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A VIDA É DEMASIADO PRECIOSA PARA SER ESBANJADA NUM MUNDO DESENCANTADOFILIPA ALMEIDA2022-07-29
No seu trigésimo aniversário, e no contexto da temporada Portugal-França 2022, as Curtas de Vila do Conde convidaram a realizadora Marie Losier a participar no festival. Está patente até dia 4 de Setembro a exposição "Excesso Chamalo" na Galeria Solar e, durante o festival, houve a oportunidade de assistir a três projecções em regime de carta-branca onde a realizadora coloca os seus filmes em diálogo com aqueles que a inspiram e encorajam a criar todos os dias – sobretudo obras que descobriu na The Anthology Film Archives, centro fundado por Jonas Mekas, Stan Brakhage, Jerome Hill e Peter Kubelka – filmes que, segundo a realizadora, são exemplos vivos e poéticos de uma certa liberdade de filmar, experimentar e brincar com os formatos convencionais. A selecção incluiu obras de Pola Chapelle, J. J. Murphy, George Kuchar, Tony Conrad, entre outros. Através da exposição, dos filmes, e ainda da conversa com os realizadores Sandro Aguilar e João Pedro Rodrigues, a realizadora mostrou-nos um pouco do seu trabalho e da sua maneira séria a brincar de estar no mundo e com o mundo. Marie Losier é uma cineasta e curadora francesa que trabalha em Nova Iorque há vinte e três anos. Escolhendo filmar maioritariamente em película, numa Bolex que é a extensão do seu olho e da sua mão – esse objecto que a tornou livre, que a ensinou a encontrar o seu próprio ritmo – Marie é uma artista insurgente que nos lembra que "podemos escolher protestar, desviar, pensar, olhar, colaborar e amar." [1] O seu trabalho criativo vai além dos limites e das convenções do cinema tradicional, e oferece-nos, com uma generosidade imensa, uma abordagem romântica, poética e onírica, repleta de cores e texturas, em universos sempre peculiares e vibrantes. Uma abordagem para além de. Para além do convencional, do normativo, dos formatos, das etiquetas, dos códigos e dos "dogmas viscosos" [2] – é um trabalho que está sempre para além de. Explorando as fronteiras ferventes entre ficção e não ficção – e o espaço que se cria e nasce do meio, e feito dos dois - e fazendo desaparecer todas as barreiras, Marie proporciona-nos um cinema livre, apurado e autónomo, sob a forma de retratos poéticos e sublimes da vida e existência - suas e dos seus personagens nada convencionais – neste mundo, e noutros (tantos são os que ela cria). Todos eles nos dão partes de si aliadas a representações semi-ficcionais, numa longa lista de documentários que subvertem as regras de género e de normatividade. Marie filmou ícones underground, incluindo Tony Conrad, Genesis P. Orridge e Lady Jaye, o compositor Felix Kubin (este último, que nos faz pensar no porquê de ter de haver harmonia – e que belo filme), entre outras pessoas e personas com quem se cruza e estabelece relações de afecto e amor – para si, a única possível maneira de filmar. Marie cria um autêntico playground para encontrar, subtil e delicadamente, as verdades das pessoas com quem trabalha - porque quando se joga e brinca, deixamos outro nível de nós emergir e expomos algo de realmente verdadeiro e profundo, algo que normalmente não revelaríamos – quando deixamos de lado o nosso intelectual calculado, aflora-se o nosso mais puro e desinteressado modo de estar, de rir e, também, de sofrer. Sobre isto, numa entrevista de Constance DJong a Marie, ela diz-lhe/nos:
“In the last few years, something that in the US is called political art has gained a lot of visibility. I’m going to generalize but in many if not most cases, it’s an over-didactic form of politics. It’s issue oriented and a point is being made. I’ll find the access you as a filmmaker give your viewers with a portrait of one person and a way of being that’s never really been visible in the world, is infinitely more political.” [3]
