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FILMES DE ARTISTA: O ESPECTRO DA NARRATIVA ENTRE O CINEMA E A GALERIA.JOSÉ RAPOSO2015-02-02Numa mesa-redonda promovida pelo MIRAJ: Moving Image Review & Art Journal [1] a propósito do ciclo de programação da Tate Britain dedicado à recente produção fílmica no âmbito das artes plásticas britânicas, A Survey of Recent Artists’ Film and Video in Britain (2008–2013), um dos temas mais comentados refere-se ao contexto de exibição específico do museu e da galeria. A democratização dos sistemas de projecção de vídeo, cujas especificações técnicas têm evoluído significativamente desde os anos 1990, coloca alguns desafios à política curatorial desenvolvida em torno da imagem em movimento, com consequências quer ao nível da exibição, quer do visionamento. Assembly reuniu trabalhos de cerca de 90 artistas, com enfâse em obras de ecrã único, próximos de uma ideia clássica da experiência cinemática. Esta secundarização da instalação vídeo num ciclo marcante, quer pela centralidade da instituição em causa, quer pela sua dimensão e metodologia de selecção [2], é indicativa de algumas das transformações que têm vindo a ocorrer no campo dos filmes de artista no Reino Unido. Qual o contexto ideal de exibição e qual a sua relação com o próprio objecto artístico? A sala de cinema e o espectador imóvel, ou o espaço da galeria e um regime de atenção disperso? George Clark, curador assistente da Tate Film e um dos curadores do ciclo, defendeu a exibição do programa no auditório da Tate Britain como uma forma de legitimação da vertente cinemática das obras do programa [3]. É uma questão que permanece em aberto, mas que não deixa de trazer para primeiro plano uma certa primazia da política curatorial perante questões relacionadas com a própria prática artística. Ora, a legitimação de um modelo de recepção cinemático traz consigo algumas questões específicas relativas aos filmes de artista no domínio das artes plásticas britânicas, sobretudo aquelas relacionadas com a relação entre a experiência da sala de cinema e uma abordagem à imagem em movimento ancorada na narrativa. Para Elizabeth Price, uma das artistas presentes no ciclo, a projecção em sala é justamente um veículo privilegiado na relação entre espectador e narrativa. A atenção que tem sido prestada ao campo da narrativa, seja através da abordagem aos modelos do cinema narrativo ou ao próprio regime televisivo, parece aliás indicar a emergência de rupturas num paradigma crítico, outrora assente em práticas auto reflexivas. Para além de algumas razões estruturais que contribuem para essa transformação, é também imperativa a consideração do alcance das alterações provocadas pela absorção dos mecanismos de produção nas estruturas próprias da cultura digital. Ed Atkins, um dos artistas que mais tem trabalhado sobre questões relacionadas com essa interseção, desenvolve a questão em termos bastante expressivos: “ainda que o cinema estruturalista me seja muito importante, há certos elementos no meu trabalho que são decisivamente digitais, na medida em que dizem respeito à mediação do cinema e da televisão. O modelo de trabalho de fazer tudo com uma câmara e um computador portátil é central nesta discussão; o meu trabalho não é capaz de expor os mecanismos da sua própria produção porque eu não sei como programar o software e a linguagem de programação que lhe está inerente” [4]. Uma das obras canónicas do estruturalismo cinematográfico, Line Describing A Cone (1973) [Fig. 1], de Anthony McCall, mantém assim um forte diálogo com o nosso momento contemporâneo, na medida em que expõe de forma absolutamente transparente algumas das implicações das alterações no regime de produção da imagem em movimento. Mesmo no exemplo particular da obra de McCall, não se pode deixar de sublinhar a importância que a recepção da sua obra no contexto institucional do white cube teve para uma renovada leitura crítica da sua obra, nomeadamente após ter sido exibida na importantíssima exposição retrospectiva Into the Light: The Projected Image in American Art 1964-1977 (2001), com curadoria de Chrissie Iles [5]. Nesse sentido poderemos mesmo admitir que um dos modelos mais estruturantes da mobilização da imagem em movimento para o espaço do museu, no caso dos filmes de artista britânicos, tem sido animado nos tempos mais recentes por uma dialética diametralmente oposta: não se trata tanto de contribuir para a leitura crítica dessas obras à luz dos parâmetros enunciados por autores como Brian O’Doherty, mas sim o de procurar encorajar um relacionamento entre público e obra modelado a partir da experiência da sala de cinema. Um exemplo dessa tendência está patente no desenvolvimento do Film London Jarman Award, uma iniciativa criada em 2008 pela FLAMIN (Film London Artists’ Moving Image Network) destinada a ‘celebrar o espírito de experimentação, imaginação e inspiração no trabalho de artistas britânicos’, e que tem como figura tutelar o realizador Derek Jarman e o seu legado artístico. A edição deste ano, que incluiu um programa itinerante por diversas cidades do país com