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PARTE I - A RAINHA NZINGA E O TRAJE NA PERSPECTIVA DE GRACINDA CANDEIAS: 21 OBRAS DOADAS AO CONSULADO-GERAL DA REPÚBLICA DE ANGOLA NO PORTO. POLÉMICAS DO SÉCULO XVII À ATUALIDADEHELENA OSÓRIO2018-02-28Há dois anos, Gracinda Candeias (n. 1947), pintora natural de Luanda, Angola, doa 21 obras da série Rainha Nzinga (1582-1663), ao Consulado-Geral da República de Angola no Porto, na pessoa do Cônsul-Geral, Domingos Custódio Vieira Lopes. Recentemente, com a inauguração do novo edifício consular, 16 das 21 peças doadas são expostas na zona da direção, criando um percurso pela pintura sobre papéis e sedas de várias proveniências. Esta arte matérica, distingue formas antropomórficas recuperadas de grutas rupestres de Angola também encontradas nos têxteis do tempo de Nzinga (ou Njinga). Como ressalva a pintora formada na FBAUP, os elementos da natureza natural e humana que reproduz, carregam símbolos introduzidos nos têxteis fabricados no século XVII, aquando do reinado da famosa rainha angolana Nzinga. Reconhecida como heroína em Angola entre 1960 e 1970, a sua vida dá origem a um romance (1975) e a um filme (2013). A motivação de Gracinda Candeias desperta nos anos 50 do século XX, em Luanda, por entre conversas de amigos antropólogos do pai, José Marques Candeias, também pintor. Na sua investigação, nos anos 80, por bibliotecas e museus de vários países, apura que Nzinga chega a mandar fiar estes símbolos a fio de ouro, elevando os panos africanos a tapeçaria que passam a servir de moeda de troca por toda a África. A série distingue-se, numa primeira fase, pelo suporte em caixa de madeira aberta sem vidro. Seguidamente, Gracinda Candeias trabalha madeiras nobres angolanas, brasileiras e portuguesas (como a folha de mogno) com pigmentos e folha de ouro. Apenas cinco das peças depositadas no Consulado-Geral, se encontram em reserva e possivelmente em alternância.
O contributo de ilustrações inéditas do século XVII O padre capuchinho Giovanni Antonio Cavazzi de Montecuccolo (1621-1678) acompanha a rainha Nzinga no fim da vida e sobre ela escreve, recorrendo sobretudo ao antecessor Antonio da Gaeta e a outros capuchinhos, como a documentação mais antiga a que acede. Nas suas 30 ilustrações com aguarelas a cores, supostamente elaboradas durante a missão, predominam os tecidos lisos, sobretudo tingidos de vermelho e de azul, mas também de amarelo. O verde surge pontualmente. São mais raros os tecidos com riscas dispostas na horizontal ou cruzadas. Certos guerreiros apresentam-se com peles de animal, em especial de leopardo. Alguns tecidos, possivelmente de ráfia, contam com arabescos em muito semelhantes aos da pintura de Gracinda Candeias. Ainda por observação das ilustrações de Cavazzi, constatamos que os tecidos mais decorados são ostentados pela realeza e nobreza guerreira. Os músicos e os serviçais apresentam-se com tecidos lisos. Mas, há muitos historiadores que põem em causa a autoria das ilustrações, defendendo que Cavazzi recorre a pintores que nunca chegam a pisar África (ou que a visitam só depois da morte da rainha e do próprio autor do texto). Como aborda Ingrid Silva de Oliveira no artigo, Cavazzi e Cadornega: Entre semelhanças e diferenças na escrita da história da África Centro-Ocidental (século XVII), apresentado no XIV Encontro Regional do ANPUH-RIO Memória e Património (2010): "Uma semelhança entre os textos de Cavazzi e Cadornega são as imagens que compõem as obras. Para aquelas da História Geral, Beatrix Heintze elaborou reflexões interessantes. Segundo ela, o militar foi incentivado a fazer aguarelas por um jovem pintor que foi para Angola já em 1680. Dessa maneira suas imagens foram criadas tardiamente e feitas de memória e, por isso, Heintze defende que seu valor como fonte etnográfica é menor do que as imagens contidas da Descrição histórica. Os temas contemplados pelo militar, além de árvores e animais, se referem a figuras africanas importantes, como os reis do Congo e de Angola, os Jagas e a rainha Jinga. Beatrix Heintze atenta ainda para a semelhança de algumas imagens contidas em ambos os textos, questionando ser apenas um acaso. (...) Já que Cavazzi pode não ter sido o criador das ilustrações de seu texto, é possível também que Cadornega não seja o criador dos seus desenhos. Como os textos foram escritos praticamente no mesmo período, existe ainda a possibilidade do autor das imagens de ambas as obras ser a mesma pessoa". Esta conclusão encaixa na obra do militar António de Oliveira de Cadornega (1623-1690), História geral das guerras angolanas, em três volumes, concluída em 1681. O próprio é um cristão-novo fugido à Inquisição Portuguesa, desembarcando em Luanda em 1639, onde acaba os dias como vereador da Câmara (1669-1685) e sendo, antes, entre 1648 e 1669, "(...) juiz ordinário de Massangano que se correspondeu com a rainha Njinga (...)" - como atesta Alberto Oliveira