|
ARTE, AMOR E CRISE NA LONDRES VITORIANA. O LIVRO ADOECER, DE HÉLIA CORREIATERESA DUARTE MARTINHO2016-05-12
[for the English version click here]
Estava Elizabeth Siddal a costurar chapéus, numa loja-oficina perto de Leicester Square, na Londres de 1850, quando a mãe de um pintor a veio procurar. Elizabeth deveria ter 20 anos, era de uma família pobre, habitante em Southwark e ficou alerta. Walter Deverell, pintor próximo do grupo dos pré-rafaelitas, tinha-a na mira; ela era a mulher ruiva que um seu conhecido fixara na rua, que daria “uma esplêndida Viola” no quadro em que trabalhava, Twelfth Night, a partir de Shakespeare. Abordada pela mãe de Deverell, a família de Elisabeth autorizou-a a aceitar o trabalho e ela posou, numa mistura de desembraço e contenção. A segunda sessão contou também com Dante Gabriel Rossetti – que colaborou na tela como pintor e ainda serviu de modelo para a figura de bobo –, e John Everett Millais. Este registou o movimento e a entrega da modelo e achou que a havia de pintar, num quadro de atmosfera esverdeada, ela deitada num rio. Para esta célebre pintura, Ophelia (1851-1852), produzida em casa de Millais, Elizabeth deslizou na banheira inventada, envergando um vestido de “luxo decadente” e, novamente, atuou de acordo com a sua vontade de “entrar por aquele mundo e atravessá-lo, sem se queimar nele” (49). Enquanto se concentrava na pose, imersa na água cada vez mais fria, pensou que não voltaria à oficina de chapéus. Acontecia-lhe, naquele momento, “uma lavagem sobre a vida anterior. Ofélia entrava-lhe na pele como se a água tivesse alguma qualidade osmótica e arrastasse consigo, num despejo, o episódio da costureirinha” (68). Por sua vez, Millais ia pintando “aquilo que jamais tencionou pintar: o incitamento às emoções necrófilas” (60). As anteriores citações provêm de Adoecer (2010), de Hélia Correia [1], um livro que resultou de profunda investigação da escritora e onde tudo se move em torno da vida de Elizabeth Siddal (Lizzie, a partir daqui), desde que ela se aproximou dos pré-rafaelitas até à morte, em fevereiro de 1862. É o tempo da sua relação com Gabriel Rossetti, os dois associados numa conjugalidade sem casamento, um par que se apresentava aos outros como ‘aluna’ e ‘mestre’, ele mais velho que ela só um ano. Gabriel crescera em família ligada às artes e onde se falava italiano, estudou nas mais distintas escolas de ofícios artísticos de Londres, escrevia e traduzia Vita Nuova, juntava extroversão e misticismo. Lizzie era pobre, tinha inclinações artísticas, bem como “uma arrogância que dissuadia e que assustava um pouco os circunstantes” (72) e ao mesmo tempo captava alguma adesão. A magreza acentuada e o cabelo comprido ruivo teriam ainda o condão de produzir uma forte impressão em Gabriel Rossetti, como quem ocupa um lugar já aberto pela imaginação do outro. Aquele que era a alma dos pré-rafaelitas, além de acumular extremos – preguiçoso e trabalhador; anti-proprietário e dominador; aproveitador e generoso – sabia-se abalado apenas por uma força: “o destino”. Muito novo, escreve Hélia Correia, Gabriel iniciara um conto que só completou muito mais tarde, onde o narrador contava a paixão por “uma beleza que reincarnava a musa de um pintor italiano. ‘Nós já nos vimos antes, já te amei’, postulava uma bela submissão, uma fatalidade que elevava a mera química do sexo a um desígnio” (46-47). Quem melhor podia acolher o destino e a fatalidade era a sua imaginação, essa faculdade ”quase divina que percebe tudo com antecedência (…), as relações íntimas e secretas das coisas, as correspondências e as analogias”, na definição de Baudelaire, em 1857 [2]. Também André Breton se entregou