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CECILIA VICUÑA. SEIS NOTAS PARA UM BLOGJOSÉ DE NORDENFLYCHT CONCHA2022-06-30
26.05.22: QUIPU DO EXTERMÍNIO Depois da festa inaugural no Museu Guggenheim de Nova Iorque, vem a tarefa de nos pensarmos, para a qual Cecilia Vicuña nos convida. Cada um lê o que vê e vê o que lê. O meu primeiro apontamento sobre a sua exposição Spin Spin Triangulene é em relação ao modo radical como as alvas e limpas paredes do edifício espiralado de Wright são intervencionadas por uma grafia leve, que quase não se deixa fotografar. Tão leve quanto o som da sua voz. Mas que da mesma forma a que nos tem acostumados, o seu poderoso conteúdo não nos deixa desengajar facilmente. O que esse arranhar na parede nos desafia entre as suas “apalavradas” formas é que para evitar o nosso extermínio coletivo devemos pôr o corpo a funcionar em consciência com uma rede cuja “máxima fragilidade” se oponha ao “máximo poder” para não se deixar tocar por ele. Assim tal qual. Este novo quipu num dos seus nós cita Lezama Lima, retesando a corda do que se espera da “Arte Latino-Americana” em Nova Iorque. E o gesto desmonumentalizador de riscar uma das mais intocáveis paredes museais da história recente, coloca o uso das “palavras em uso” fora do clichê. Porque descolonizar e a despatriarcalizar assumem um sentido autêntico para além dos slogans: são um modo de fazer. E se não fica claro, na saída da exposição pode-se completar a experiência lendo o livro de Camila Marambio e Cecilia Vicuña, A Toda Raja! (2019).
A ideia de que um museu é um edifício reconhecível pelos seus atributos formais e espaciais faz muito sentido a quem os projecta, aos turistas que passam à volta e até a quem se atreve a entrar neles. E se há um que instala essa “sobre determinação” arquitectónica dos museus, é o projetado por Wright. Talvez por isso todos os projetos convidados a expor dentro das suas paredes acabam tapados por ele. Por mais críticas e iconoclastas que sejam as suas propostas, elas são ao final domesticadas por ele. No dia da inauguração comentámos isto com Camila Marambio, recordando nos anos anteriores o jorro do "garanhão" Matthey Barney ou a acumulação de “mal de Diógenes" de Maurizio Cattelan, entre muitos outros que certamente o tentaram. Mas ninguém - que eu me lembre - o fez de maneira tão frontal e honesta como a pintura Tres Espirales, a mais recente obra de toda a exposição de Cecilia Vicuña. E o que vemos aqui? Primeiro, um buraco extrativista que extrai o cobre do Chile a partir de investimentos estrangeiros, como os de alguns dos Guggenheim há mais de um século. Segundo, a espiral de cimento com o nome de Don Solomon na sua fachada e que sangra por baixo do chão. E terceiro, tudo isto no meio de uma América ancestral. Imagens associadas a um lúcido texto de "explicações" em que Cecilia Vicuña nos partilha a sua visão sobre Wright. Tudo em total coerência com o seu sistema de trabalho exposto pela primeira vez em 1971 no Museu Nacional de Belas Artes: Pinturas, poemas y explicaciones. Então, em que é que ficamos na nota anterior? Ah sim: lições de como despatriarcalizar e descolonizar um Museu. Tudo no fim de semana em que no Chile comemoramos o Dia do Património.
Cecilia Vicuña, La Vicuña, 1977, óleo sobre tela. Museum of Fine Arts, Boston, Ives Family Fund, 2018. Foto: Museum of Fine Arts, Boston, 2022. © Cecilia Vicuña
28.05.22: KANDINSKY Na monografia sobre o edifício de Wright escrita por Francesco Dal Co vejo uma foto do quarto ocupado no Plaza Hotel por Irene Guggenheim e se prova facilmente o interesse dela e da sua família pela pintura do pintor russo. É sabido que este célebre artista é uma pedra angular na fundação da coleção do Museu. E, de facto, nesta ocasião, divide espaço com Cecilia Vicuña. Ele é o anfitrião e ela é a convidada. Uma muito menos incómoda do que parece, se é que lemos com atenção o que nos conta nas paredes do museu, sobre como conheceu as imagens e leu os textos de Kandinsky desde muito jovem. É sabido que nós, os provincianos, lemos tudo. Assim, nós colonizados imitamo-nos e nós mestiços revoltamo-nos. Mas outros com mais talento sabem dialogar a partir da igualdade em que não há uma arte subalterna e outra hegemónica, pois toda a arte autêntica é uma tentativa de continuar a fracassar, até à próxima tentativa. Assim postas as coisas, parece-nos que um atributo da obra de Cecilia Vicuña é que nela nunca houve uma tal “analogia dependente”, ou pelo menos lhe resistiu muito cedo. O que está aqui é mais uma forma insurgente de desordenar as temporalidades do cânone - talvez mais próximo ao que propõe Andrea Giunta no seu último livro Contra el Canon (2020) -, mas com plena consciência de que os tempos da história da arte relatada a partir da academia são minúsculos. Aprendi com a sua obra que o património ancestral e a arte contemporânea são um contínuo, onde o anacronismo não é uma ameaça, pois os tempos das obras ativam-se na imanência da sua experiência. E a obra de Kandinsky é lida por ela como o monumento performativo que é. Dando espaço a um lugar situado, reconhecendo-se ao mesmo tempo com ela, que de hóspede se converte em co-habitante desse quiasma que, às vezes, funciona como arte.