Pinto em 2014, no artigo produzido no âmbito dos estudos Imagética do CH‐FLUL, Representações culturais da Rainha Njinga Mbandi (c. 1582-1663) no discurso colonial e no discurso nacionalista angolano. Alguns autores defendem que Cavazzi desembarca em Luanda em 1654, começa a escrever sobre Nzinga em 1660 quando visita a sua corte e regressa a Itália em 1667 (ou 1668), já com o manuscrito completo. A versão original da investigação de Cavazzi é apenas encontrada em 1969, por Giuseppe Pistoni, nos arquivos da família Araldi em Modena. O manuscrito original de três avantajados volumes, intitulado Missione evangelica al regno del Kongo, revela-se ainda mais rico que o livro póstumo, Istorica Descrizione de´tre regni Congo, Matamba ed Angola, publicado em finais do século XVII (1687), comportando uma série de aguarelas que se consideram uma fonte etnográfica de grande valor atribuída a Cavazzi - o qual não estranhamos ser conhecedor das artes e porventura hábil no desenho e na pintura, por se tratar de um religioso oriundo de uma família fidalga muito antiga da Lombardia. Alberto Oliveira Pinto contesta, no mesmo artigo: "Em 1662, por doença de António de Gaeta, Cavazzi substitui-o na corte da Matamba junto da Rainha Njinga, rezando a primeira missa da Igreja do Uamba e dando a extrema-unção à soberana em 1663. Um ano mais tarde, envenenado com o vinho da missa por Jinga Amona / António Carrasco, cunhado e sucessor de Njinga Mbandi, o capuchinho segue doente para Luanda, ausentando-se de Angola em 1668 e só regressando em 1673. Por essa época, baptiza e encarrega-se da educação de D. João Guterres, filho de Ngola Kanini / Francisco Guterres, que entretanto derrotara e assassinara António Carrasco, sucedendo-lhe no trono da Matamba. Em 1677, Cavazzi é nomeado procurador em Roma e em 1687, nove anos depois da sua morte, é editada em Bolonha a sua Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. Nesta obra, ilustrada por pintores italianos que nunca estiveram no continente africano, a rainha Njinga Mbandi evidencia-se em várias gravuras (...)".
Simbologia e costumes na hierarquia social Voltando aos tecidos representados na série Rainha Nzinga, doada pela pintora luso-angolana, ao Consulado-Geral da República de Angola no Porto, que as ilustrações de Cavazzi confirmam ser um símbolo de poder, distinguindo as classes, constatamos que não faltam fontes fidedignas a Gracinda Candeias. Telma Gonçalves Santos refere um sem fim de autores que estudam os panos africanos de Quinhentos e Seiscentos, na sua dissertação de mestrado em História da África, Comércio de tecidos europeus e asiáticos na África Centro-Ocidental: Fraudes e contrabando no terceiro quartel do século XVIII (2014), apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: "Adriano Parreira, em Economia e sociedade em Angola na época da Rainha Jinga (1997), a despeito de se centrar no século XVII, (…) promoveu a descrição da tipologia de tecidos produzidos na África centro-ocidental e suas zonas de especialização. (…) atento aos aspectos culturais destas sociedades africanas, buscou situar os tecidos no âmbito das relações de poder, enquanto parte integrante dos símbolos a compor as diferenças sociais do território em questão. A utilização do ´pano-moeda´ na estrutura econômica da África centro-ocidental seiscentista permitiu o entendimento dos mecanismos de ajuste dos tecidos trazidos através do Atlântico pelas culturas materiais mbundu no século XVIII. Beatrix Heintze dedica parte do livro Angola no século XVI e XVII (2007) para situar os diferentes tecidos africanos dentro da cultura material mbundu no século XVI e XVII. (…) Conclusões semelhantes foram desenvolvidas por Isabel Castro Henriques (1997) quando da análise dos relatos do século XVI, XVII e XVIII. John Thornton em Africa and Africans in the making of the Atlantic world, 1400-1800 (1998), afirma não terem sido as mercadorias importadas para a África essenciais à economia africana. (…) Estes são percebidos pelo autor enquanto artigos de luxo voltados às elites africanas (…) Mariana Candido, no estudo An african slaving port and the Atlantic world: Benguela and its hinterland (2013), informa das mudanças desencadeadas no estilo de vida dos africanos a partir da presença dos artigos vindos da costa. Os tecidos teriam influenciado a forma de vestir de homens e mulheres no interior de Benguela, reafirmando a sua função simbólica na composição da hierarquia social. (…) As discussões desenvolvidas por Phillis M. Martin em Power, cloth and currency on the Loango coast (1986) e The external trade of the Loango coast: 1576-1870 (1972), chamam à atenção para o comércio dos estrangeiros ao norte de Luanda, introduzindo fazendas europeias já em fins do século XVII (…)". A grande dificuldade na investigação de Gracinda Candeias passa, precisamente, por provar que os tecidos e as formas que recria na pintura são angolanos e não europeus.
