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MULHERES NA ARTE NUM ATELIÊ QUE SEJA SÓ MEUJOANA CONSIGLIERI2021-10-29
I feel you have similar problems which is also evident in your work. Are we worthy of this struggle and will we surmount the obstacles. We are more than dilettantes so we can’t even have their satisfactions of accomplishment. The making of a “pretty dress” successful party pretty picture does not satisfy us. We want to achieve something meaningful and to feel our involvements make of us valuable thinking persons.
Sentimentos. Palavras. Vontades. Sonhos. Oscilações de pensamentos que flutuam como ondas de uma tempestade. No vasto oceano, da mais profunda escuridão do ser, seja homem ou mulher, emergem as vontades e os desejos que durante muito tempo foram esquecidos. Obstáculos, impressões ou mudanças de cenários, as artistas buscam, na senda da verdade, o “ser-mulher”, cujos clichés simplesmente estrangulam a dificuldade de ser simplesmente humano. Por vezes, o “ser-mulher” não se satisfaz apenas através de um “bonito vestido”, como disse Eva Hesse, de um vislumbre de “um quarto que seja seu”, como expressou Virginia Woolf, ou ao sermos simplesmente reduzidas a “uma mulher como mulher”, quando aspiramos “ser considerados seres humanos”, como defendeu Dorothy Parker. O direito à voz, ao olhar, à intimidade das pequenas coisas do quotidiano, à sexualidade, ao erotismo e ao feminino, à espiritualidade, a um “corpo-pensante” que tenha uma identidade própria, à individualidade de um ser que seja parte de um todo, leva a origem a linguagens literárias e plásticas, que dão à mulher a presença como ser humano. Um “Um”, não um “Outro”, ou melhor, nem Um nem Outro. Simone de Beauvoir questiona que “não é o Outro que, definindo-se como Outro, define o Um; ele é posto como Outro pelo Um definindo-se como Um. Mas para que o Outro não se transforme no Um é preciso que se sujeite a esse ponto de vista alheio. De onde vem essa submissão na mulher?” De facto, já não deveríamos continuar permanentemente a ter estas reflexões, apenas ter a liberdade de “Ser”. Olhamos para o nosso legado feminino, contemplamos as obras plásticas orgânicas e viscerais das artistas Eva Hesse e Ana Mendieta, que abarcam o ser como sendo universal ou pertencente a Gaia, Mother Earth, onde o feminino é abstrato, interior-visceral, sem “rosto”, sendo, portanto, coletivo, o nascimento dos seres, a origem, a célula.
My works are the irrigation veins of the Universal fluid. Through them ascend the ancestral sap, the original beliefs, the primordial accumulations, the unconscious thoughts that animate the world (Ana Mendieta, 1988).
Através das obras de arte, as artistas rompem as teias pré-definidas do que se entende de mulher e do ideal do “eterno feminino”, já outrora havia sido recusado no princípio do século XX, a título de exemplo, a artista Barbara Hepworth, numa expressão abstrata da forma orgânica, enquanto escultura. Presentemente, em Portugal, têm surgido algumas exposições que apresentam o trabalho de várias artistas, que aprofundam a noção de mulher enquanto ser, de acordo com as escolhas dos diferentes curadores e interesses temáticos. É disso exemplo a exposição Tudo o que eu quero — Artistas portuguesas de 1900 a 2020, uma iniciativa do Ministério da Cultura, com produção executiva e curadoria da Fundação Gulbenkian, de Helena de Freitas e Bruno Marchand. Outras visões e experiências são expostas na Galeria de S. Roque. Recordamos também a exposição Metade do Céu, com a curadoria de Pedro Cabrita Reis, em 2019, cujas linguagens revolucionárias ou contestatárias manifestam uma visão mais espontânea no Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva. Todavia, ser mais do que mulher revela-se pelo pensamento único de cada uma delas, algo a que podemos aceder através de linguagens e experiências estéticas sobre o que se entende por “ser”, no seu olhar particular. Encontramos estas estéticas em algumas artistas, como Josefa de Óbidos, que conseguiu perdurar no tempo até ser valorizada pelo seu barroco feminino, em pequenos detalhes de claro/escuro, em potes e frutos com pequenas formigas a passear. Aurélia de Sousa, uma das artistas mais patentes nas diferentes exposições, nos seus cenários captados de um modo intimista ou em autorretratos revolucionários. Maria Helena Vieira da Silva, nas suas pinturas com cenários quadriculados, cujas linhas e formas se movimentam e se cruzam rapidamente no espaço, dando lugar a outras leituras da dimensão matemática espaciotemporal pictórico, e Sofia Areal, cuja cor, por vezes, “acaba por ser tão fugaz como uma imagem que se consegue captar a si própria”, segundo João Miguel Fernandes Jorge (2018). Para Maria José Oliveira, ser-mulher relaciona-se com a arqueologia do ser universal, no tempo e no espaço, em que a forma e a matéria sobressaem da imaterializada estética. Ela engendra, através da passagem do tempo, suturas que transpõem no espaço arqueológico objetos naturais e corpos humanos. As roupas orgânicas e anti-joias ganham um novo registo, onde a linguagem feminina se apresenta “anti-feminina” em relação aos clichés pré-definidos da sociedade ocidental. Eis o que Ana Hatherly a descreveu:
Dar a ver esse espaço que se situa entre o que ele é e o seu interstício, eis o que nesta mostra cria leituras que são percepções, revelações de um pensamento da visualidade semelhante ao que Deleuze chamou metafísica da imaginação.
