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BAS JAN ADER, TRINTA ANOS SOBRE O ÚLTIMO TRAJECTO

JORGE DIAS

2006-08-01
UM PERCURSO POR SEGUIR

SÍLVIA GUERRA

2006-07-14
A MOLDURA DO CINEASTA

AIDA CASTRO

2006-06-30
BIO-MUSEU: UMA CONDIÇÃO, NO MÍNIMO, TRIPLOMÓRFICA

COLECTIVO*

2006-06-14
NEM TUDO SÃO ROSEIRAS

LÍGIA AFONSO

2006-05-17
VICTOR PALLA (1922 - 2006)

JOÃO SILVÉRIO

2006-04-12
VIENA, 22 a 26 de Março de 2006


IMAGENS DA FOTOGRAFIA



JOSÉ MAÇÃS DE CARVALHO

2006-09-18




“ (…) Porque sei que me esqueces é que lembro
Cada instante o que perco e não vem mais.”
António Franco Alexandre, “Duende”


A fotografia existe, em potência, antes do seu tempo. No entanto, foi o media que mais demorou a vulgarizar-se e a existir enquanto técnica e estética autónoma, identificável com um conjunto de procedimentos e atitudes que a sinalizam e lhe dão existência para além de todos os outros media. Recuamos no sentido de localizar os primeiros sintomas de uma mundividência proto-fotográfica.


Começando pelos aspectos técnicos, diríamos que a óptica existiu potencialmente, pelo menos, desde o século XIII, sendo raras as descrições que se fazem de lentes de vidro até ao final do século XV. A partir do século XVII, com o optimismo decorrente dos movimentos da Contra-Reforma, o vidro passou a ser usado, não só como forma de ampliar o visível, mas também como forma de corrigir a visão. Do ponto de vista filosófico e religioso passou a ser aceite como forma de alcançar a verdade e dar visibilidade a novos mundos, microscópicos e astronómicos. É desse tempo a proliferação nos meios científicos e artísticos, da camera obscura: a primeira máquina fotográfica potencial. Ainda de escala supra-humana, antecipava o futuro da fotografia e revelava o princípio básico da construção da imagem fotográfica.


Assim, o vidro passa a ter uma importância decisiva na percepção e reelaboração do mundo, quer através da virtude de poder corrigir os defeitos da visão, quer por permitir (o uso das lentes) ler até mais tarde, prolongando a esperança de vida dos olhos, quer ainda, por permitir revolucionar a forma de estar em casa, concedendo maiores entradas de luz através de janelas cada vez maiores. Se observarmos a obra de Vermeer de Delft, verificamos a intensa luminosidade que surge das janelas. A janela permitia a visibilidade dentro da casa: não era uma lente para o exterior. Esta percepção vai ser determinante para a construção de uma estética fotográfica enquanto catalizadora da luz e modeladora de toda a imagem fotográfica. De outra forma, encontramos na obra de Caravaggio uma estética fotográfica avant-la-lettre, através da redução e modelação da luz que esconde e intensifica os corpos e objectos.


Teríamos que esperar pelo século XIX para encontrar a pré-história da fotografia decorrente das condições tecnológicas trazidas pela Revolução Industrial e consequente avanço científico. Como refere Pedro Miguel Frade, (“Figuras de Espanto”) são as ciências as grandes impulsionadoras da criação das novas próteses do olhar. Assim se explica que tão depressa (cinquenta anos) a fotografia chegasse ao cidadão comum.


No final do século XIX a Europa usava a Fotografia como forma de marcar o tempo e registar a memória. Rapidamente foi identificada como indício de modernidade. Baudelaire foi dos primeiros a perceber as suas potencialidades enquanto instrumento ao serviço de poderes emergentes, tendo problematizado da seguinte forma o seu papel desestabilizador, no campo artístico: “Nestes lamentáveis dias surgiu uma nova indústria que contribuiu para que a chã estupidez fosse reforçada na sua crença…, que a arte mais não é, e mais não pode ser do que a reprodução exacta da natureza…um Deus vingativo satisfez a voz destas pessoas. Daguerre foi o seu Messias.” (Baudelaire citado por Walter Benjamin, “ Sobre arte, técnica, linguagem e política”.)


É curioso que o desenvolvimento da fotografia, no final do século XIX, estivesse dependente da ciência porque as necessidades científicas encontraram nela um instrumento fundamental para o conhecimento. As cronofotografias de Eadweard Muybridge, em 1872, conseguiram decompor os movimentos de um cavalo a galope usando 12 câmaras fotográficas encostadas umas às outras. O seu trabalho desenvolveu-se com o estudo do corpo humano em posições de movimento. Esta capacidade de desconstruir e fragmentar o corpo e o movimento servirá estudos de anatomia e medicina, e estará na base das decomposições do Futurismo e na exaltação da beleza maquinal modernista do princípio do século XX. Também na medicina e, particularmente, no registo das enfermidades e patologias do corpo físico, nos seus aspectos mais degradados, a fotografia foi usada num registo científico. Até no campo da psiquiatria encontramos exemplos de imagens de pacientes em estados de histeria e outros problemas da mesma área.