As joias da coroa angolana O livro, Nzinga Rainha de Angola. A relação de Antonio Cavazzi de Montecuccolo (1687), apresenta ainda duas ilustrações distintas dos primeiros reis do Congo e do Ndongo, na sua atividade de ferreiros. (A tradição do rei ferreiro continua a ser preservada em várias regiões da África Centro Ocidental.) Tanto num caso como no outro, a coroa encontra-se poisada naquela que pode ser uma arqueta-relicário portuguesa, em bronze dourado e prata, séculos XVI-XVII. Vigiam-nas os homens de cada rei que ostenta uma espécie de toucado dourado, contrastando com os primeiros que assistem à cena e se encontram retratados de cabeça descoberta (ou apenas com fita à volta da cabeça e / ou com par de penas "espetadas" na nuca). As coroas divergem, sendo a do rei do Congo mais parecida com a dos duques medievais de Portugal (ou Itália), também constante no século XVII português - uma coroa aberta constituída por aro moldurado e corpo vazado -, e a do rei do Ndongo, praticamente igual à da rainha Njinga, uma coroa portuguesa fechada com aro moldurado e corpo vazado do século XVII, semelhante à dos reis holandeses da mesma época. Como Nzinga tece uma aliança estratégica com os holandeses, a origem da sua coroa pode ser uma ou outra. Por outro lado, o missionário capuchinho não é contemporâneo dos primeiros reis de Angola e do Congo que vivem nos séculos XV-XVI, aquando da descoberta dos seus reinos por parte dos portugueses. As próprias legendas das imagens referem Mvemba a Nzinga ou Nzinga Mbemba (c. 1456-1542 ou 1543), também conhecido como Rei Afonso I (do Congo) e Angola Mussuri ou Ngola-Mussuri, o primeiro soberano dos Mbundu (ou Ambundu). Curiosamente, o "reino do Ndongo", então entre os rios Kuanza e Bengo, é o mesmo que o "reino do Ngola", daí o aportuguesamento para "reino de Angola". Esta observação, leva-nos a concluir que as ilustrações carregam algo da imaginação do seu autor (ou falta desta), baseando-se Cavazzi tão-somente nas tipologias que encontra no terreno ou conhece de espólios europeus como clérigo e membro da nobreza fidalga (o mesmo se aplica aos pintores italianos a quem porventura encomenda a obra). No artigo, O reino do Ndongo no contexto da Restauração: Mbundus, Portugueses e Holandeses na África Centro Ocidental, publicado na Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana (2011), Flávia Maria de Carvalho defende que o período de 1640 (Restauração portuguesa) a 1671 (fim da autonomia política da região) é marcado por uma série de conflitos como as invasões holandesas nos territórios que, posteriormente, passam a ser chamados de Angola, e embates travados entre religiosos jesuítas da Companhia de Jesus e capuchinhos italianos que contestam o monopólio do missionarismo português na África Centro Ocidental. O Vaticano e a Coroa portuguesa entram em divergência. Mas, acaso, todos trazem presentes dos seus reinos e instituições que oferecem aos monarcas africanos abertos à novidade. A rainha Nzinga é sempre retratada com aquela que consideramos uma coroa portuguesa fechada, século XVII. Já a irmã Kambo ou Mocambo, que a sucede, é transportada sem coroa no próprio enterro. Quiçá por sensura à sua brandura, em contraste com a altivez de Nzinga, e por despeito ao príncipe consorte que se apodera do trono - o que nos parecem pormenores que só Cavazzi pode deter e / ou passar o testemunho. Em ocasiões especiais, Nzinga cobre-se de pedras preciosas e plumas de diferentes cores. Consta que guarda a baixela de prata no armário e come com os dedos, sempre honrando os costumes do seu povo. (Note-se que a sua corte é tão numerosa quanto outra corte na Europa.) Ora, ainda hoje, em todo o mundo, há determinados pratos que se comem com os dedos, usando lavabos (ou