obras dos 10 artistas nomeados, teve a cerimónia final na Whitechapel Gallery em Londres no passado mês de Dezembro. As dez mil libras que cabem ao vencedor serão seguramente um contributo marcante para o desenvolvimento da carreira do premiado, mas um dos aspectos mais relevantes são as comissões conjuntas com o Channel 4, que para além do vencedor contempla ainda mais 4 artistas. Random Acts, o segmento da programação criado em 2011 dedicado à transmissão de curtas-metragens comissionadas pelo próprio canal, em conjunto com outros parceiros estratégicos [6], tem um papel meritório na difusão destas obras, tendo já exibido filmes de artistas como Mark Aerial Waller, Emily Wardil, Duncan Campbell, ou Steven Claydon; é uma política de programação exemplar pela forma como coloca a televisão ao serviço da difusão cultural (é um canal público, ainda que receba financiamento privado, recorde-se). Ursula Mayer foi a vencedora desta última edição [7]. Os seus trabalhos abordam temas relacionados com a identidade de género e a sua relação com o consumismo contemporâneo, estabelecendo por vezes um diálogo com obras de artistas como ponto de partida para o seu próprio universo estético e conceptual. Em Gonda (2012) [Fig. 2], aborda o legado da escritora Ayn Rand apresentando uma leitura crítica de uma peça de teatro escrita por Rand, Play; Medea (2013), propõe uma leitura contemporânea da crítica à sociedade de consumo elaborada por Piero Paolo Pasolini no filme com o mesmo título - uma magnífica herdeira do legado de Derek Jarman! A FLAMIN tem ainda um papel determinante no financiamento de filmes de artista para além do Prémio Jarman, particularmente no que diz respeito a produções com mais de vinte minutos de duração e de ecrã único, aspecto da maior relevância face ao que tem vindo aqui a ser exposto [8]. Este incentivo à produção tem como propósito financiar uma obra que contribua para um avanço decisivo na carreira do artista e desde a sua fundação já contou com cinco ciclos de produção, financiando obras importantes de artistas como Laure Prouvost ou Elizabeth Price. No primeiro caso contribuiu de forma decisiva para o impulsionamento da sua carreira produzindo a sua primeira longa-metragem, The Wanderer (2012) [Fig. 3], uma obra que adapta um guião do artista Roy McBeth (que não sabe ler alemão), baseado numa tradução de A Metamorfose de Franz Kafka; no segundo caso, a produção financiada pelo FLAMIN contribui directamente para a atribuição do Turner Prize a Elizabeth Price com West Hinder (2012) [Fig. 4], uma das obras da exposição no Baltic Centre For Contemporary Art pela qual foi nomeada, e que parte de um incidente real (o naufrágio, em 2002, de um navio de carga com carros de luxo a bordo) para se aproximar dos territórios da ficção científica – West Hinder seria o local do naufrágio onde os carros se encontravam afundados, e que na obra de Price figura uma outra dimensão, fora do nosso tempo e espaço; consequência dos sistemas de navegação inteligentes que possuem, os luxuosos veículos adquirem uma forma de consciência que lhes permite narrar as circunstâncias do acidente. Esta sustentada tendência para a produção de obras fascinadas com poder da narrativa no contexto britânico dos filmes de artista, é uma oportunidade para contemplar a dimensão das transformações ocorridas no campo da imagem em movimento. Poderemos colocar em perspectiva alguns dos recentes desenvolvimentos a partir de duas grandes linhas orientadoras, que acabam por esboçar dois trajectos cruzados. Em primeiro lugar, o financiamento especificamente destinado aos filmes de artista contribuiu de forma assinalável para a vitalidade das práticas que têm surgido nesse campo. Mas se é evidente que essa política possibilitou a emergência de uma nova geração de artistas dedicados à imagem em movimento no campo da arte contemporânea, o que é também sintomático é o facto de haver um crescente número de cineastas outrora associados aos circuitos de produção e distribuição de cinema experimental e de vanguarda a trabalhar sob a alçada do sistema de galerias. Seja resultado de apoios directos à produção, seja através da produção de edições (artificialmente) limitadas que passam a circular no mercado da arte contemporânea, muito do trabalho que há pouco mais de dez anos estaria a lutar por espectadores nas salas de cinema, está hoje a ser exibido no cubo branco: Tacita Dean (Frith Street Gallery), Stan Douglas (David Zwirner), ou Mathew Buckingham (Murray Guy), são exemplos emblemáticos desta nova configuração. Por outro lado, a constatação de que nos últimos anos, artistas britânicos oriundos da arte contemporânea tenham alcançado assinalável sucesso comercial em Hollywood: Steve McQueen será o caso mais exemplar desta situação, e Sam Taylor-Wood está prestes a estrear 50 Shades of Grey, a sua segunda longa-metragem. Talvez não seja surpreendente a atenção prestada aos trabalhos de ecrã único, considerando os exemplos de McQueen e Taylor-Wood. Trata-se, enfim, de uma estratégia estruturante do sector cultural da parte de organismos públicos que tem dado frutos.
