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ANA AMORIM: MAPAS MENTAIS DE UMA VIDA-OBRADONNY CORREIA2019-07-18
“A arte é um jogo entre todos os homens de todas as épocas”.
A Sociedade do Cansaço e do desvelo exagerado (HAN, 2005) e, por que não pornográfico, em sua dinâmica quotidiana em busca do espelho de Narciso tem provocado profunda exaustão do ímpeto criativo na vida, de maneira mais abrangente e, do ponto de vista da criação, na arte contemporânea. Por vezes, a forma relacional que Bourriaud (2009) propõe entre o ato artístico e o receptor resulta num círculo de incompletude da fruição que esvazia o domínio da técnica e a volição da forma. Admitamos que, num mundo de crises da identidade ontológica conflagradas, cujos seres erram a esmo com certezas vazias e perguntas mal formuladas, o aparato “arte” tende à repetição que não faz eco; à incisão que não provoca sangramento; à descarga de ímpeto que se choca com sensibilidades moucas. Em meio a isso, pela primeira vez em exposição na galeria Espavisor, em Valência, Espanha, a obra da brasileira Ana Amorim propõe uma discussão multifacetada do ambiente artístico, das apreensões estéticas e do próprio organismo da Arte. Ana não é uma artista que se preocupa com a palpabilidade do ofício da criação para efeitos imediatos ou fins utilitaristas. O trabalho ora exposto é fruto de um processo que lhe consumiu, às vezes com intermitências, outras vezes com pragmatismo, os últimos trinta anos. Dessa forma, não é exagero especular que a esta altura, vida e obra já lhe formam uma amálgama indissociável e intransferível, tal qual um nome, um número de documento ou linhas de uma biografia. Algo muito próximo de uma estética situacionista, que é o aspecto que mais rápido salta às vistas do atento espectador. Nascida na cidade de São Paulo, em 1956, Ana Amorim se graduou, nos anos 1980, na renomada escola de artes da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), onde lecionaram figuras icônicas da arte brasileira, como Nelson Leirner e Regina Silveira. Em seguida, partiu para os Estados Unidos para iniciar um projeto de mestrado. A poética que propunha consistia na realização de mapas mentais desenhados em livros, sempre ao final de cada dia. Em seguida, a artista transferia os mapas para diferentes suportes, reproduzindo sua impressão dos caminhos e das rotinas vividas, transpostos para o papel como a cristalização do típico viandante de uma grande metrópole. O projeto, intitulado 10 Year Performance Project, iniciado em 1988, teria a duração de uma década e formaria não só o inventário de uma arte urbana e desprendida, mas abduziria para o suporte artístico a vida mesma. Por esse motivo, mencionei o Situacionismo de Guy Debord há pouco, porque é entre a vanguarda das artes conceituais e dos processos imbricados que se situa a chave de interpretação para a imensa produção de Ana. Debord, em seu manifesto de 1960 urge aos artistas que se livrem das cisões que existem entre aquilo que se produz e aquilo que se vive. Em Ana Amorim, talvez pelas influências de figuras como Vito Acconci e Richard Long, não existe margem para a distinção entre a atitude estética e a visão de sobrevoo, de contatos superficiais. O que há é um convite à entrega, à reflexão de um estatuto muito maior, que transcende processos limitantes e puramente objetivos. Preocupada com a forma pessoal de documentação do tempo, perenidade da memória e concreção de uma vida-arte, Ana ainda incorporou mais um elemento à sua poética, a performance. Com Counting Seconds, título da ação, passou a ocupar locais públicos com uma caneta em apostos uma folha em branco para lhe servir de súmula. De tempos em tempos, punha-se a contabilizar o número de minutos transcorridos durante sua permanência nesses locais. Criou um sistema simbólico com a finalidade de catalogar aquilo que para um benjaminiano “homem da multidão” se esvai à revelia: a corporeidade do tempo. Seus mapas e suas coordenadas temporais fundem-se, assim, para criar um organismo maior, uma unidade que suplanta generalizações históricas.
Pintar seria se inscrever na história através de escolhas plásticas. Estamos na presença de uma estética de tribunal, segundo a qual o artista se coloca perante a história da arte na autarquia de suas convicções, uma estética que rebaixa a prática artística ao nível de uma crítica histórica processual: o “julgamento” prático assim emitido, peremptório e irrecorrível, é a negação do diálogo, único a conferir à forma um estatuto produtivo, o de um “encontro fortuito” (BOURRIAUD, 2009, p.31).
