|
CAN WE LISTEN? (PODEMOS OUVIR?)MARIA VLACHOU2018-01-25 Can we talk? Art in the Age of Populism foi o título muito estimulante deste encontro, que convidava a reflectir sobre questões actuais e urgentes: O que é o populismo? Uma ameaça à democracia ou a sua última esperança? É mau por natureza ou será o disfarce com o qual emerge? O sector das artes pode fazer algo para resistir à histeria populista e à polarização que esta provoca? E nós, como profissionais e como cidadãos, podemos fazer rebentar a bolha em que ficámos presos e envolver-nos mais com os nossos co-cidadãos? Erik Corijn, professor de Geografia Social e Cultural na Vrije Universiteit Brussel e keynote speaker, abriu o encontro com um discurso claro e cativante, que criou uma boa base para as questões que seriam discutidas nos dias seguintes. Considera que o populismo é um sintoma da crise da democracia representativa e afirmou que, na forma como se apresenta, nada tem a ver com o “popular”. Os que falam em nome do “povo”, em nome dos que ficaram esquecidos e marginalizados pelas elites e que não têm voz, pertencem eles próprios a elites e raramente a estratos sociais mais populares. Apresentam ainda uma visão bastante autoritária de representatividade (são o líder, o führer, o pai da nação). A seguir, Korijn fez-nos pensar sobre “as pessoas”: Quem é “o povo” que legitima o poder? Quem faz parte, quem é membro, quem é cidadão? Olhou para a história europeia e assinalou a diferença entre a república que resultou da revolução francesa, onde para se ser cidadão bastava aceitar os valores dessa república; e os estados-nações na Europa do século XIX, onde o pertencer ao ethnos (nação) não era o resultado de uma livre escolha ou de um contrato social, mas sim, da existência de laços comuns (uma história, uma identidade, uma língua, uma alma colectiva, um modo de vida, uma cultura particular). Assim, a nacionalidade torna-se na base da cidadania e tem um formato cultural. Existe uma narrativa comum representada na política, na educação, na cultura. É graças a essa narrativa que alguns populistas falam em nome das “pessoas” sem sequer lhes perguntar. Corijn assinalou que, equanto o mercado, a economia e as finanças se tornaram globais, a democracia, a cultura e a representação permaneceram nacionais. Os governos passaram a regular a sociedade em função da competição global, em vez de regularem a economia em função de objectivos sociais. Os parlamentos submeteram-se aos governos e os governos às novas teorias de gestão pública que regulam políticas nacionais sem haver discussão política. Trata-se de um declínio do controlo democrático que, na opinião de Corijn, se torna ainda mais acentuado nas cidades - mais híbridas, mais mistas - que fogem ao “molde” da nação. As cidades, para serem representadas, precisam de mais consultoria, mais participação, mais co-produção; precisam de uma democracia participativa. A democracia, diz Corijn, precisa de um demos (povo), mas continua a ser dominada pelo ethnos (nação). Enquanto a pertença a este último requer uma identidade comum, no mundo urbanisado precisamos de aprender a viver com base na diferença. O modelo de construir sociedades com base na integração numa estabelecida comunidade nacional não funciona aqui. As cidades têm múltiplas comunidades a serem integradas numa sociedade. Corijn concluiu dizendo que nas cidades temos que repensar o lugar da cultura num contexto extremamente diverso. As artes, o sector artístico e os artistas assumem um posição central na reconstrução de uma visão colectiva, de uma nova narrativa inclusiva, de uma democracia reinventada. Isto porque os media, a educação e outras formas de socialização, as instituições para a reprodução socio-cultural, trabalham ainda com base em velhos modelos. A remodelação do imaginário, propor formas de imaginação e expressão simbólica, é precisamente a profissão dos artistas. A arte e a pesquisa científica estão no coração da sociedade do conhecimento. O discurso de Eric Corijn foi muito estimulante, apesar de apresentar algumas fragilidades, que se tornaram mais evidentes na altura das perguntas e respostas. Questões como as condições de representação dos cidadãos que não são “homens – brancos – heterossexuais – sem incapacidades – instruidos” (como Corijn) ou a segurança das “cidades-demos” que se querem independentes dos “estados-ethnos”, ficaram sem resposta. Há ainda muito em que pensar, mas o discurso de Corijn foi uma excelente forma de dar início a três dias de intensa reflexão. Numa outra sessão, chamada Meanwhile in the Countryside, fomos transportados do mundo das cidades para o campo. A sinopse citava o arquitecto Rem Koolhaas que disse que não se pode entender a cidade sem se entender o campo. O campo está a atravessar uma profunda transformação e considera-se que as populações que residem fora dos centros urbanos são mais