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E AGORA, O QUE FAZEMOS COM ISTO?RUI MATOSO2018-05-12
1 Apesar de consensual, o debate público em torno deste aumento não mereceu ainda o aprofundamento necessário à correlativa transformação dos modelos de políticas públicas para a cultura. Uma coisa é pretender que este 1% sirva para manter o status quo da política cultural vigente, aumentando-se a distribuição de receitas pelos serviços públicos, entidades e organismos do Estado central já existentes, o que incluiria obviamente maiores dotações para o financiamento público às artes. É certo que isso contribuiria, de algum modo, para a melhoria do serviço público de cultura. Mas que ideias novas temos para a adequação e resposta dos serviços públicos perante os desafios complexos do mundo actual, diante dos ataques em todas as frentes do capitalismo de catástrofe, no auge do aceleracionismo tecnológico, da morte das cidades e no limiar de sobrevivência da humanidade? Que políticas culturais queremos, afinal? Que propostas existem para que os museus, as galerias ou os teatros municipais contribuam efectiva e quotidianamente para a transformação e para a melhoria das condições de cultura, para a reflexão e criação de projectos colectivos, para a diversidade e diálogo intercultural, etc. Ou seja, como fazer com que os serviços públicos de cultura descentralizados superem o mero papel ornamental a que foram sujeitos durante anos pela instrumentalização político-partidária? Qual a responsabilidade das instituições culturais e qual o seu contributo para a criação de projectos alternativos de vida, para o desenvolvimento da sustentabilidade e resiliência das comunidades ou para a construção de novos horizontes de expectativa, de mentalidades e comportamentos ecológicos? É que, como bem sabemos, sem uma dimensão cultural revitalizada e plural no quotidiano do espaço público urbano, não há cidade! Há instrumentalização da cultura, há muita gentrificação, competição, turistas e marketing urbano, há ruas, automóveis prédios e transeuntes, há as indústrias do escapismo virtual e do esquecimento tóxico, há simulacros de quase tudo, mas pouco mais. Depois há o aumento das doenças mentais, do alcoolismo e do abuso de drogas, da depressão urbana e de um mal-estar social com sintomas evidentes de desorientação e miséria simbólica. Mas, se não existe cidade sem cultura, o que se passa então com o Direito à Cidade?
2 É na vida cultural das cidades - demasiadas vezes enclausurada pela monocultura do entretenimento, pela dominação do “caciquismo cultural” e pelo silenciamento acrítico dos agentes -, que se mede a importância das artes, o desenvolvimento e a formação de públicos e de espectadores emancipados, mas também a liberdade e autonomia cívica e cultural de todos. Afinal, tal como defende a nossa Constituição, e como diria Joseph Beuys, todos os seres humanos são criadores em potência. No balanço do investimento público é preciso ter em consideração que o nível global de financiamento dos municípios é superior ao do orçamento de Estado para a cultura. Segundo dados do INE, em 2015 as Câmaras Municipais afectaram 392,2 milhões de euros às actividades culturais e criativas. De que forma este investimento público tem contribuído para o desenvolvimento sustentável dos ecossistemas culturais e artísticos nas pequenas e médias cidades? Estas e outras questões bem podiam ser colocadas a si mesmo, por programadores, directores artísticos e outros mediadores culturais contratados pelas autarquias. Quais têm sido as suas propostas em prol da vitalidade, da cidadania e da democracia cultural? Bem sei que há muito boas excepções em alguns (poucos) municípios, repito alguns e poucos, por exemplo o projecto 23 Milhas (Ílhavo). Se quisermos equacionar o imperativo da descentralização/municipalização da cultura, tendo como finalidade comum o alargamento social das práticas culturais dos cidadãos, a cidadania e a democracia cultural, o aumento da vitalidade cultural das cidades, a difusão e o enraizamento das artes nos territórios, é evidente que estamos perante uma tarefa exigente mas absolutamente necessária. Esta hipótese, de repensar e construir políticas culturais transformadoras, vai para além do enfoque em políticas sectoriais, e requer, entre outros processos, um compromisso e um plano de parceria estratégica entre o Governo e os Municípios. Uma sociedade democrática não pede instituições paternalistas com modelos pré-concebidos, inculcados e administrados de cima para baixo, designadamente em épocas de crises múltiplas. As instituições devem antes conjugar as vontades colectivas e representar a sociedade civil (ou parte dela) face aos poderes políticos previamente instituídos no âmbito das constituições políticas republicanas, contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento das sociabilidades, das solidariedades e para a intensificação da democracia Neste sentido, não basta apenas reivindicar que o Estado central desenvolva as políticas necessárias à resolução dos problemas estruturantes e identificados ao longo da última década, de entre eles os identificados nestes 12 eixos de viragem na política cultural. Apesar de fundamentais, estas demandas não são, nunca foram, suficientes para concretizar territorialmente políticas culturais de “nova vaga”. Mas também não é por falta de competências que os municípios ficam impedidos de delinear, em conjunto com os cidadãos, políticas e estratégias culturais locais. Pelo contrário, estas políticas e respectivas medidas de âmbito local só podem ser implementadas por iniciativa dos órgãos políticos municipais, tal como define o direito administrativo e Constitucional no capítulo da autonomia do poder local e do princípio de subsidiaridade, bem como na Carta Europeia de Autonomia Local.
