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ASSEMBLAGE TROCKELFILIPE PINTO2012-11-05Ainda antes de se entrar na Galeria 1 da Culturgest, lĂȘ-se no texto de parede que Flagrant Delight nĂŁo Ă© uma retrospectiva do trabalho de Rosemarie Trockel, que a artista Ă© avessa a esse modelo que olha para trĂĄs e tenta pĂŽr as coisas no lugar, domesticĂĄ-las, arranjar-lhes casa definitiva. O trabalho esquisito de Trockel nĂŁo parece ter um lugar prĂłprio; (esquisito, invulgar, anormal, extravagante, que se desvia do uso comum, mas tambĂ©m que produz uma sensação agradĂĄvel, exquisite â um deleite?); a sua natureza Ă© muitas vezes dĂșbia, incerta, e o seu significado sempre escorregadio; procurĂĄ-lo Ă© inglĂłrio, inĂștil, contraproducente [1]). Cinza Flagrat delight nĂŁo Ă© uma retrospectiva, Ă© uma enorme assemblage numa caixa cinzenta (figuras 1 e 2). A infeliz arquitetura da Culturgest nĂŁo foi tapada por um cubo branco, assĂ©ptico e limpo â arquitetura que se quer invisĂvel e modesta, sem oferecer contexto, criada para afastar a vida da arte â, nem por uma caixa negra â o negro da caixa arqueolĂłgica da aviação, onde tantas vezes reside a esperança de um acesso privilegiado Ă verdade do acontecimento, a um significado. A galeria 1 fica a meio caminho entre os dois â nem cubo branco nem caixa negra, mas uma caixa cinzenta, cinzento a cinquenta por cento, cinzento neutro; um forro, que Ă© a cobertura do interior, a pele de dentro; um forro que tenta neutralizar os elementos assinalĂĄveis; o banho cinzento Ă© uma espĂ©cie de camuflagem como aquela do camaleĂŁo â torna-se invisĂvel quando interpĂ”e, entre si e os olhos do predador, uma imagem que nĂŁo interrompe o fundo [2]. (Aqueles corredores e salas em cinza fizeram-me lembrar o resultado da sĂșbita hemorragia do elevador na estalagem de The Shining.) Ă deste chĂŁo e paredes de cinza que deverĂĄ sobressair o flagrante deleite; (flagrante, incendiado, ao rubro, evidente e incontestado â o flagrante delito, a verdade apanhada em ato pelo polĂcia). LĂŁ Nas Ășltimas salas encontramos as famosas knit paintings (pinturas em lĂŁ); Ă entrada lembrei-me do fio de Ariadne (figuras 3 e 4) â destorcer uma corda, empreender uma demanda arqueolĂłgica, endoscĂłpica, com o objectivo de chegar ao fio primeiro, o fio que nos guiaria no labirinto subterrĂąneo; achar o fio Ă meada. Mas o fio de Ariadne Ă© na verdade uma trela, e o espectador quer-se desembaraçado e desatado. Dress, 1988 (figura 5); esta peça nĂŁo se encontra em Flagrant Delight mas Ă© um dos exemplos do trabalho de Trockel em lĂŁ com sĂmbolos e logĂłtipos â o coelho da Playboy, a foice e o martelo, a cruz suĂĄstica; neste vestido aparecem bordados dois sĂmbolos de qualidade da lĂŁ (woolmark) na zona do peito â lĂŁ pura, lĂŁ virgem, agradĂĄvel ao toque, desejĂĄvel, etc.; ou o vestido como uma espĂ©cie de embalagem da mulher, ao contrĂĄrio da roupa masculina, mais funcional e pragmĂĄtica; leitura erĂłtica ou feminista. Keller, 1988; a fibra branca, sobre fundo de lĂŁ preta, em linha ou jĂĄ desfiada, cria a imagem de uma radiografia â um acesso furtuito, a preto e branco, ao interior de alguma coisa, de um corpo, um interior exĂłtico, desconhecido. Elegant Potency, 2012; comentĂĄrio irĂłnico sobre as pinturas minimalistas â âIrony appears when I have to get malicious. Itâs a vice that keeps me from ending up a cynic.