susceptíveis aos discursos populistas. Será porque sentem que não são ouvidas, que são invisíveis? Será porque 90% do financiamento para a cultura é investido nas cidades, enquanto 40% da população europeia reside no campo? Houve algumas referências nesta sessão que nos pareceram muito relevantes: primeiro, falou-se da re-orientação do financiamento da Cultura na Inglaterra, através do Arts Council, para a criação cultural e artística desenvolvida com os cidadãos e fora dos grandes centros urbanos e das organizações culturais mainstream (ao mesmo tempo que se publicava o estudo do King’s College London Towards Cultural Democracy: promoting cultural capabilities for everyone). A segunda referência que nos pareceu muito relevante é que ao campo não falta Cultura, não se trata apenas de “levar coisas para lá”. É preciso procurar saber quem é que vive em determinado território, ouvir activamente, conhecer as histórias dessas pessoas e apresentar “mais histórias locais para palcos locais”. É preciso ainda não seguir apenas as expectativas (“Não nos dês o que queremos. Dá-nos o que não somos capazes de imaginar”, exclamou o habitante de uma aldeia dinamarquesa à artista Lene Noer). Falou-se ainda da responsabilidade dos artistas para com as comunidades com as quais trabalham e da importância da permanências nesses territórios por períodos de 3 a 5 anos, para lidar também com os impactos do trabalho que está a ser desenvolvido. A última sessão em que tivemos a oportunidade de participar chamava-se Arts and Civic Movements. Apesar de uma introdução algo incompreensível na sinopse da sessão (“Hoje os artistas perderam a vontade de questionar o mundo como outsiders”), que gerou alguma discussão, o que se tornou rapidamente evidente é que muitos artistas e colectivos pretendem participar activamente nas discussões que estão a ter lugar na sociedade, pretendem intervir e tentar influenciar o rumo dos acontecimentos. De acordo com Nick Millet, director artístico da organização Elapse em França, o acto de questionar, que é a essência das artes, inicia logo efeitos políticos na sociedade. Thomas Edder, da LAFT Berlin, acrescentou que as artes questionam rotinas e se o público se envolve neste questionamento, abre-se um espaço para a mudança. Durante a discussão, tornou-se evidente que não se espera que as artes possam combater o populismo. No entanto, podem fornecer alguma energia para uma maior participação no debate crítico. A questão do financiamento, e das limitações que implica (também no que diz respeito à auto-censura) foi amplamente discutida nesta sessão, assim como a necessidade dos artistas e dos profissionais da cultura em geral saírem da bolha em que têm vivido confortavelmente todo este tempo, aparentemente desligados do mundo e, por isso, apanhados do surpresa com recentes desenvolvimentos políticos na Europa e nos EUA. Sugeriu-se a leitura da entrevista de Adam Curtis, cineasta e produtor da BBC, intitulada Is the Artworld Responsible for Trump? A sessão Meanwhile in the Countryside tinha começado com um pequeno vídeo com o filósofo John Berger, que falava do acto de ouvir. Ouvir, dizia Berger, parece ser uma condição passiva, mas é um acto. Muitos discursos e o posicionamento de várias pessoas nos debates foram marcados pela necessidade de classificar pessoas e acções como “de direita” ou “de esquerda”. Esta classificação tem várias extensões: estúpidos ou inteligentes; xenófobos ou tolerantes; no fundo, bons ou maus. É algo que resulta, muitas vezes, num “desligar” da escuta activa e intensifica a polarização que se verifica hoje em muitas sociedades. Como profissionais da cultura, é para isso que queremos contribuir? Ficámos, por isso, a pensar se a questão essencial neste momento, mais do que se somos capazes de falar (Can we talk?), não será se somos capazes de ouvir (Can we listen?). Pensamos que a falta de empatia é um dado muito preocupante na nossa vida em comum - em sociedade -, na cidade e no campo. A Cultura deveria reflectir sobre o como poderá contribuir para a criação de espaços mais empáticos, que possam garantir um diálogo aberto, por mais que desconfortável. Tendo como base a intenção honesta de todos os participantes em reflectir sobre a vida em comum, os espaços culturais podem ser lugares onde as pessoas possam falar e ser ouvidas. Devemos tomar consciência de que o acto de ouvir poderá ser o que realmente constitui activismo ou, melhor, um ponto de partida para o activismo. A referência feita por alguns participantes no encontro do IETM à bolha em que nos habituámos a viver confortavelmente, ao reconhecimento do medo que uma grande parte da população sente em relação às transformações que estão a ter lugar na sociedade, foram para nós um sinal de que uma parte do sector cultural (artistas e gestores) começa a ouvir.
Maria Vlachou
:::
Recursos disponibilizados pelo IETM:
|