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VIENA, 22 a 26 de Março de 2006


NO PRINCÍPIO ERA A VERBA



PEDRO PORTUGAL

2012-08-06




NO PRINCÍPIO ERA A VERBA [1]



A arte não pensa e não é esse o seu objectivo
Apócrifo séc. XX




A ideia ex-pós-modernista de que as exposições nos museus terão uma verba sempre maior e indelevelmente assegurada terminou. Filipe de Montebello, até recentemente diretor do Metropolitan Museum, disse publicamente que faria exposições de orçamento ilimitado enquanto o deixassem fazer, mas tinha a certeza que esse tempo estava a acabar… É um prognóstico curioso mas não é uma boa previsão para a pré-condição dos museus: continuar a crescer, aumentar coleções, abrir filiais e reunir informação até a nega-entropia final [2].

Fazer exposições em que se pressupõe que quanto mais verba houver melhor é a exposição, mesmo que a única razão para haver exposição seja a verba, estava certo até hoje: a verba garante atenção mediática, “imenso” público, receitas e cumprimento administrativo excelente. O efeito multiplicativo é elementar mas eficaz — diziam e dizem os departamentos de marketing.

O modelo funcionou como justificação para os estados financiarem organizações e estruturas culturais, que promovessem a “cultura de excelência” e que garantissem o sancionamento do selo de “interesse cultural”, assegurando-se assim que subsistia a razão da sua própria existência. O design da administração pública permitiu o silogismo parasita mais eloquentemente pós-moderno: SE EXPOSIÇÃO = VERBA, ENTÃO + VERBA = + EXPOSIÇÃO. A correspondência é também a expressão do colapso desta ordem. É o grande logro ideológico que ficou popularizado como a “indústria da cultura”. Uma via apoiada por um discurso burocrático arredondado, exportado sobretudo pelo chauvinismo francês de tradição napoleónica que quis tornar exclusivo de “l’État” o atributo e honra de “motor de arranque” da cultura.

Os financiamentos maciços nos diversos setores da cultura disseminados em “incubadoras criativas”, “ninhos de inovação”, “clusters artísticos” e nas mais diversas “maquinarias culturais”, foram construídos e fomentados para servirem operações complementares de compra de votos pelos governantes — o povo sente, lateralmente, que participa na engrenagem civilizacional e pensa remota e humildemente que é possível o upgrade social pela educação e pela cultura. Os efeitos desta ação durante mais de 50 anos foi a confinação estrutural do que é culturável ao aparelho de estado, culminando numa parcial nacionalização dos artistas e total politização dos resultados [3].

O que os museus e as instituições de cultura fizeram, foi isolar circunstâncias das manifestações artísticas que lhes são contemporâneas e passá-las para dentro de contentores de informação organizada, criando um discurso solene, com silêncio e concentração. Os objetos que estão nos museus e que motivam uma movimentação de verbas e meios tão importantes, estão kleenexicamente arrumados na zona inframuseológica dos acervos, uma espécie de rio da morte por onde flui a história que não se consegue contar por causa da entropia das coisas que mudam.

Mas então porque é que correu mal? Porque os auxiliares da arte (pessoas que ajudam à arte) aumentaram artificialmente o espaço que agora ocupam, alargando para um domínio muito maior os fenómenos de regulação do artístico e falsificaram metodologias. Porque a teoria se partiu em inúmeras teorias e acabou finalmente por se tornar desnecessária, ou pelo menos tão acessória como aquilo que explica. Porque aconteceu uma multiplicação mediática e comercial das formas e da maneira como é observada a “arte” e por fim, porque a “produção cultural” foi integralmente capitalizada.

Mas não há inocentes. O grande arauto da arte como commodity assinalava já o “registo negativo da arte como possibilidade” (T. Adorno) e o Cioran dos museus, Jean Clair, tem prazer em escrever coisas como: “O aumento exponencial do número de museus parece menos um signo de realização do que de decadência espiritual, um signo tão claro como a multiplicação dos templos romanos, que não marcou o apogeu mas o fim de uma grande civilização. […] Assim, a arte moderna atual deixou de ser o mistério que compromete o indivíduo que o contempla numa relação singular e transcendente, para lá dos usos profanos a que a obra estava até aí destinada – objeto de prazer, de luxo ou de deleite –, para ser apenas um jogo esotérico – praticado entre um número crescente de classes sociais –, festivo e um tanto macabro, a que se entrega uma cultura agógica para ocultar o espetáculo da sua própria decomposição.” [4]

As instituições do universo da cultura devem começar a fazer os preparativos para a grande singularidade que se aproxima que é o fim da era cultural (Norman O. Brown). A fé de que fala Clair passará da cultura para a ciência sem grandes constrangimentos ou saudades. Os profetas da “terceira cultura” [5], como os cientistas se auto-designam, são aos olhos dos que detêm as verbas os que melhor e mais convincentemente prometem benefícios.


Pedro Portugal





NOTAS

[1] Como gostava de dizer um inspetor do Ensino Superior e das Belas Artes no fim dos anos 60.

[2] O que está a fazer subir para dezenas de milhões os clássicos contemporâneos americanos Twombly, Warhol, Still, etc., são os compradores de leste e do Ultramar. Estão a fazer exatamente o mesmo que os americanos fizeram há 100 anos quando começaram a comprar a história que não tinham — a história na perspetiva da cultura como ideia.

[3] O episódio da nomeação direta de um artista pelo poder político para uma representação de estado de uma forma tão natural e sem remorsos é uma manifestação notória deste nexo. Mas o mais notório é que pela primeira vez em Portugal todo o aparelho de estado, decisores e opinadores culturais, compreenderam (aparentemente) o que é a arte contemporânea. É assim compreensível o entusiasmo com esta aliança e a cooperação sem reservas com a produção desta objectália.

[4] Jean Clair (1988). La Paradoja del Conservador. Barcelona: Elba

[5] Conferência “The Two Cultures”, 1959, C.P. Snow. Ver também edge.org