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OPINIÃO


Video still The Joycean Society (2012) Dora Garcia. HD Video 49’


Finnegan’s Wake (1939), James Joyce.


Vista da instalação The Joycean Society na Bienal de Veneza 2013.

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O TRIUNFO DOS NERDS



MARIA LIND

2014-11-11




 

“Vamos todos parar ao inferno por ler isto”, diz um dos membros da Joycean Society num filme de 2013 de Dora García, que toma o nome do grupo como título. Desde 1986 que este grupo de entusiastas se encontram todas as semanas em Zurique para lerem juntos o último livro de James Joyce, “Finnegan’s Wake” (1939). Os participantes demoraram 11 anos a ler o livro pela primeira vez e estão agora já na terceira volta. Os pioneiros envelheceram com a leitura colectiva e lembram-se do tempo em que as escadas que conduzem à sala onde se reúnem não eram um obstáculo. Têm chegado novos membros e quando García e a sua equipa foram conhecer e passar algum tempo na sociedade, um grupo de pessoas mais jovens estava presente.

A câmara está no centro da sala e antes da leitura regista uma conversa bem humorada acerca das consequências dos artistas ganharem muito dinheiro e sobre como ter certeza de que as pessoas estão mortas antes de serem enterradas. A conversa volta-se então para uma discussão baseada numa leitura atenta, literalmente palavra a palavra, do livro opaco. Debatem o significado de “onon, onon” na página 201 e seguem para “shabby genteel”, “joy of ills” e “peduncle”. Talvez “great Scott” seja uma outra forma de dizer “great God”? Enquanto o chiar das cadeiras e o barulho dos sacos de snacks compõem um ambiente sonoro, uma estátua de bronze coberta de neve de Joyce a fumar preenche o cenário e a pessoa que segura o microfone que está suspenso torna-se subitamente visível.

A atmosfera no filme é intensa. Cada pessoa tem a sua forma de lidar com o texto, mas o que sobressai é o esforço comum de concentração para o descodificar e, até certo ponto, entender o limitado número de regras que Joyce supostamente empregou ao escrever a história. É óbvio que os participantes gostam do que estão a fazer e que possuem muitos conhecimentos - tal como os nerds - sem serem historiadores profissionais de literatura. A maioria são homens. Voam pela sala comentários espirituosos e fascinantes, assim como sugestões e questões pertencentes a termos específicos, numa performance de inteligência colectiva naquilo que de mais belo isso possa ser.

Desde que vi no ano passado o filme de Dora García no pavilhão do Mónaco na Bienal de Veneza que tenho pensado nele e no facto de ela ter captado algo raro mas ainda assim urgente, de forma esmagadora: a paixão e o compromisso individual serem partilhados e debatidos com outros sob condições extremamente consistentes. Quando o Vdrome - uma iniciativa online que apresenta um novo trabalho de vídeo todas as semanas - apresentou recentemente o filme, lembrei-me que o cenário podia ser visto como um olhar irrelevante para o seu próprio umbigo. Mas penso que é o oposto. Refere-se a uma necessidade contemporânea de profundidade, continuidade e prazer, sem ser preciso pensar nas consequências - sejam elas o tempo que consome ou a ausência de resultados palpáveis. É sobre uma forma de agir no mundo, uma forma de aproximação que permite que as coisas amadureçam devagar e de modo justo. Ao fazê-lo, as pessoas envolvidas não só colocam a arte no centro do palco num momento em que ela acaba por estar muitas vezes nas margens até do seu próprio mundo - embora neste caso estejamos a lidar com um texto que foi canonizado e o seu autor considerado um mestre. Como verdadeiros nerds, os membros da Joycean Society também embarcam num contínuo compromisso sem ter de chegar necessariamente a alguma conclusão.

Este tipo de atenção focalizada e carinhosa é um fenómeno escasso actualmente, quando a atomização do neoliberalismo e a perturbação do estilo de vida atingem novos patamares. Um dos participantes no grupo de leitura diz que as actividades em conjunto são “viciantes”. Também são descritas como uma experiência de leitura única e até como uma terapia. É inegável que os participantes têm muito prazer nesta proximidade com a leitura de “Finnegan’s Wake”: uma pessoa no filme afirma que esta forma de compromisso com a literatura é um exemplo de como a cultura é uma substituta dos prazeres que nos são negados. Mas a arte é mais que isso, é o que nos faz ser possível enunciar a experiência do prazer, mas também da dor e de tudo o que está subjacente, de forma a podermos partilhá-lo com os outros.

Actividades secretas como as do grupo de leitura da Joycean Society e o seu investimento num cooperativismo teimoso com objectivos inconclusivos constituem nada mais do que um acto de resistência às actuais pressões, conscientes ou inconscientes. Simultaneamente, o filme de García e o grupo de leitura per si representam um triunfo dos nerds e do seu compromisso com o prazer. Este tipo de ocupação é o futuro, mesmo que isto signifique ir parar ao inferno. [versão portuguesa do original inglês]

 


Maria Lind
Curadora independente e escritora, directora do Tensta Konsthall.

 

 

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Este artigo foi originalmente publicado na ArtReview, Setembro 2014.