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SEED/SEMENTE DE ISABEL GARCIAFILOMENA SERRA2020-12-31
É estimulante encontrar algo inesperado e que nos dê esperança num momento em que nos encontramos encerrados nas nossas habitações, com limites de horários e de deslocações, impedidos de ver e abraçar familiares e amigos, ou com essas relações reduzidas a breves encontros. Falo dos recentes trabalhos de Isabel Garcia, realizados em plena pandemia e mostrados na exposição SEMENTE/SEED, ocorrida entre 5 de Setembro e 2 de Outubro deste ano, na Galeria Arte Periférica no CCB em Lisboa. Aí teve a artista em exibição um conjunto de pinturas e pequenos objectos-esculturas. Por essa altura, estávamos ainda no Verão, saídos do confinamento mais duro e antes, portanto, de assistirmos à segunda vaga que nos levou ao actual período de isolamento. Isabel Garcia não registou explicitamente nos seus trabalhos qualquer indicação de estarmos em pandemia, nem tal seria necessário, pois já nessa altura estávamos expostos através dos media a longas horas de informação. Facilmente encontramos, porém, na metáfora da SEMENTE o seu modo de falar da doença e da morte, mas também da vida, sobretudo daqueles – os excluídos – que, nesta pandemia, mais sofrem. A verdade é que SEED coloca uma problemática universal e quotidiana, apesar de à primeira vista aparentar ser apenas um tema unicamente de investigação científica. Com efeito, o mundo das sementes e das plantas é também objecto de pesquisa histórica e até alimentar, no contexto do chamado «imperialismo ecológico» (Alfred Crosby) devido ao comércio global de sementes e plantas que modificou completamente os hábitos alimentares e as práticas agrícolas do mundo inteiro. Plantas asiáticas multiplicaram-se na África e nas Américas e, inversamente, as plantas americanas difundiram-se noutros continentes (J. Mendes Ferrão, Le Voyage des Plantes et les Grandes Découvertes, Chandeigne, 2016). Actualmente, as sementes são objecto de largas discussões pois estão em causa as modificações genéticas e a redução da biodiversidade. Foi também sobre uma premissa histórica que a artista desenvolveu o projecto SEED/SEMENTE, declarando-me que «o mundo sem sementes seria um gigantesco penedo nu, sem vida a deslocar-se no espaço». Do grego «sperma» e em latim «sémen», a raiz etimológica da palavra não esconde a relação com a natureza e a vida, através da reprodução das plantas e animais. As sementes são estruturas fundamentais para a nossa sobrevivência e responsáveis por garantir a dispersão das espécies no ambiente. Daí que a série de pinturas «Floating seeds» de Isabel Garcia lembre os complexos processos de transporte e dispersão das sementes, por vezes a grandes distâncias, pelo vento, pela água ou por organismos vivos ou até sem a ajuda de nenhum agente externo (autocoria), garantindo assim que as plantas possam germinar e desenvolver-se em diferentes locais.
Isabel Garcia, 7 floating seeds, conjunto, 65x65cm. Cortesia da artista.
Neste sentido, temos em SEED/SEMENTE uma interpelação dos dilemas e conflitos com os quais nos debatemos do ponto de vista ambiental. Sempre que abrimos um jornal somos confrontados com notícias de novos factos sobre o aquecimento global ou a continuada e sistemática destruição dos ecossistemas. Por exemplo, as tribos da Amazónia recolhem sementes que preservam as espécies exclusivas do seu entorno natural. A desflorestação e o abate ilegal das árvores pelo agronegócio, com as consequentes alterações climáticas, torna essas tribos vulneráveis às secas e às ondas de calor. São problemas que nos afectam a todos, tal como o plástico nos mares, o desaparecimento das abelhas ou o impacto dos alimentos na saúde humana por via das sementes transgénicas. A pandemia do Coronavírus foi o culminar de todos os desastres naturais. Confinada em casa mais de metade da população mundial, as consequências atmosféricas positivas tornaram-se rapidamente visíveis e muitos de nós pensámos que a pandemia poderia transformar as políticas ambientais dos países. Embora nada disto tenha ainda acontecido, vamos esperar que os responsáveis políticos percebam que é necessário inverter os picos de aquecimento e estabilizar o clima. Muitas das questões sociais que afligem o mundo, acabam por ter impacto em nós através das artes. Basta recordar como «O semeador», uma tela pintada em Barbizon por Jean-François Millet e apresentada no Salon de 1850-1851, acabou por gerar polémica. Havia na imagem realista da figura rude do homem que lançava sementes à terra, uma denúncia da cruel pobreza em que viviam os humildes camponeses e camponesas. Millet tivera a ousadia de substituir o aristocrata e o burguês pela realidade social de um excluído, dando atenção ao trabalho humilde de semear, uma tarefa central na sobrevivência. Porém, o poeta americano Walt Whitman veria em Millet o protótipo do Homem Criativo, semeando as sementes de uma nova era. Outros artistas, guiados pelo «sentimento da natureza» e denunciando os efeitos da industrialização, fizeram também da paisagem, enquanto «construção cultural», lugar de reflexão e de mediação entre a subjectividade e o mundo das coisas. Théodore Rousseau, o «homem das árvores», questionaria