â [3] Minimalismo O mesmo comentĂĄrio parece ler-se nos dois paralelepĂpedos em espuma (Schaumstoff-Ofen, 1989 e Untitled, 1989), pintados com tinta plĂĄstica branca, a flutuar numa parede de uma outra sala (figuras 6 e 7) â o que Ă© mais pesado, um quilo de espuma ou de aço ou de pedra? â, e nas peças com discos de fogĂŁo elĂ©ctrico (Untitled, 2000, figura 8), as duas sem tĂtulo, de 2000; (um cubo Ă© um fogĂŁo.) Os discos estĂŁo visivelmente ligados â os fios sĂŁo ostensivos e funcionam como um aviso â, embora a uma intensidade cautelosamente baixa, para proteger curiosos, distraĂdos e destemidos. (A utilização destas formas geomĂ©tricas â paralelepĂpedos ou cubos â para comentar uma certa leitura do minimalismo, entendido como uma arte exclusivamente masculina, foi tambĂ©m usada por Janine Antoni, em trabalhos com sabĂŁo, banha ou chocolate, com uma componente bem mais performativa. Aquilo que no minimalismo demonstrava peso, indestrutibilidade e ameaça, transforma-se, no caso destas artistas, em peças leves e degradĂĄveis, ou agradĂĄveis e prazerosas.) Untitled, 1988 (figura 9); esta peça tambĂ©m nĂŁo se mostra em Flagrant Delight, mas jĂĄ esteve nas galerias da Culturgest, na exposição Anos 80 [4]. Um busto em cera negra, instalado numa espĂ©cie de plinto, enfrenta diretamente dois ferros de engomar, mas neste caso os fios estĂŁo ostensivamente desligados. Peça sobre o trabalho domĂ©stico da mulher, sobre o lugar por excelĂȘncia do labor feminino, ou, por outro lado, escapando ao significado mais simplista, representação do tempo antes do fim; (posta a funcionar, esta peça seria como aquelas de Jean Tinguely, que trabalhavam a sua prĂłpria destruição â dispositivos autofĂĄgicos); trata-se de uma peça Ă espera de acontecer, com o fim interrompido, em potĂȘncia, se bem que determinada. Assemblage Colagem, assemblage, contraste simultĂąneo, efeito kuleshov, imagem dialĂ©ctica, constelação, dupla projeção, free association, cadavre exquis, contĂĄgio, amĂĄlgama. Numa colagem, Ă© sabido, um mais um nĂŁo resulta em dois, porque um elemento junto a outro transforma-se a si prĂłprio e ao outro e vice-versa; sendo assim, se um Ă© um e tambĂ©m um outro, e o outro Ă© ele prĂłprio e ainda um outro, perfazem quatro, sendo que o conjunto, o resultado, Ă© cinco. Um mais um Ă© igual a cinco â poderia ser assim a fĂłrmula bĂĄsica da colagem. As colagens de Trockel, na sua grande maioria com os elementos agrafados e nĂŁo colados, estĂŁo na verdade mais prĂłximas de esculturas de parede ou de assemblages que de simples colagens. Todos os elementos se mostram dentro de caixas de madeira, geralmente intervencionadas com tinta, e fechadas com uma tampa em plexiglass; as prĂłprias fotografias sĂŁo por vezes riscadas ou pintadas â sendo pertinente a referĂȘncia da prĂłpria artista a Arnulf Rainer em RAF (Recycled Arnulf Rainer), 2004. Tal como em todo o seu trabalho, o resultado Ă© orgĂąnico, sujo, desorganizado, porque ligado Ă s coisas vivas; orgĂąnico como aquelas cerĂąmicas coraladas, alienĂgenas e borbulhantes da prateleira que rodeia a coluna de uma das salas; ou naqueles âespelhosâ de parede (um outro jĂĄ se tinha visto na exposição Para o cego no quarto escuro Ă procura do gato preto que nĂŁo estĂĄ lĂĄ), que parecem ainda em processo de formação, inacabados. Trabalho exĂłtico, estrangeiro â nĂŁo Ă© suposto lhe percebermos nem a lĂngua nem o que diz â âThe minute something works, it ceases to be interesting. As soon as you have spelled something out, you should set it aside.