A ciência criminal foi outro dos campos em que a fotografia foi usada de forma primordial. Alphonse Bertillon dirigiu o centro de identificação criminal de Paris, a partir de 1880. Desenvolveu um método de identificação de criminosos a partir de fotografias frontais e de perfil que acompanhava de um relatório com descrições e medidas rigorosas de partes do corpo. Os seus estudos estão intimamente ligados à obra de Cesare Lombroso, “Antropologia Criminal”, de 1905, que descreveu e organizou tipologicamente, com o apoio de imagens, os desvios à norma, no sentido de identificar o louco, o criminoso, o rebelde, o histérico, etc. Este excesso positivista pretendia proteger a maioria destas minorias, dando-lhes um rosto, uma imagem.


É, enfim, com a fotografia que se procede à forma de identificação da nossa individualidade: o bilhete de identidade. Essa imagem “que nos burocratiza, que nos insere na vasta rede da identificação e cujo elo final é a prisão.” (Bernardo Pinto de Almeida, “Imagem da Fotografia”)


A Fotografia surge então com um estatuto especial que a ciência lhe conferiu: um meio e um instrumento de dizer a verdade. Esta condição foi posta em causa, pouco depois, quando os regimes totalitários do princípio do século XX passaram a usar a imagem ao serviço da propaganda política. A cineasta alemã Leni Riefensthal, que usou as potencialidades da fotografia e do cinema ao serviço da estetização da política nazi, é disso exemplo e, de forma mais implacável, as manipulações fotográficas de outros dirigentes da época, sendo a mais famosa a fotografia de Estaline com Trotsky, ainda companheiros, e depois a mesma imagem já sem Trotsky, dissidente e exilado.
Sinais evidentes de que não se pode confiar na fotografia para chegar à verdade. Consequentemente, passa a ter condições para ficcionar a vida e o real adquirindo a possibilidade de se aproximar das outras artes.


Alfred Stieglitz abre a primeira galeria de fotografia em Nova Iorque, em 1905 – Gallery 291– para além de ser editor de uma das mais importantes publicações de fotografia alguma vez feita: Camera Work. São sintomas de vitalidade e do reconhecimento da fotografia enquanto técnica ao serviço de uma prática artística.


Uma análise formal pode levar-nos a falar na emergência da Fotografia no campo das artes visuais decorrente do esgotamento das artes tradicionais, ou belas-artes. Parece-nos mais pertinente pensar essa emergência como resultado da construção de um sistema de representações do mundo e da realidade, fundado na noção de sociedade da informação mass-mediática.


A partir dos anos 70 a imagem fotográfica e televisiva está em todo o lado. Assiste-se a uma banalização da imagem enquanto instrumento de percepção da realidade. A nossa experiência é, hoje, absolutamente dependente desta condição. Sendo a nossa memória de raiz fotográfica precisa de ser alimentada por imagens, tornando inimaginável um mundo sem fotografia. A problemática da imagem nas sociedades actuais, fortemente mediatizadas coloca, como alguém disse, a grande questão contemporânea acerca das imagens: a impossibilidade de não ver.


O que procuramos numa fotografia? A complexidade e a contradição das fotografias desertas de Atget? No mesmo sentido em que Theodor Adorno falava na qualidade da arte que nos torna conscientes das contradições porque não as resolve. Muitas vezes é preferível pensar a fotografia como suspensão do olhar porque a imagem que nos prende é aquela que induz um momento antes e um momento depois daquele “aqui e agora”. Como quando Velásquez se retrata a si próprio em “Las Meninas”, numa ostentação da sua existência e numa interpelação directa ao novo espectador-rei: afinal a nossa condição contemporânea.
É, pois, esta potência que não se cumpre no objecto fotográfico mas sim na recepção participativa do espectador que faz das boas imagens, imagens singulares. Finalmente, diríamos, como Hugo von Hofmannsthal, que o artista deve ser um sismógrafo: um lugar para onde convergem as imagens do seu tempo, de forma a que a arte nos traga conhecimento, para além da fruição.

A nossa condição de milionários da visão (P. M. Frade, idem) faz da fotografia uma disciplina particularmente democrática, no sentido em que por todos pode ser praticada. O fotógrafo é um coleccionador. Nesta tentativa de coleccionar todos os momentos do mundo, através de imagens cria a ilusão da posse. O nosso fascínio pela fotografia decorre, certamente, desta tentativa de concluir o puzzle que é o universo. Assim se entende o carácter múltiplo da fotografia e a insaciável vontade de disparar: matar o referente (realidade) para o possuir (B. P. Almeida, idem).


A vitalidade da fotografia contemporânea é verificável nas inúmeras colecções de arte, nos diversos institutos e centros de fotografia e nos museus. Também na produção doméstica dos registos do quotidiano. Não teremos tempo de, alguma vez, as vermos na totalidade. Assim é a condição fotográfica, assim é o mundo: incoleccionável.

*Texto publicado parcialmente no catálogo do prémio Purificacion Garcia 2006.


José Maçãs de Carvalho
Fotógrafo e comissário