o ambiente artificial da cidade; Cézanne elogiaria a montanha e Gauguin fugiria da «civilização»; tal como Mondrian pensaria uma «nova imagem» para o mundo. Também, as sublimes paisagens intocadas de Caspar D. Friederich serviram de tema ao pensamento sobre a natureza. Nos anos 30 do século XX, foi a vez da fotografia de Ansel Adams ou Paul Strand. Já nos anos 60, os artistas da Earth Art interessaram-se pela entropia na natureza; os New Topographics voltaram-se na década seguinte para os ambientes modificados pelo homem; nos anos 80, os performers animaram a paisagem e, nos anos 90, os Eco-Artists começaram a colaborar com os cientistas nas questões da sustentabilidade, da poluição e das políticas ambientais. Actualmente, os movimentos Artivistas alertam-nos para os problemas e para o que pode ser feito. No momento presente em que se prepara uma grande exposição de Ai Weiwei em Lisboa no próximo ano, gostaria de recordar que também este artista visitou o tema das sementes. Na instalação «Sementes de girassol» (Kui Hua Zi), apresentada em 2010 na Tate Modern de Londres, o artista apresentou mais de 100 milhões de minúsculas sementes de girassol em porcelana que encheram o enorme Salão das Turbinas daquele museu. No caso de Ai Weiwei, as sementes de girassol evocam uma memória pessoal do seu imaginário infantil. Ele pretendia recordar que as sementes de girassol, base da sua instalação, faziam parte da propaganda comunista quando esta retratava Mao Tsé Tung como o Sol e os cidadãos da República Popular da China se voltavam como girassóis para o seu presidente, ao mesmo tempo que também recordavam que, entre os mais pobres, partilhar as sementes de girassol era um deleite entre amigos.
Isabel Garcia, SEED - objecto bronze #1. Cortesia da artista.
É assim que, em tempos e em contextos de produção diferentes, as artes visuais nunca deixaram de problematizar e sensibilizar, incitando à mudança de mentalidades e comportamentos. No caso de SEED/SEMENTE de Isabel Garcia, as suas pinturas e pequenas esculturas despertam, pela força das imagens, empatia e emoção. A ideia de «Seed» que opera como matriz no processo de trabalho da artista é um convite urgente a pensar a negociação entre natureza e ambiente. Os belíssimos objectos em bronze patinado são, simultaneamente, pequenos cofres e sementes. Guardam, protegem, multiplicam-se e serviram à artista para, por decalque dos seus perfis, construir muitos dos desenhos aguarelados (que não são agora apresentados), bem como as figuras das suas «Floating seeds», pinturas que foi desenvolvendo durante o confinamento e cujas imagens me foi enviando.
Isabel Garcia, SEED - MATRIZ #3, 70x50cm, aguarela sobre papel fabriano 300g. Cortesia da artista.
Quando me foi dado vê-las, verifiquei a revisitação da tradição da pintura de paisagem e das ilusões ópticas do trompe l’oeil. Nestas «Sementes flutuantes», os fragmentos circulares de sementes são artificiosamente pintados em tridimensionalidade contra um fundo azul-céu parecendo desprender-se do suporte e disseminarem-se no espaço. Na série «Another green world», que evoca a música ambiental do músico e artista visual Brian Eno, vemos buracos ou esconderijos protectores em paisagens estranhas de florestas e céus tormentosos. São pequenas zonas de aconchego onde se abrigam ciprestes e pequenas casas, fontes ou rios. Estes elementos alegóricos podem ter várias leituras. Por exemplo, das árvores nascem sementes. E as pequenas casas onde habitamos são os nossos lares e o lugar da família, unidade fundamental, onde se trocam e se semeiam afectos e ideias. Por seu turno, as fontes e os rios são elementos na natureza de transporte das sementes e factores de propagação e germinação.
Isabel Garcia, Another Green World (2 casas vermelhas), 65x40cm. Cortesia da artista.
Daí que SEED/SEMENTE não se refira unicamente ao ciclo natural da vida e da morte, mas quem sabe se a novas ideias e processos de vida. Ou a restos de sonhos ou a experiências sensoriais do confinamento vivido por Isabel Garcia e, projectualmente, aos confinamentos de todos nós. Por exemplo, no sublime das paisagens de «Another green world», os espaços arquitectónicos criados e a verticalidade dos ciprestes, símbolos da eternidade, permitem imaginar lugares de silêncio aos quais a vida urbana nos desabituou. Mas não só. As ideias de transformação e de acção estão subjacentes, pois que podemos fazer neste apocalipse caótico que nos rodeia? A arte talvez não forneça respostas mas pode indicar caminhos: as «sementes» das pinturas e das esculturas de Isabel Garcia são, não só um excelente exemplo de atenção ao passado da arte e à tradição da história da paisagem e da crítica social, mas mais do que isso: dão a possibilidade a cada um de nós de olhar para estes trabalhos e meditar na urgência de construir as nossas próprias «Seedlands», isto é, novos modos de criar e lutar por horizontes de paisagens sustentáveis pensando na vida das gerações futuras. É dentro desta ideia que Isabel Garcia apresentará, em Março de 2021, um outro desafio no Laboratório de Química do Museu de História Natural em Lisboa, com a exposição SEEDLAND.
Filomena Serra
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