A escolha das palavras de Ana Hatherly, enquanto filósofa, escritora e artista visual, evidencia o universo do mundo estético no feminino, com um pensamento do ser como processo de criação. Ana Hatherly anuncia uma visualidade caleidoscópica no seu próprio discurso estético, ao desvelar que a dobra de uma imagem se encontra noutra perceção. Em Maria José Oliveira, encontramos o que Deleuze apelidava de “arqueologia do saber”, e que, em Ana Hatherly, é visível na dobra flutuante, cujas linhas do pensamento se torcem e bifurcam em múltiplas direções, e que oculta o erotismo e a sensualidade feminina, quase como uma rotura. Espaço onde a poesia se liberta. O universo feminino, enquanto ser humano, encontra-se na liberdade do ser. A procura constante da identidade manifesta-se em múltiplas linguagens. É o que percecionamos nos autorretratos de Helena Almeida, cujo corpo é desenho, e este se transforma no próprio corpo. As obras da autora ganham expressão de reivindicação ou de manifesto do pensamento e de atitudes sociais sobre o feminino, continuam a ser vistas como “gritos de contestação” do humano. Na obra plástica “Ouve-me” ou “Sente-me” (1974), a artista transfigura-se:
A verdade é o Outro. Não o outro que de mim sai como um rio
Na exposição “Silêncio”, de 1998, na Sala do Veado, das artistas Cristina Ataíde e Graça Pereira Coutinho, contemplamos o outro, dando a voz a quem não pode ou retratar o silêncio. Apresenta-se uma “unidade” como ato de um despreendimento da identidade, do ego, para dar lugar ao todo, à consciência do coletivo. Das artistas para a comunidade, para as mulheres e para as crianças, emerge a obra de arte. Em Lourdes Castro, anuncia as suas experiências vivenciais através de objetos utilitários, pintados com tinta de alumínio, deram lugar às “sombras”, uma invisibilidade em plexiglas e também em lençóis bordados, segundo a artista (1968):
São de facto lençóis bordados com contorno de sombras de pessoas deitadas. Tive essa ideia há muito tempo, a de fazer sombras de pessoas deitadas… porque é que se deve dependurar tudo nas paredes. Os japoneses desenrolam os kakemonos só em ocasiões especiais. Um livro tem de ser aberto. Os meus lençóis são para dormir em cima deles.
Recordamos, então, Clara Menéres por exaltar a mulher como uma manifestação feminista de apelo à liberdade de expressão, da sexualidade e do erotismo. Por vezes esquecida nos dias de hoje, foi a pioneira em desconstruir tabus, como no caso da instalação-escultórica Mulher-Terra-Vida, 1977, obra que permanece contemporânea e revolucionária, abraçando, assim, questões mais profundas do inconsciente coletivo:
É uma peça que intensifica as curvas da paisagem com o corpo da mulher, numa clara referência aos mitos da Terra-Mãe. É uma ideia simples que está inscrita na tradição mítica e sagrada da humanidade. Com grande surpresa minha, esta peça desencadeou estranhos preconceitos e agressividades. Descobri que de noite alguém flagelava o ventre de terra e erva com um bastão. No Brasil, a escultura levantou polémica ao nível do país porque a nudez feminina expressa em material vegetal foi entendida como particularmente impúdica. Esta obra fez-me compreender que tocar na versão feminina da mitologia das origens, nos ciclos da gestação, no mistério da transformação da morte em vida e na figuração do corpo da Grande Mãe, era também tocar em níveis muito profundos do inconsciente humano.
E muitas outras linguagens, identidades, sonhos, desejos, ações e experiências por descrever, descobrir e contemplar…
Joana Consiglieri |