalo necessário a qualquer obra determinante. Olympia é uma cortesã, uma prostituta, nua, deitada numa cama [viii]. “Na década de 1860 era já um dado adquirido que as mulheres desse género, dantes confinadas às margens da sociedade, haviam progressivamente usurpado o centro das coisas e pareciam moldar a cidade à sua imagem. Daí que os traços que definiam ‘a prostituta’ fossem perdendo qualquer clareza que outrora tivessem, à medida que se esbatia a diferença entre o centro e a margem da ordem social” [17]. Ora, como se percebe, acontece também aqui uma deslocação – a prostituta deixa o bas-fond, as profundidades escuras dos limites da cidade, para, também ela, aparecer à luz da superfície, visível e vidente, quer dizer, que é vista e que vê; há, por assim dizer, uma horizontalização dos assuntos do sexo, do dinheiro, do desejo, de quem paga e de quem oferece, à luz dos candeeiros da cidade. Manet baseia a Olympia na Vénus de Urbino, de Ticiano, muito provavelmente porque supôs que aquela pintura renascentista seria familiar ao público parisiense [18], embora esse facto acabasse por ser ignorado na recepção crítica da época, por desconhecimento ou desinteresse. Mas ainda que essa relação fosse percebida, o que se mostra na Olympia de Manet é bem diferente da obra de Ticiano; o que se vê na pintura de Manet é um nu e não uma representação, isto é, Olympia é um corpo que se oferece e não uma representação de uma deusa qualquer; trata-se de um particular, ao contrário do comum universal. Este factor determina a diferença entre os olhares de Olympia e da Vénus de Urbino ou de incontáveis outros casos em que a protagonista nos olha [ix]. Olympia olha-nos; mas o que interessa aqui não é tanto o facto (metafórico) de sermos descobertos a perscrutar um corpo nu, de nos sentirmos vulneráveis perante uma putativa decisão de aceitar ou não os serviços de uma cortesã; o que aqui interessa, nesta subida à superfície das coisas da arte, é que Manet, nesta pintura deste corpo, naquele olhar desafiador e desavergonhado, pressupõe um espaço para cá da tela; quer dizer, a pintura Olympia reconhece um mundo para lá do seu, para cá da superfície. Nesta perspectiva, Olympia pensa no espaço do espectador, ou, foi pintada a pensar no espaço do espectador, que é o espaço que existe fora do seu mundo. Já não interessa apenas a figura e o fundo, os supostos gestos e adereços, já não interessa apenas o espaço para onde se abre aquela janela de que falávamos no início deste texto. O olhar de Olympia não se dirige aos olhos do artista enquanto a pintava, nem se fica pela superfície iludida da tela – Olympia procura-nos, com os olhos fixos, neste lado do mundo; ou, Olympia procura fixamente alguém em quem por fim repousar o olhar. O olhar de Olympia não vê realmente, mas dá no entanto a entender que reconhece o espaço do espectador, e por isso mesmo, evidencia um claro desejo de superfície, tentando mesmo trespassá-la – o olhar directo ao espaço do espectador parece ter sido a forma encontrada por Manet de transpor a superfície murada da tela. A Olympia de Manet pode ser entendida como um dos primeiros momentos em que a arte tentou transbordar de si própria para as coisas da vida. Profundidade → Olympia → Mundo “Nas fotografias pornográficas, é cada vez mais comum que os sujeitos representados, por intermédio de um calculado estratagema, olhem para a objectiva, ostentando a sua consciência de estarem expostos ao olhar. Este gesto inesperado desmente violentamente a ilusão que está implícita no consumo de tais imagens, segundo a qual aquele que as olha surpreende os actores sem ser visto: os actores, provocando conscientemente o olhar, obrigam o voyeur a olhá-los nos olhos. Nesse instante, o carácter não substancial do rosto humano dá-se bruscamente a ver. O facto de os actores olharem para a objectiva significa que dão a ver que estão simulando; e apesar disso, paradoxalmente, na justa medida em que denunciam a falsificação, parecem mais verdadeiros. O mesmo procedimento é hoje adoptado pela publicidade: a imagem parece mais convincente se ostentar abertamente a sua própria ilusão.” [19]. Com este movimento, Olympia deixou de representar aquela janela tradicional da pintura – como acontecia com a paisagem, para onde olhávamos de dentro para um fora – para se tornar numa espécie de montra, para onde olhamos de fora para um dentro. Ali já não interessa a profundidade da pintura, mas, ao contrário, o seu alcance (para cá da superfície). No desejo de superfície da arte, já pressentido no olhar de Olympia, existiu um momento crítico, uma paragem; essa paragem à superfície deu-se com o aparecimento da arte abstracta. Começou na segunda década do século XX, com a obra de Kandinsky, Mondrian, e acima de tudo com Malevitch, e teve o seu auge na obra crítica de Clement Greenberg acompanhando o trabalho de Jackson Pollock, Barnett Newman e Rothko, entre