nem por isso). Os hábitos de mesa evoluem, com a profusão de novas peças e o apuramento de elementos já existentes, como sejam os talheres no século XVIII: "(...) a colher, a faca e o garfo associam-se num talher individual que passa a ser colocado junto ao prato de cada conviva e os cabos das três peças uniformizam-se através de uma decoração geral idêntica", como explica Gonçalo Vasconcelos e Sousa no livro Artes da mesa em Portugal (2005). Até aos séculos XVII-XVIII, os europeus servem-se apenas de um cutelo e garfo para comer - primeiro com dois e três dentes, tendo a mera a função de espetar. (Passam a quatro dentes para o talher não ser associado ao "garfo do diabo"). Os mais nobres, fidalgos, transportam para as cerimónias uma bolsa individual, presa ao cinto, com faca, garfo e colher em prata. Quanto à baixela de prata de Nzinga, é uma novidade no século XVII, se bem que existam já antes referências às coleções de Catarina de Áustria (1507-1578), rainha consorte de João III de Portugal (1502-1557): "(...) pensamos que a mesa da rainha D. Catarina, pela sofisticação ao nível dos objectos, provenientes das suas magníficas colecções, se enquadra nesta concepção do banquete maneirista. (…) A maioria dos historiadores sublinha o facto de reis medievais e modernos comerem sozinhos à vista de sua corte - a refeição espectáculo -, partilhando-a apenas com os seus iguais em ocasiões de festa", informa Isabel dos Guimarães Sá no artigo, O rei à mesa entre o fim da Idade Média e o Maneirismo (2011), publicado no livro A mesa dos reis portugueses (2011). Não podemos esquecer que, sensivelmente na mesma época, Caterina di Medici (1519-1589) - rainha consorte de França, entre 1547 e 1559, que morre cerca de seis anos após o nascimento de Nzinga -, introduz as artes da mesa na corte francesa e até os grandes cozinheiros, queixando-se de os franceses se encontrarem parados num tempo medievo, alimentando-se quase exclusivamente de caça e conservando "hábitos selvagens", como aquele de comerem com os dedos (apenas com a ajuda de um cutelo), desconhecendo os talheres, a porcelana e o vidro. O historiador Mark Strage, um dos seus biógrafos, descreve-a como "a mulher mais poderosa da Europa no século XVI". Nascida em berço de ouro, e de cultura, é conhecedora de todos os requintes e iguarias do mundo, por pertencer à Casa dos Medici, a famosa família da Toscana, originalmente de mercadores e banqueiros, que acaba por financiar as monarquias da Europa. Mais acrescentamos que, a Baixela Germain, com mais de 1.000 peças, é a primeira da coroa portuguesa encomendada pelo rei José I (1714-1777), no século XVIII, logo após o terramoto (1756). É obra da oficina de François-Thomas Germain (1726-1794), em Paris, o mais célebre ourives de prata da época. Como reforça Maria do Rosário Jardim no artigo, A Baixela Germain ao serviço da Corte no reinado de D. Maria I (2012), publicado na revista Artigos em Linha do Palácio Nacional da Ajuda: "(...) faltando-lhe um dos mais expressivos elementos de uma grande baixela para servir ´à francesa´ - o Surtout da Quarta Coberta - era, não obstante, um monumento de glorificação da Coroa: a sua Primeira baixela. (…) A responsabilidade pela sua utilização cabia à Repartição de João Rodrigues Vilar, no Paço de Belém. Também aí era guardada a ´Segunda Baixella´ - a prata de mesa confiscada à Casa de Aveiro em 1759". Nzinga está, então, na linha da frente.
Helena Osório
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Este artigo divide-se em duas partes, tendo a segunda, intitulada "PARTE II: A FAMOSA RAINHA NZINGA (OU NJINGA) - TÃO AMADA, QUANTO TEMIDA E ODIADA, EM ÁFRICA E NO MUNDO", sido publicada em Fevereiro de 2018.
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