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A TRAGICOMÉDIA DA DESCENTRALIZAÇÃO, OU DE COMO SE ARRISCA ESTRAGAR UMA BOA IDEIALUÍS RAPOSO2017-03-30
Já algo foi dito sobre a legislação relativa à chamada “descentralização”, que faz o seu percurso de discussão na Assembleia da República. Percurso tão meteórico que nos arriscamos a que tenha terminado antes mesmo de ter começado. Portugal e os processos legislativos têm destas coisas: andamos anos e anos “a encanar a perna à rã” e depois, por circunstâncias decorrentes da vontade de personalidades ex-maquina, mais do que de impulsos populares, tudo tem ser feito de afogadilho, antes que a conjuntura passe. É o Portugal de sempre, o da Corte que se pavoneia perante o País, onde os zé povinhos mantém as suas distâncias perante teatros de máscaras. Mestre Bordalo soube-o bem retratar em seu tempo. No caso vertente, diz-se que se pretende algo prezável: promover a descentralização político-administrativa, transferindo competências para as autarquias. Mas os equilíbrios de poder impediram ir mais longe: por isso se foge como diabo da cruz do termo regionalização e se perspectiva juntar somente mais tarde a desconcentração dos organismos do Governo. Ou seja: o que devia ser transparente e sério, uma reforma profunda do Estado democrático português, transferindo competências da vida cidadã para os planos regional e local, ameaça converter-se em meros arranjos de gabinete, feitos em vésperas eleitorais. Regionalista e municipalista que sou, bem gostaria que fosse de outra maneira. Que houvesse coragem política para lutar pelos ideais em que se acredita e, depois, se não fosse pedir muito, que houvesse transparência procedimental. Mas não. E o resultado é o que para já temos em cima da mesa: uma proposta de lei de descentralização de competências para as autarquias que arrisca desequilibrar o sistema político português em tal grau que sejam irreparáveis os danos causados sobretudo ao território (o mais estratégico recurso que ainda possuímos) e, já agora também, ao património cultural nacional. Não sabemos com efeito o que ainda poderá estar para vir no plano das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). Não sabemos se serão mesmo reforçadas em termos políticos (pela nomeação de presidentes eleitos pelos autarcas das respectivas áreas), dando origem a híbridos um tanto estranhos: organismo do Governo, dirigidos por quem possui legitimidade própria, não hierárquica. Ou se passarão a ser algo ainda mais original, quase regiões. Se passarão a poder tutelar monumentos e museus. E quais, neste caso. Estas interrogações são cruciais para avaliação da proposta de lei já em discussão, referente às autarquias. É que, não sendo a lógica uma batata, importaria que a transferência de monumentos e museus para estas últimas fosse apenas feito depois de estabelecida a esfera de competências regionais. Não sendo assim, o que temos causa a maior apreensão. E esta ficou reforçada depois de sessão de esclarecimento promovida recentemente pelo Forum do Património, com a presença de deputados de todos os grupos parlamentares representados na Assembleia da República. Na realidade, por entre afirmações de dúvida de todos, o deputado representando ali o Partido Socialista, e portanto em posição de melhor conhecer e defender a proposta do Governo, reconheceu que algumas formulações sensíveis constantes do referido diploma não se deviam não tanto a deficiência na sua formulação (como os mais cândido supunham), mas a intenção declarada de opacidade, tendo em vista deixar em aberto possíveis desenvolvimentos futuros. Tal é o caso do destino antecipado na passagem para tutela autárquica de museus e monumentos, nos seguintes termos: a) “Monumentos de âmbito local”, que não são aqueles que a lei já consagra como “monumentos interesse local”; serão todos a que potencialmente seja atribuído “âmbito local”, independentemente do regime de classificação jurídica que já possuam; dito de outra forma: poderá passar existir “monumentos nacionais” que sejam com considerados “de âmbito local” e por isso transferíveis para as autarquias; b) “Museus Nacionais”, que não são aqueles que assim foram classificados ao longo de décadas, na verdade mais de um século, mas todos os o Governo queira manter e sejam assim acomodaticiamente classificados. Sendo concreto, poderíamos dizer que talvez no curto prazo o Mosteiro dos Jerónimos seja considerado fora do “âmbito local”, mantendo-se na esfera do Governo. Mas cá estaremos para ver se o Paço Ducal de Guimarães ou a Fortaleza de Sagres conhecerão a mesma sorte – sobretudo quando, como se disse antes, não está ainda configurado o que seja o plano regional. Identicamente quanto aos museus: no imediato uma corrida que leva a colocar apressadamente o rótulo de “nacional” naqueles que assim consigam ser “salvos”, com boas ou más razões, por influência quer a máquina administrativa do Governo (onde pululam Sir Humphreys, exímios em “dar a volta ao texto”), quer da imberbe opinião pública que vamos tendo, quer ainda da capacidade de lobbismo subterrâneo junto dos amigos certos. Foi assim que vimos esta coisa extraordinária de termos um museu monográfico (Conimbriga), classificado como museu nacional. É assim que deitamos fora décadas de reflexão sobre o conceito de museu nacional e nos tornamos em comédia da Europa. Perguntar-se-á: mas está mal que monumentos e museus passem para tutela autárquica? Bom, a minha resposta é que estará mal nuns casos e noutros não. Estará certamente mal quando se trate de bens que constituam símbolos identitários nacionais, de que jamais o Estado central deveria alijar a responsabilidade. Estará ainda mal quando as autarquias não possuam notoriamente os meios técnicos e financeiros para a sua gestão corrente. Estará pior se forem desqualificados, e não requalificados como deveriam, os níveis de normativa e controlo (regionais e nacionais) e se tornar na prática inoperante o sistema de contra-poderes que constitui garantia da transparência de todo o sistema. Estará pior ainda se não forem estabelecidas com rigor as fronteiras da gestão municipal, sobretudo em matérias como os critérios de conservação e restauro, os programas de uso ou “rentabilização” e o acesso público. E estará péssimo se sobre tudo isto passar a existir uma maior osmose entre interesses privados e autoridades públicas, de tal modo que o fatiamento do território e a exploração do património passem a ser encarados como negócios em que todos têm a ganhar, pelos impostos que permitem arrecadar e pela acumulação de riqueza que proporcionam. Será então caso para dizer: consumou-se o destino, é fartar vilanagem. O sonho republicano de um País de regiões terá então morrido. E uma boa ideia terá sido convertida em pesadelo.
Luís Raposo
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