3 Torna-se assim fulcral criar condições que favoreçam o pluralismo da Cultura 3.0 (Pier Luigi Sacco), ou seja, o equivalente a uma expansão massiva do grupo de produtores culturais, transcendendo a já moribunda distinção estanque entre produtores e consumidores culturais, e a transformação dos públicos em praticantes. A racionalidade de uma política cultural transformadora deve, por isso, promover a diversidade de ferramentas simbólicas e conceptuais que os membros de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa do mundo contemporâneo, e para agenciar novas formas de vida colectiva. Considerando que estamos perante um impasse, e verificando-se a necessidade de implementar localmente os instrumentos mais apropriados à participação democrática dos cidadãos na formulação, no exercício e na avaliação das políticas públicas de cultura, propomos a criação de um Plano Nacional de Políticas e Estratégias Culturais Municipais, estabelecido através de parcerias entre o Governo e os Municípios. Vejamos primeiro alguns casos que remetem para políticas e estratégias de origem supramunicipal, mas implementadas localmente. O primeiro caso é o da Estratégia Nacional de Desenvolvimento Sustentável (Portugal), aprovada em 2006, e com ampla repercussão nos municípios através da adopção da Agenda 21 Local (A21L), construindo-se como um um marco importante na governação municipal, ao introduzir processos e metodologias focadas na participação dos actores locais, designadamente através da criação de Fóruns Participativos. Porém, um aspecto negativo é o facto de a A21L não ter incluído a dimensão cultural nas políticas e estratégias de desenvolvimento sustentável. Com o objectivo de colmatar esta lacuna, defendemos um processo idêntico que vise a adopção e implementação da Agenda 21 da Cultura em Portugal, dando assim um passo em frente na inclusão definitiva da cultura como quarto pilar do desenvolvimento sustentável. No actual contexto da governança cultural, o Município de Lisboa configura um pertinente caso de estudo no que se refere à conjugação entre a Agenda 21 da Cultura - Lisboa é Cidade Piloto da Agenda 21 para a Cultura - e um Plano Estratégico para a Cultura, documentado em Estratégias para a Cultura da Cidade de Lisboa (2017). No seu Plano Estratégico (2015-2010) a Artemrede propõe, como objectivo para «inscrever a cultura no centro das políticas governativas», elaborar uma Carta de Compromisso, que traduza princípios orientadores e compromissos concretos de política e gestão cultural, previstos na Agenda 21 da Cultura, subscrita por todos os municípios já associados, e que será condição de filiação para os futuros membros. Em Inglaterra, o Arts Council implementou a iniciativa Local government, partnerships and place que visa promover o florescimento de contextos culturais locais mais resilientes. Em alternativa à iniciativa estatal, a rede francesa Réseau Culture 21, uma associação independente fundada em 2009, trabalha na promoção da diversidade e dos direitos culturais em todas as políticas públicas ao nível local, com base na Agenda 21 da Cultura e na Declaração de Friburgo. No Brasil, de acordo com a publicação elaborada pelo projecto, Cidades e políticas públicas de cultura: diagnóstico, reflexão e proposições (Belo Horizonte: Artmanagers, 2012), os municípios brasileiros encontram-se mal estruturados na área cultural, não se podendo ainda, em muitos casos, falar de uma política pública propriamente dita para o setor, limitando-se a participação do poder público local ao estímulo e à realização de festas e eventos. Pode-se dizer, assim, que praticamente não há estruturação orgânica, física ou de políticas para a Cultura em grande parte das cidades brasileiras. (p. 17) Este diagnóstico poder-se-ia sem grandes diferenças aplicar aos municípios portugueses. É que, uma política cultural terá de apresentar objectivos e estratégias, construídas com a participação plural dos cidadãos, e tornados públicos com toda a transparência. Para poder levá-los a cabo é necessário que existam mecanismos que permitam a planificação, a sua execução prática e avaliação, e não somente “pão e circo”, «medidas avulsas, euforias súbitas, investimentos efémeros, sem sistematicidade, isto é, sem esquemas prévios, sem um corpus de objectivos explícitos, um certo grau de institucionalização, coerência e duração (...)» (J. Teixeira Lopes, 2003). Em 2010 foi aprovado, pelo Ministério da Cultura do Brasil, o Plano Nacional de Cultura (PNC), com a finalidade de orientar o poder público na formulação de políticas públicas, e com vista a promover a articulação e o debate dos diferentes níveis de governo e a sociedade civil organizada, para concretizar o exercício universal dos direitos culturais, através de um conjunto de princípios, objectivos, directrizes, estratégias, acções e metas. O PNC está ainda articulado com outros mecanismos complementares, o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e o Sistema de Informação e Indicadores Culturais (SNIIC). Neste âmbito das parcerias entre Estado central e administração local, a nossa proposta passa pela estruturação de um plano para a requalificação das políticas culturais locais, o qual seria implementado entre o governo e os municípios aderentes, através de protocolos associados ao respectivo suporte financeiro. Os municípios teriam de se comprometer a desenvolver políticas e estratégias participadas e publicamente discutidas, conjugando princípios e valores de democracia cultural e de direitos culturais (amplamente divulgados pela A21C). Estes protocolos, firmados entre Governo e Municípios aderentes, seriam acompanhados de objectivos, metas, monitorização e avaliação dos planos. Entre outras, os protocolos prosseguiriam as seguintes finalidades: • Criação e regulamentação de uma Rede de Teatros Municipais; Voltando à reivindicação consensual e universal do aumento do orçamento de Estado para o 1%, fica a dúvida se o mesmo seria suficiente para integrar um “Plano Nacional de Políticas e Estratégias Culturais Municipais”. Não será preferível equacionar já um aumento para 2% ...3%....?
Rui Matoso
::: Nota sobre o título: Título de um projecto de intervenção sociocultural realizado com jovens ditos “problemáticos”, no âmbito das comemorações do centenário da República - Ciclo Portugal e a Memória - em Torres Vedras (http://eagoraquefazemoscomisto.blogspot.pt/). |