outros. A história da arte abstracta é a história de uma emancipação; emancipação da arte em relação às coisas do mundo; a arte deixa de ser referente, deixa de se referir a algo exterior a si; (abstracção quer dizer, afinal, abolição da imagem nas camadas possíveis da pintura); com a abstracção, a arte quer valer-se por si própria, autonomizar-se; a arte abstracta resulta de um impulso orgulhoso. Não deixa de ser irónico que neste movimento em direcção à vida e mundo reais, a arte, ao passar real e criticamente pelo problema da superfície, se tenha fechado sobre si própria [x]. Pintura e profundidade, um matrimónio; é a abstracção que vai causar o divórcio desta ligação quase congénita. É a abstracção que finalmente vai embaciar a transparência da pintura profunda; quer dizer, a abstracção faz à pintura o que o embaciamento produz no vidro – o vidro, dispositivo para ver através, torna-se ele próprio obstáculo porque subitamente visível. Em meados do século XX, a questão da superfície da arte, nomeadamente na pintura, tinha um nome muito preciso – a planura da tela, flatness, a característica específica da pintura. Em 1960, Clement Greenberg fazia uma espécie de diagnóstico no texto Modernist Painting – “[a] essência do Modernismo assenta no uso de métodos característicos de cada disciplina para criticar essa própria disciplina, não para a subverter, mas para a limitar mais firmemente na sua área de competência. (…) As limitações que constituem o medium da pintura – a superfície plana, a forma do suporte, as propriedades do pigmento – foram consideradas pelos antigos mestres como factores negativos.” O Modernismo, ao contrário, passou a encarar estas mesmas limitações como campo fértil e único de trabalho e investigação. Em vez de ocultarem a tinta e a superfície através de uma imagem (de uma representação), estes artistas, passaram a reconhecê-los abertamente; de contingência e limitação, a superfície e a tinta passaram a ser o verdadeiro fulcro do trabalho. O Modernismo usou a arte para chamar a atenção para a própria arte [20]. Trabalhando apenas a partir desta especificidade, cada forma de arte tornar-se-ia ‘pura’, embora a demanda por uma qualquer pureza se tenha sempre tornado muito problemática, não faltando à história da arte, da religião, da política, da humanidade, exemplos do perigo que uma loucura deste género pode desencadear; (no entanto, na ressalva ao texto Modernist Painting, escrita já em 1978, Greenberg afirmava que as palavras pureza (purity) e pura (pure), apareciam sempre entre aspas, isto é, não representariam a sua opinião própria, mas apenas um comentário, um diagnóstico, uma possibilidade.). É certo que algumas práticas artísticas nunca deixaram as profundezas de que falámos acima, ainda que não ignorem a superfície – a vida e mundo reais ficam fora do atelier; o mesmo acontece com aquelas que ainda percorrem a superfície interminável das coisas artísticas. No entanto, o que nos interessa aqui são as propostas que se tentam afastar definitivamente deste ambiente, que tentam emergir para cá da superfície – como aqueles seres primordiais dos quais provimos, que nos deram origem, que deixaram o elemento aquático e se renderam à transparência atmosférica, e se aventuraram pela primeira vez e em definitivo pelos terrenos secos, até experimentarem a segurança essencial da savana. Após deixarem a segurança das árvores, aqueles seres hominídeos puderam experimentar o chão e libertar finalmente os membros superiores rumo à evolução definitiva. (Quando as crianças sobem às árvores talvez recordem sem notar aquele estádio primordial da evolução – o reconhecimento de um passado que não lembram mas que, de alguma maneira, lhes é próprio; não uma subida mas um retorno momentâneo.) Tal só foi possível quando se transferiram para o espaço amplo da savana, porque esta oferecia a segurança de um vasto horizonte, onde a possível ameaça seria detectada suficientemente longe, permitindo assim a fuga ou o abrigo sobreviventes [21]. A savana, também ela uma superfície plana. Filipe Pinto [o autor escreve de acordo com a antiga ortografia] :::: Notas [14] J. A. Bragança de Miranda, Corpo e Imagem. Lisboa: Nova Vega, 2008, p. 7. [15] Peter Handke, Um Breve Carta para um Longo Adeus. Lisboa: Difel, s.d., p. 1. [16] Peter Handke, A Tarde de um Escritor. Lisboa: Editorial Presença, 1988, p. 41. [17] T. J. Clark, The Painting of Modern Life. Princeton: Princeton University Press, 1984, p. 79. [18] Theodore Reff, Manet: Olympia. London: Penguin Books, 1976, p. 48. [19] Giorgio Agamben, “The Face”, in Means Without Ends. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000, pp. 93-94. [20] Clement Greenberg, “Modernist Painting”, in Art in Theory 1900-1990, ed. Charles Harrison and Paul Wood. Oxford: Blackwell, 1996, pp. 754-760. [21] Peter Sloterdijk, “Inspiration” in Ephemera, Volume 9 Number 3, London, 2009, p. 244. |