â [5] Alguns elementos reconhecĂveis (para alĂ©m de reproduçÔes de vĂĄrias das suas peças) â Brigitte Bardot, Gilbert & George, Rimbaud, Raymond Pettibon, um Francis Bacon ciclĂłpico (ciclope, colossal e extraordinĂĄrio, forte, capaz de trabalhos precisamente ciclĂłpicos), autorretratos, e A Origem do Mundo de Gustave Courbet. Origem do mundo ou objecto de desejo? Isto Ă©, o princĂpio (o nascimento) ou o fim (la petit mort)? Na verdade nĂŁo se trata da origem do mundo, mas da origem da humanidade, ou de onde todos provimos (e nĂŁo de onde tudo provĂ©m) â âComo Ă© possĂvel que a marca fique de tal modo impressa na mulher que dela saia a figura do outro homem e o sexo que ela nĂŁo tem?â [6]. Do sexo feminino saem, incompreensivelmente, os dois sexos. Cinza O cinzento Ă© a cor da sombra, e o que luz em Flagrant Delight sĂŁo as peças de Trockel (figura 10) â a sombra Ă© resto da conta entre a luz e um corpo; espanto Ă© o nome que se pode dar Ă passagem da sombra Ă luz, como no corredor inicial, ao chegarmos perto de Spiral Betty, a primeira peça, a Ășnica com luz prĂłpria â anatomia feminina, tubas uterinas (trompas de FalĂłpio), dar Ă luz â o nascimento â, a origem do mundo mais uma vez; ou, por outro lado, um Dan Flavin encimado por duas espirais de Robert Smithson, uma para cada lado. Esconder e revelar â sĂŁo vĂĄrias as peças onde se percebem portas, janelas, persianas, tapamentos de vĂĄria ordem. Esconder e revelar parece ser o expediente de Trockel (figuras 11 e 12), como uma fotografia, que revela o que mostra e esconde tudo o resto Ă volta; (uma fotografia mostra apenas o que acontece entre a lente e o fundo; se no tempo uma fotografia Ă© um instantĂąneo, no espaço Ă© um intervalo, uma distĂąncia.) A exposição termina com um padrĂŁo de parede em madeira pintada (Still Life, 2011) â âThe meaning of the concept of âpatternâ is the model to be copied.â [7], (Pattern is a teacher, lĂȘ-se no tĂtulo de uma outra peça, na sala anterior). Como que a proteger Still Life, estĂĄ instalada uma guarda (Domino, 2008), em que a corrente, em vez do metal comum, forte e resistente, Ă© feita de cerĂąmica vidrada como se fosse um prato de cozinha (figuras 13 e 14). Saio pelo corredor final, tĂŁo escuro como o primeiro. Filipe Pinto NOTAS [1] Sobre o significado da obra ou a intenção do artista jĂĄ aqui se escreveu â âPara uma crĂtica da interrupçãoâ e âA autoridade do autorâ, em www.artecapital.net. [2] J. A. Bragança de Miranda, Corpo e Imagem, Lisboa, Nova Vega, 2008, p.7. [3] Jutta Koether, âInterview with Rosemarie Trockelâ. In: Flash Art no.134, may 1987. [4] Anos 80, Culturgest, Galerias 1 e 2, de 12 de maio a 31 de agosto de 1988. [5] âRosemarie Trockel talks to Isabelle Grawâ. In: Artforum, march 2003. [6] Pascal Quignard, âRetratos Vivosâ, in HistĂłrias de amor de outros tempos, Lisboa, Livros Cotovia, 2002, p.16. [7] Jutta Koether, Interview with Rosemarie Trockel. In: Flash Art no.134, may 1987. |