a este jogo de deslindar correspondências e correlações mágicas, falando com júbilo da força do acaso, que dera à “aventura imaginária”, descrita por ele num poema antigo (Girassol), uma “impressionante consecução” no quotidiano, quando se cruzou com a que parecia “vir como que rodeada de um vapor” e seria sua mulher [3]. Os muitos desenhos que Gabriel fez de Lizzie, e os mais raros trabalhos artísticos da própria Lizzie, testemunham a intimidade e cumplicidade dos dois. A coabitação inicial surge assente também na tentativa de Lizzie seguir um percurso de artista, desenhando, pintando e escrevendo poemas. Uma mulher como ela, de ar polido porém pobre, significava, na Inglaterra vitoriana, um terreno fértil para a caridade. A nação prosseguia poderosa mas vivia atravessada por uma crise social que pedia novos modos de organização social e reformas, capazes de suportar o embate da revolução industrial. John Ruskin, o historiador e colecionador que comandava o gosto inglês e tinha espírito de educador, indicou logo a Lizzie vários guias de aperfeiçoamento bem como distribuiu patrocínio financeiro, porque ajudar a ‘aluna’ Lizzie correspondia a apoiar o ‘mestre’ Gabriel Rossetti. Para ela, a caridade era ofensiva e não atenuava um constante desacerto social: além dos lugares onde estava sozinha com Gabriel, “a paisagem humana não passava de uma voragem ameaçadora” (94). A melancolia ampliava-se, ela adoecia, desaparecia depois para um giro recuperador e de longe apelava a Gabriel para se lhe juntar, ele seguia-a. O casamento, em 1860, e o bebé deles que nasceu morto, no ano seguinte, e até alguma guerra pelo espaço reacendiam a tensão neste par, com o desamparo dela a sobrepor-se à aliança. Os apelos que lançava não eram já imperativos que ele aceitava, tendiam mais a ser percebidos como intimação; e Gabriel não queria ser apropriado nem aspirava a ter uma única propriedade, incluindo companhia feminina. Entre as pobres mais atraentes, Lizzie destoava e baralhava os papéis que as relações de classe tinham estabelecido, incluindo o de as mulheres dos estratos mais baixos servirem à iniciação e socialização sexual dos rapazes e homens de classes altas. A aparência controlada, o mover-se sempre resguardado e o ar frágil – que impressionavam as companhias requintadas de Gabriel e que não calculavam a fibra que havia nela, fibra de cólera –, distanciavam-na das “mulheres alegres, donas de corpos altamente funcionais” (244), procuradas e apetecidas por pintores em ruas de circuitos demarcados, que depois os seguiam para os estúdios, onde o trabalho de modelo e a relação sexual se sucediam num mecanismo que funcionava assim: “As mulheres não sabiam conservar por muito tempo as poses. As palavras inchavam sob a pele como pequenos bichos tropicais e elas começavam a agitar-se. Ficavam comovidas com a sua própria miséria e punham-se a chorar. O futuro assustava-as de tal modo que não se concentravam. Muitas vezes os pintores se excitavam com as lágrimas e acabavam por puxá-las para o chão” (43). Lizzie, entrada no mundo artístico como modelo, fugiu de sobreviver graças a um mecanismo destes; guardá-lo-ia, talvez, para a intimidade com Gabriel. A visita ao universo de Gabriel Rossetti – desenhos, aguarelas, quadros – torna evidente a presença preponderante de Lizzie, merecendo ao artista uma atenção que continuamente encena, recorta e esculpe a figura. Veja-se, por exemplo, a aguarela The Return of Tibullus to Delia [4] inspirada por poemas de Tíbulo, poeta lírico latino, onde implora à amada que o aguarde até ao seu regresso. Na aguarela, Delia (Lizzie) ouve música de olhos fechados, fica absorta e nessa suspensão também ela se