Em dado momento, seu engajamento autoral rendeu-lhe certo ruído no ambiente das Artes Visuais, sobretudo quando optou por não atrelar suas obras a nenhuma logomarca corporativa, oferendo um documento às instituições intitulado Contrato de Arte, no qual explicitava tal cláusula. Esse contrato – que configurou mais uma de suas performances – foi utilizado entre 2001 e 2016, e intentava uma mediação alternativa nas relações entre a artista e o Sistema de Arte. Dessa forma, suas exposições não poderiam engajar patrocinadores, direta ou indiretamente. As portas institucionais que se fecharam, no entanto, não diminuíram o rigor de sua lavra. Ao contrário, potencializaram a capacidade que cada obra tem de traduzir aquilo que Debord já bem explicara quanto à posição do ser diante de um sistema de produção falho.
O homem, “o ser negativo que é apenas na medida em que suprime o Ser”, é idêntico ao tempo. A apropriação pelo homem de sua própria natureza é também sua apropriação do desenrolar do universo. “A própria história é uma parte real da história natural, da transformação da natureza em homem (Marx). Inversamente, essa “história natural” só tem existência efetiva através do processo de uma história humana, da única parte que encontra esse todo histórico, como o telescópio moderno cujo alcance recupera no tempo a fuga das galáxias para a periferia do universo. [...] A temporalização do homem, tal como se efetua pela mediação de uma sociedade, é igual a uma humanização do tempo (DEBORD, 2013, p. 87).
Ao apropriar-se da existência e do tempo, Ana Amorim oferece uma reflexão muito maior em sua atual exposição do que, creio, poderia ter logrado, caso não fizesse de sua poética uma profissão de fé e um testamento da contemporaneidade pela simples materialização minimalista de suas ideias. Assim, desvela ao espectador um jogo de interações em que tão importante quanto o ato da criação, é o ato da interpretação em campos abertos, como sugere Bourriaud (id, ibid): “No quadro de uma teoria ‘relacionista’ da arte, a intersubjetividade não representa apenas o quadro social da recepção da arte, [...] mas se torna a própria essência da prática artística”. Numa etapa seguinte de seu projeto, Ana Amorim passou a transferir seus mapas desenhados para tecidos que seriam bordados pela própria artista, a seguir, o que pode ser lido como um processo de fixação e consolidação de um método, com vistas a uma reificação de paisagens mentais, agora eternizados num material menos perecível e mais acessível. Há uma longa série desses trabalhos, que compila em extensos cortes de panos pretos os mapas realizados no decurso de anos inteiros, como a peça First Embroidery, uma reunião de memória, arte e evolução técnica para além da mera objetificação de uma ideia, já que isso não daria conta do complexo jogo fenomenológico que envolve seus processos. De maneira mais direta, como escreveu Maurice Merleau-Ponty,
As coisas não são, portanto, simples objetos neutros que contemplaríamos diante de nós; cada uma delas simboliza e evoca para nós uma certa conduta, provoca de nossa parte reações favoráveis ou desfavoráveis, e é isso que os gostos de um homem, seu caráter, a atitude que assumiu em relação ao mundo e ao ser exterior são lidos nos objetos que ele escolheu para ter à sua volta, nas cores que prefere, nos lugares onde precisa passear (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 23).
Ao rechaçar as obviedades institucionais que orbitam o universo da arte, e optar por uma vida “em trânsito”, Ana Amorim ainda assimilou outras experiências no vasto repertório que utiliza como matéria-prima. Foi montanhista e incorporou os desafios da atividade ao mapeamento de sua história. Foi também tradutora de movimentos sociais no Brasil e em diversos países, e registrou as experiências de uma intérprete simultânea na performance Transcomunicadora. Neste momento de sua carreira, em que expõe em larga escala o acúmulo de suas memórias e seu tempo capturado, Ana Amorim entra em uma nova fase, mostrando que sua obra transpira mutabilidades a que esse mesmo tempo capturado está sujeito, numa época que revolve a semente da criação em solos imprevistos. Portanto, quanto mais atrelada a um processo expográfico, mais sua obra se remete à totalidade do processo de criação e extroversão, como se pudesse ser resumida no postulado de Jean Tinguely, que vem à mente:
Everything moves continuously. Immobility does not exist. Don’t be subject to the influence of out-of-date concepts. Forget hours, seconds and minutes. Accept instability. Live in Time. Be static – with movement. For a static of the present movement. Resist the anxious wish to fix the instantaneous, to kill that which is living. Stop insisting on “values” which can only break down. […] You are movement and gesture. Stop building cathedrals and pyramids which are doomed to fall into ruin. Live in the present, live once more in Time and by Time – for a wonderful and absolute reality (TINGUELY, in DANCHEV, 2011, p. 337).
A exposição de Ana Amorim segue até 13 de setembro de 2019 na Galeria Espavisor.
Donny Correia
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BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
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