José Raposo
Notas finais [1] O debate reúne curadores, profissionais da área, artistas e críticos, numa discussão sobre as questões levantadas pelo ciclo inserida numa reflexão sobre práticas artísticas contemporâneas. George Clark, programador da Tate Film e co-curador do Assembly; Elizabeth Price, uma das artistas selecionadas; Gil Leung, programador da LUX, uma agência dedicada à distribuição de filmes de artista; Gil Leung, programador da agência e distribuidora de filmes de artista LUX; Andrew Vallance e Simon Payne co- curadores do ciclo; e David Curtis, curador que entre 1997 e 2000 trabalhou no Arts Council, um organismo público dedicado ao financiamento no sector cultural, foram os intervenientes. [2] O processo curatorial passou pelo estabelecimento de um grupo alargado de especialistas na área, fossem eles curadores, críticos ou artistas. O grupo de 34 curadores seleccionou 10 obras cada; o programa final contou com 210 obras de 90 artistas (houve propostas repetidas das 340 iniciais). [3] “It is about trying to say the cinematic experience of work is the exhibition of that work, and a valid one. One of the ambitions of this programme is to try and re-energize the auditorium as an exhibition space, and to have work that is shown there over a three-month exhibition of contemporary artists’ film video.” [4] O comentário surge na edição de Outubro de 2011 da Frieze, no âmbito de uma discussão que aborda algumas das questões que têm aqui vindo a ser levantadas; tradução minha. http://www.frieze.com/issue/article/more-than-a-feeling/ [5] A exposição constitui um momento importante na renovação do interesse crítico perante práticas artísticas com recurso à imagem em movimento, tendo apresentado um conjunto de obras até então primordialmente associadas ao campo do cinema experimental num novo contexto institucional. No caso da obra de McCall, note-se o contributo que a sua exibição no espaço do museu oferece à sua obra, que sempre foi marcada por uma atitude reflexiva perante o aparato cinematográfico. A recepção da sua obra em contexto museológico permite realçar algumas características da sua obra, porventura não tão pronunciados quando projectada no circuito de cinema underground e independente, o seu principal meio de circulação ao longo dos anos 1970. Line Describing A Cone faz parte de uma linha de trabalho de McCall onde o realizador aborda a natureza do próprio aparato cinematográfico, consistindo na projecção de um raio de luz que gradualmente e ao longo de 30 minutos descreve um círculo na superfície projectada. [6] Para além da Film London, a Tate Media e a FACT – Foundation for Art and Creative Technology, são algumas da entidades que têm colaborado com o regime de comissões. Os trabalhos podem ser vistos online: http://randomacts.channel4.com [7] Ursula Mayer foi a vencedora, e as restantes comissões foram atribuídas aos artistas Sebastian Buerkner, Marvin Gaye Chetwynd, e Iain Forsyth & Jane Pollard. http://filmlondon.org.uk/funding/artists-film-fund/jarman_award [8] Ao contrário do Prémio Jarman Award que tem uma dimensão nacional, estes incentivos à produção são apenas de âmbito regional, para artistas que trabalhem em Londres. O financiamento menciona especificamente critérios formais: ecrã único e mínimo de vinte minutos de duração. http://flamin.filmlondon.org.uk/resources/production_funding |