escapa. Ampliada e com fervor sublinhado, esta figura como que reaparece no quadro Beata Beatrix, gerado no último Fevereiro de Lizzie, quando o pintor viu a mulher “totalmente fundida com Beatriz, via a beleza exangue que ele sempre adivinhara em Lizzie e lhe escapava, pois não tinha lugar num corpo vivo. (…) nasceu então o quadro da Beata Beatrix, esse retrato da mulher amada, levada em êxtase por um excesso de papoilas” (279). Já foi notada uma especial correspondência de Beata Beatrix com a fotografia Call, I follow; I follow, Let me die (1867) de Julia Margaret Cameron, ficando por saber em que medida aquela fotografia também o influenciou; é grande a probabilidade das fotografias de Cameron serem do seu conhecimento, pois a publicação pela Autotype Company tinha ampla distribuição [5]. O quadro e a fotografia integram a exposição Painting with Light. Art and Photography from the Pre-Raphaelites to the modern age (Tate Britain, 11 maio – 25 setembro 2016; curadoria de Carol Jacobi). Através do foco em alguns episódios do mundo artístico na Inglaterra do século XIX, o livro de Hélia Correia transmite uma didática suave a quem pretenda atravessar esse mundo, mais valendo guardar o sabor da festa, viver lúcido e sem imobilizar-se no desencanto. Pois o mundo das artes não escapa à concorrência e às leis do grupo e as escolhas brotam de simpatia e admiração muitas vezes entrelaçadas com efeitos de ricochete e ajuste de contas. Na época que o livro trata, John Ruskin, por exemplo, “ditava quem devia ou não constar das listas de aquisições”. A uma baronesa, pelo menos uma, dada ao mecenato e à caridade, Ruskin escreveu a decretar a interdição das obras do pintor Ford Madox Brown, que foi amigo dos mais próximos de Gabriel Rossetti e de William Morris, embora não fosse membro da irmandade pré-rafaelita. Tudo porque John Ruskin, que foi já considerado “uma espécie de Jay Jopling do seu tempo” [6], achava que “não tinha que estimar ninguém ao ser, como ele era, um alto educador. Como um pai, castigava com os olhos” (144). Conta-se que Ruskin perguntou a Ford Madox Brown, a propósito do seu quadro An English Autumn Afternoon (1852-1853), por que tinha ele feito uma vista tão “feia” dos telhados da já distinta zona de Hampstead. Madox Brown respondeu que a pintara a partir de uma janela que dava para as traseiras, e seguiu noutra direção [7]. A face festiva e gregária do universo artístico é dada em especial pelo projeto da Red House, em Kent, cujos motores foram William Morris e Philip Webb, artista e arquiteto que desenharam uma casa rubra por fora e por dentro, com recantos de castelo e catedral, povoada por gente ligada numa irmandade de gostos, afectos e utopias. Também aqui, onde o grupo de pré-rafaelitas e mais próximos passou muitas temporadas desde 1959, Lizzie se sentia pouco à vontade, desde logo por ter que coabitar com o jogo da atração entre Gabriel Rossetti e Jane Morris, a mulher que ainda hoje lança os olhos numa direção só sua, extraída da pobreza para ser modelo e companheira de artistas. Dir-se-ia que também Lizzie foi contagiada pelo espírito utópico que dava aroma àquele grupo e à época. Em Clevedon, à beira do mar, um rapaz perguntou-lhe se os rapazes como ele, lá na terra onde ela vivia, tinham de trabalhar; ela respondeu-lhe de imediato que não, não tinham, e “pôs-se a descrever uma utopia, um país de ouro onde os leões, à noite, iam beber aos lagos dos jardins e se deixavam enfeitar pelas crianças com colares de magnólias. Explicou-lhe que as magnólias eram flores enormes, como feitas de veludo”. O rapaz foi também poético ao confessar-lhe, enquanto caminhavam, que quando via uma flor nascida numa rocha, logo