Num mundo cada vez mais formatado e massificado, Marie mostra-nos ser mais avant-garde que nunca – relembro agora o momento em que ouvi Sandro Aguilar dizer a Marie “Taking pleasure, and being able to do it with the minimum of conditions, and to do it directly, it’s being the most modern and the most updated filmmaker possible, in our days.” [4] Vinda da pintura e apaixonada pelo cinema mudo de Georges Méliès, os seus "tableaux vivants", como lhes gosta de chamar, foram uma forma de passar da pintura ao movimento, brincando com a magia das (não) narrativas espontâneas, como rasgos de cores e sonhos delirantes: desenham-se as cenas, prepara-se o ambiente, e depois convidam-se as personagens a entrar. Na pintura ou no cinema, do negativo ao positivo, em monótipos ou na película – o que sai é sempre uma surpresa – "está lá tudo, e é belo".[5] O trabalho desenvolvido ao longo dos últimos dois anos proporcionou a concepção desta exposição criada pela artista em parceria com o seu colega e amigo David Legrand, companheiro de projectos, parceiro de sonhos, aliado na teatralidade e performatividade do trabalho – arte – escolha – vida. David Legrand, um autêntico agitador foi um dos criadores do projecto "La Galerie du cartable", que também foi apresentado numa performance interactiva, e que continha um filme feito por ambos numa mochila que se torna um cinema portátil, abrindo-se como uma câmara antiga. A premissa para esta exposição foi pensar como expor o trabalho de Marie fora do contexto da sala de cinema; e há muitas oportunidades e possibilidades que se abrem em termos de materiais, de formas de expor, de aparatos ou artifícios que complementam e expandem os filmes da realizadora. Surgiram elementos e ideias que se aproximam muito dos cruzamentos que a própria galeria procura trabalhar e com a programação do Festival. Entramos num território que nos leva aos primórdios do cinema e ao burlesco, trazendo um certo humor e uma teatralidade excêntrica – e isso veio também a verificar-se nas escolhas da programação paralela. Começamos o percurso da exposição com uma série de desenhos, elaborados propositadamente para a galeria e para este contexto. O próprio suporte é muito delicado e esse é também um lado de Marie –- esse território da fragilidade – que ela trabalha e assume, acolhendo tudo e todos na sua alegre loucura – sendo ela mesma essa alegre loucura. Na primeira sala encontramos obras de David Legrand que ganham uma enorme dimensão plástica e escultórica com três figuras colocadas no meio da sala que se ligam, por tentáculos, às três projecções –- são seres de uma nova era, figuras que se transformam e que mantém tudo à sua volta vivo, ligado, a respirar. Desde o diálogo fictício entre Marguerite Duras e Roland Barthes aos elementos plásticos e constantemente mutáveis, este é um lado que interessa muito a David Legrand – a performatividade, a encenação de vozes, a metamorfose contínua. Seguimos, e entramos cada vez mais no mundo de Marie: um cenário de ópera, a galeria moldada para um modo de pré cinema, onde caixas de luz e modos de fazer cinema mais arcaicos nos transportam a lugares que a própria realizadora explora no seu trabalho, e que estiveram muito presentes na forma de trabalhar e construir a exposição. Desde panelas que relembram os círculos de Chaplin e que encerram a imagem naquela roda viva, às cortinas com uns olhos bem abertos, melancólicos e perguntadores, passamos por confettis que nos convidam a juntar-nos à festa e quase, quase a comer o bolo. Conseguimos ouvir todo um conjunto de elementos sonoros, de diferentes trabalhos, que se juntam e que se tornam numa selva – festa. Fazemos o percurso pelas salas da galeria, como se Marie nos guiasse, enquanto se ri, divertida, quase como se estivesse a deixar marshmallows pelo chão – e nos levasse para onde quer, para todo o lado. Marie percorre o poema, desperta as aves e os animais, dá música e festa a todas as coisas, abre-nos lugares onde todos os delírios são possíveis. Filmes loucos e filmes sérios. Filmes loucos e sérios. Numa tensão latejante entre a dor e a alegria, Marie transporta-nos, transmuta-nos, transforma-nos, transcende-nos. Transborda, transgride. Transita e transfere.
Nasceu em Lisboa, em 1996, cidade onde vive e trabalha. Licenciou-se em Ciências da Cultura e da Comunicação, na Faculdade de Letras. Realizou uma Pós- Gradução em Curadoria de Arte na Nova FCSH, um curso de Estética na SNBA, e está neste momento a realizar o Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas na FBAUL.
Notas: [1] Émilie Flory, Paris, Junho de 2022 in Marie Losier & David Legrand, Excesso Chamalo, p.5 [2] Ibid [3] A conversation with Marie Losier, Constance DeJong, Oct-Nov 2020, in Pleased to meet you, Marie Losier, p.5 [4] Conversa entre Marie Losier, Sandro Aguilar e João Pedro Rodrigues, disponível para consulta aqui. [5] Émilie Flory, Paris, Junho de 2022 in Marie Losier & David Legrand, Excesso Chamalo, p.4
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