29.05.22: MoMA As coincidências não existem, pelo menos não na história da arte. Alguém acredita ainda que a pintura abstrata foi produto de um “quadro ao contrário” que Kandinsky viu um dia ao entrar no seu atelier? Hoje sabemos que a artista sueca Hilma af Klint “via-tudo-ao-contrário”. E, claro, antes que um homem lho apontasse. Pensando nessa revisão do seu cânone é que depois de presenciar a exposição de Cecilia Vicuña no Guggenheim, deve-se entrar no MoMA com muita atenção, onde Alfred Barr inventou o diagrama do cânone, e onde hoje, na sala 205, se propõe um diálogo “frente a frente” entre obras de Cecilia Vicuña e Juan Downey. Isto lembrou-nos imediatamente da tão incompreendida exposição Transferencia y Densidad de 2000 no MNBA, na qual a obra A Map of Chile, de Downey, e a Pieza del Hilo Azul, de Cecilia Vicuña, foram propostas por Justo Pastor Mellado como parte de umas Historias de Anticipación. É claro que no Chile de 2000 estávamos longe de conhecer as “decolonialidades”, mas lembremos que, além disso, nessa contiguidade da obra de Cecilia estavam os objetos de Juan Luis Martínez. O mesmo autor cujas obras foram levadas à Bienal de São Paulo em 2012 pelo poeta, e então curador do MoMA, Luis Pérez-Oramas. A dez anos de distância, outra curadora do MoMA, Inés Katzenstein, numa nova contiguidade espacial e conceptual, nos propõe "uma virada para dentro", em que nos reaparecem essas "antecipações" que tanto nos custaram reconhecer e tornar visíveis no Chile, especialmente da parte daqueles que acreditam que a história da arte é uma corrida de reconhecimento pelos outros, e não por eles mesmos, ou mesmo por um nós. O resto vem por acréscimo.
Cecilia Vicuña, Angel de la menstruación, 1973, óleo sobre tela. Colecção de Catherine Petitgas, Londres. Foto cortesia da artista e Lehmann Maupin. © Cecilia Vicuña
30.05.22: KON KON Como a água flui de cima para baixo, a água-água que é o significado de con-con, deveria estar no último nível da espiral do museu, tal como estamos acostumados à linguagem ascendente do progresso. Mas se não há progresso na arte, a linguagem deveria ser descendente, e por isso fragmentos do filme Kon Kon permeiam e se dilúem de cima para baixo. Até molham Kandinsky. Nesta exposição de Cecilia Vicuña, “virar e girar o trianguleno é a palavra de ordem”. E o que é um trianguleno? Basicamente, a unidade mínima de três elementos na qual nos partilhamos entre tudo o que existe no nosso planeta. Com essa figura, o título da mostra ativa-se a partir das relações. Hoje sabemos que a água é uma dessas relações das quais interdependemos de forma muito concreta. Portanto, este título está longe de ser uma metáfora “optimista” ou uma oportunista retórica "poética”. Esta exposição nem sequer é isso: “mais uma exposição”. É um pouco maior que isso. Experimentemos remover o EX e ficamos só com a POSIÇÃO. O resultado é uma posição que se instala de maneira tão física como química, tão material como espiritual, tanto dentro como fora, em que se dão a ver a ouvir formas de reviravolta em que mal se toca a linguagem. E tudo começou em Kon Kon há milhares de anos atrás. Ver aparecerem as dunas e Valparaíso no fundo da curva do horizonte do Pacífico, como nas aguarelas da outra Cecilia - Cecilia Concha - que Cecilia Vicuña resgata, é pura nostalgia do futuro.
31.05.22: NOVAIORQUINA A velha disputa entre “ius sanguinis” e o “ius solis”, para rotular os artistas latino-americanos, seja por ascendência materna ou lugar de nascimento, apresenta hoje uma dissolução similar às das -igualmente antigas - distinções de género, raça ou religião. Hoje os milhões de indivíduos que convivem juntos numa “oportunidade de localização”, como são as grandes cidades globais, identificam-se apenas pela sua resiliência aos contextos, resultando a vida em comum que podem articular desde a adversidade como uma esperança de algo que nunca chega. Pensando nisso, o trabalho de Cecilia exposto agora no Guggenheim e no MoMA tem mais dois correlatos, ambos associados à sua condição de "artista nova-iorquina mais chilena que os feijões”. Por um lado, a sua relação muito recente com o galerismo global. Um que é refratário daquilo que não pode fazer circular sem retorno garantido. Mas que com ela vai cedendo, confiando e aprendendo com as novidades ancestrais. A tal ponto que hoje os “quadros” não são a única - nem a melhor - opção para o colecionismo emergente na Ásia e o seu interesse pelas expressões artísticas "precárias" de Cecilia Vicuña, como podemos ver na galeria Lehmann Maupin. Porque trabalhar numa cidade global significa exatamente gerar mais-valia em todos os lados, já que esta não é precisamente uma cidade-dormitório. E como se trabalha, também se vive. E como a "vida" urbana faz parte dela, a proposta curatorial de Jody Graf inaugurada nos últimos dias no MoMA PS1, com o título Life Between Buildings, coloca a obra de Cecilia Vicuña ao lado da de Gordon Matta-Clark e outros 12 artistas e colectivos, para valorizar o trabalho dos artistas no contexto do uso e ativação dos "espaços intermédios” que, como resíduos da modernização material do capital "ferro e cimento” com o qual se ergueu a vista nesta cidade, nos lembra que vivemos no piso térreo. Consolados. “Com-solo”, se transformamos o dictum do arquiteto Alberto Cruz numa “palavrarma”. Mas essa é outra história de um futuro que começou na documenta14.
José de Nordenflycht Concha
Este artigo foi originalmente publicado na revista Artishock (Chile) com quem a Artecapital desenvolve uma colaboração com o objectivo de aproximar os leitores portugueses de temas da América Latina e viceversa.
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