a arrancava, “raiz e tudo. Para ali tão sozinha, a flor, não é?” (190). In 1984, numa exposição reunindo 250 obras de pré-rafaelitas, na Tate Gallery, Elizabeth Siddal era a única mulher representada. Sete anos depois, a Ruskin Gallery, em Sheffield, acolheu uma retrospetiva do seu trabalho. Defendeu Jan Marsh, no texto que acompanhava a exposição, que a obra artística de Elizabeth Siddal pode ser pequena quer em tamanho quer em extensão, mas, ainda assim, e por ser “serious-minded” e “modestly successful”, merecia um lugar significativo na história da arte pré-rafaelita [8]. Por falar em reconhecimento, o ano de 1857 trouxe boa e má novidade a Lizzie. Na exposição de Russell Square, em que foi a única mulher pré-rafaelita, o seu trabalho mereceu críticas positivas, chegando a vender um quadro a um americano, o que lhe deu “vislumbres de independência” (226). Já a exposição de pintura inglesa, organizada “além-atlântico” pelo galerista Ernest Gambart, deixou um travo a contragosto. A América, “indisponível para subtilezas, tratou-a mal”. Ao lado das cenas pintadas por Jemina Blackburn, observadora e pintora minuciosa de pássaros, as “obras infantis de Lizzie Siddal não conseguiam atrair ninguém” (148). A seu favor, diz-nos a escritora que ela “tinha o que precede o tempo, uma certa rudeza inaugural, uma eloquência por desenvolver. Tinha o poder dos grandes primitivos, dos que desencadeiam novidades graças à sugestão das suas falhas” (148). Mas havia questões mais práticas, como o espaço de trabalho, por exemplo. Na casa de Chatam Place, os “trabalhos de Lizzie disputavam o espaço com os ‘Guggums’ (as obras de Gabriel), brilhando, na luz fraca, com a tristeza com que brilham os vultos dos fantasmas” (277). Uma forte mistura de láudano e exaustão impediram Elizabeth Siddal de registar, em Julho de 1862, 33 anos. Duas ou mais décadas mais de vida e ela poderia, porventura, ter desenvolvido a eloquência e até, quem sabe, conjugar deriva, trabalho e autonomia. Um tempo mais encorajador da liberdade das mulheres e da descoberta da felicidade individual ia ganhando fundações. Três vozes, entre muitas outras, anunciavam disposição para a mudança. Em língua inglesa e de 1869, uma fala masculina muito clara despia um costume de séculos, deformador das mulheres e da relação delas com os homens: “Todas as mulheres são (…) criadas na crença de que o seu ideal de carácter é (…) não ter vontade própria e capacidade de se governarem autonomamente (…). Todos os preceitos morais lhes dizem que é seu dever (…) viver para os outros, abdicando por completo de si próprias, e não tendo outra vida que não seja para os seus afectos” (John Stuart Mill, A Sujeição das Mulheres [9]. De França, 1871, ouvia-se a voz entusiasta de um rapaz que escrevia como quem fala alto e abre os braços, enquanto à volta os outros baixam os olhos: “Quando for quebrada a infinda servidão da mulher, quando ela viver por ela e para ela (…) ela será poeta, também ela! A mulher penetrará no desconhecido! Os seus mundos de ideias diferirão dos nossos? – Ela achará coisas estranhas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós tomá-las-emos, nós compreendê-las-emos” (Arthur Rimbaud, “Carta a Paul Demeny” [10]). Mais tarde, uma voz feminina dizia ser “funesto” o desejo de fusão dos seres humanos, a vontade de um ser se enxertar no outro, tudo em nome do amor; quando diferente é o caminho: “cada um deve enraizar-se robustamente num solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro” (Lou Andreas-Salomé, Cadernos íntimos dos últimos anos [11]).
Teresa Duarte Martinho
Painting with Light. Art and Photography from the Pre-Raphaelites to the modern age
|