|
FERNANDO LEMOS DESIGNERCARLA CARBONE2019-08-20
Talvez o design gráfico esteja, hoje em dia, demasiado preocupado em definir as suas leis que se esquece de viver e de representar as formas que pulsam no dia a dia e que são fluídas, sem amarras, à margem de categorizações. O design vive delas todas. As formas de expressão, como a poesia, a fotografia, a pintura, o desenho, a ilustração, a escultura e até a instalação, prefiguram o alcance do design gráfico e estabelecem conexões transversais. Por outras palavras, a necessidade de comunicar encontra-se um pouco por todo o lado e é inerente a qualquer das disciplinas. Até mesmo um objecto tridimensional destinado a um uso concreto e básico não deixa de comunicar, além da sua função directa (se for bem sucedido enquanto objecto de uso) a função estética, a função simbólica, definindo o que o objecto é, nas suas propriedades comunicacionais, enquanto vasos transmissores de estatuto, por um lado, ou de agradibilidade, por outro, no caso de serem aprazíveis aos sentidos. A própria matéria, de que é feito o objecto, contém as suas propriedades comunicantes, como a cor, a textura, se é uma matéria natural ou artificial, qual a temperatura que de si emana, o cheiro, o passado e a memória que evoca. Provavelmente tenha sido por essa razão abrangente do design que Fernando Lemos reivindicou para si o estatuto de designer, atitude que, na sua opinião, o define melhor. Chico Homem de Melo, curador da exposição “Fernando Lemos Designer” (patente na Coordoaria Nacional e organizada pelo Museu MUDE), ao apresentar Fernando Lemos no catálogo da exposição, refere que o designer “não cabe numa única nacionalidade, é português, é brasileiro, por isso talvez não caiba numa única definição profissional – é designer, artista visual, fotógrafo, muralista, poeta, pensador de cultura”. “Talvez seja a sua peculiaridade como criador, ser um e ser tantos”, Fernando Lemos gosta de afirmar que em tudo o que faz é sempre designer. Ele entende que o termo é suficientemente amplo “para resumir a sua forma peculiar de produzir linguagem”. Essa identificação como designer justifica ainda mais o título que dá nome à exposição e a vontade de, além da fotografia que o tornou notável em Portugal, dar a conhecer ao grande público o trabalho intenso que realizou no Brasil, enquanto designer gráfico, e ao longo de uma vida. Porém, é preciso salientar que o trabalho e a forma de pensar de Fernando Lemos, segundo Homem de Melo, confirma o homem coerente e livre que sempre tem sido. Como se verificou nos anos 1950, quando decidiu sair de Portugal, numa época agrilhoada pela ditadura, e sabendo o criador das limitações que a permanência em Portugal provocaria na sua criação artística. Num compromisso libertador, alheio às academias, Lemos rumaria ao Brasil. E é por esse motivo, por ser um livre pensador, que Homem de Melo compara o designer a um arquipélago. Traduzindo em ilhas o número de áreas e a diversidade de produção que reveste a sua obra no Brasil. Compreendendo a sua intensa actividade como designer gráfico no Brasil, Lemos realizou um projecto visual maravilhoso, em 1963, no Pavilhão Brasil, por ocasião da feira de Tóquio. O sinal que se encontrava sobre o muro do pavilhão, formado por letras com a identificação Brasil, era também capa do folheto. Com esta resposta por parte do Lemos, a palavra Brasil, que acabava por se transformar em um quase-logótipo, tornava-se assim um símbolo para o país que o acolheu. Lemos destacava-se como grande muralista. Em 1954 São Paulo comemorava 400 anos da sua fundação e Lemos foi um dos artistas a ser convidado para guarnecer a cidade com arte. O convite veio do prestigiado Jaime Cortesão, historiador português que, à data, residia no Brasil. Coube a Lemos realizar um belíssimo e gigantesco mural alusivo à efeméride e de que infelizmente hoje só há registo através de fotografias, dado que os murais foram todos destruídos à data de encerramento da exposição. A composição do Mural revela um jogo de formas de génese maioritariamente geométrica, reforçada por um contraste de claro-escuro, habitualmente definidor da operacionalidade de Lemos. Já nas fotografias do designer o contraste claro-escuro era uma tónica na sua obra. Como se as coisas continuassem a ser esculpidas pela luz, fosse qual fosse o meio que utilizasse. Lemos, ainda na década de 50, tem a oportunidade de trabalhar como ilustrador na revista Manchete e na revista Sombra. Sendo, nesta última, em 1953, que vai participar com uma fotografia e um poema, ambos de qualidade impar. Em 1958 desenha a capa de um disco de poesia cujos protagonistas são Sérgio Milliet e Manuel Bandeira. A capa destaca-se pelo grafismo abstracto das formas, vindo a confirmar, mais uma vez, a sua mestria enquanto designer gráfico. Na mesma revista explora simultaneamente o figurativo e o abstracto, e mais tarde, já na década de 60, reforça esse pendor pelo abstracto nas ilustrações do Suplemento Literário, o então encarte cultural pertencente ao mais importante jornal daquela cidade “Estado de S. Paulo”. O meio artístico naquele período parecia viver então em total e pura efervescência abstracionista geométrica. Lemos introduzia assim uma nova linguagem no domínio da ilustração, e numa altura em que o Brasil proliferava em matéria deste género artístico.
Fernando Lemos, livro A Televisão da Bicharada, 1962.
Ilustrou poemas de Cecília Meireles em 1956; poemas de Miguel Torga em 1957; Capas de discos para a editora brasileira “Long Playing”, capas de livros como “A Cidade Antiga”, de F. Coulanges, ou as “Confissões de S. Agostinho”; As “Memórias do Capitão”, de Sarmento Pimentel, em 1961; entre outros. Posteriormente criou, para o nº3 da revista “Produto e Linguagem”, em 1966, uma edição absolutamente pioneira, onde, curiosamente, constava também um texto de Bruno Munari, de nome “A laranja”. Esta revista era constituída por uma capa, em formato de envelope, e o seu interior continha folhas impressas, soltas. Mais uma vez Lemos desafiava as convenções. Esta belíssima edição assemelhava-se ao conceito de “livro objecto”, muito à frente da sua época, o que sofreu duras críticas por pessoas que ainda não estavam preparadas para compreender o feito do designer. Destacou-se como um grande disseminador de um design modernista no Brasil, modelado por um modernismo gráfico detentor de um rigor estrutural e compositivo, no entanto desafiando as convenções. Avesso às estagnações, arrojado, e sem medo de arriscar. Um eterno insatisfeito, no sentido mais positivo e libertador do termo. Característica do artista que conserva dos seus trabalhos de fotografia na década de 1940, onde as formas sombras e silhuetas impressas sobre a película pareciam revelar uma incessante procura estética, velada pelas formas que, em sobreposição na composição, evidenciavam um gosto apurado e informado, denunciador de um apelo dadaísta. A obra de Fernando Lemos é incomensurável e revela a grandiosidade de um homem. Uma pequena estrofe de um poema de Miguel Torga, chamada “Brasil”, e que o próprio designer terá ilustrado, poderia ser usado para definir o designer: “O retrato da pura imensidade”.
|