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CORRESPONDÊNCIAS: APROXIMAçõES CONTEMPORâNEAS A UMA ICONOLOGIA DO INTERVALOANTÓNIO PRETO2006-12-152 [...] A imagem da felicidade está indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso. 4 [...] Assim como as flores dirigem a sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas. 5 A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. “A verdade nunca nos escapará” — esta frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exacto em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. 6 Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de facto foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. 7 “Pensa na escuridão e no grande frio Que reinam nesse vale, onde soam lamentos.” Brecht, Ópera dos três vinténs Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. É impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Este método é o da empatia. A sua origem é a inércia do coração, a acédia, que desespera por apropriar-se da verdadeira imagem histórica, no seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acédia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage”. A natureza desta tristeza tornar-se-á mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, os dominadores. Isto diz tudo ao materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. De acordo com a pratica tradicional, os despojos são carregados no cortejo. Estes despojos são o que chamamos bens culturais e um materialista histórico contempla-os com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode reflectir sem horror. Devem a sua existência não apenas ao esforço dos grandes génios que os criaram, como à força anónima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico desvia-se dela. Considera tarefa sua escovar a história a contra-pêlo. 9 “Minhas asas estão prontas para o voo, Se pudesse, eu retrocederia Pois seria menos feliz Se permanecesse imerso no tempo vivo.” Gerhard Scholem, Saudação do anjo Um quadro de Klee, chamado Angelus Novus, representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que encara fixamente. Os seus olhos estão escancarados, a boca dilatada, as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. O seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se nas suas asas com tanta força que não pode fechá-las. A tempestade impele-o irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Esta tempestade é o que chamamos progresso. Walter Benjamim, Sobre o conceito de História Bebendo em três fontes diferentes e aparentemente incompatíveis – o romantismo alemão, o messianismo judeu e o marxismo –, a filosofia da história de Benjamin é uma crítica tanto ao historicismo hegeliano, como ao progressismo marxista. A crítica de Benjamin ao historicismo – que concebe toda a realidade como produto de um devir histórico e atribui à filosofia a tarefa de levar a cabo uma teoria da história –, de origem nietzschiana, expressa-se na recusa da “admiração nua pelo sucesso”, da “idolatria do factual” e da reverência diante da “pujança da história” que resulta numa insurreição contra a tirania da realidade, para nadar contra a corrente histórica. Se o historicismo de Hegel se baseia na observação de que não há nenhum critério objectivo para determinar a melhor teoria de análise de um determinado objecto de estudo, estando, por isso, as ciências, como quaisquer outras disciplinas, condenadas à historicidade – enquanto Karl Popper entende o historicismo como uma aproximação às ciências sociais que assume a predição histórica como objecto principal, alcançável mediante a descoberta dos “ritmos”, dos “padrões”, das “leis” e das “tendências” subjacentes à evolução da história –, Benjamin concentra-se no “apelo” que o passado dirige ao presente, entendido como “um ‘agora’ no qual se infiltram estilhaços do messiânico”: centra-se no Jetztzeit que é o “relampejar fugaz” da imagem histórica no momento de um perigo. Incitando a escrever a história gegen den Strich, a contra-pêlo, o ponto focal, formulado de modo categórico, é o anjo da história e o seu pente (critério objectivo) a negativização: contra a tempestade do “cortejo triunfal” historicista, Benjamin fala em nome dos vencidos: “A catástrofe é o progresso, o progresso é a catástrofe. A catástrofe é o contínuo da história”. E não é esta sempre escrita pelos vencedores? A perspectiva de Benjamin sobre a história (e sobre a cultura) é pois pessimista: distanciando-se do fatalismo e do Kulturpessimismus alemão (conservador, reaccionário e pré-fascista), o pessimismo benjaminiano é um pessimismo revolucionário. Opondo-se ao “optimismo de diletantes” que caracteriza a postura dos partidos burgueses – cujo programa político não passaria de “um mau poema de primavera” – e adoptando o imperativo da “organização do pessimismo”, defendido por Pierre Naville como “a fonte do método revolucionário de Marx” e único meio de “escapar às nulidades e às desventuras de uma época de compromisso”, a revolução é em Benjamin a via exclusiva para a interrupção de uma evolução histórica que conduz inevitavelmente à catástrofe. No campo da arte, o século XX quer definir-se como o século de todas as revoluções. No entanto, o modelo historiográfico vigente no domínio da criação estética é ainda – ou voltou a ser – de molde novecentista. Com efeito, a História da Arte, a um tempo universalista e etnocêntrica, continua a nivelar por um mesmo padrão epistemológico todos os objectos que propõe como artísticos, independentemente do seu enquadramento cultural (dos lugares, tempos e contextos de produção), fundamentando essa complanação num argumento eminentemente antropológico: a nova história da arte está pois disposta a compreender a visualidade moderna pela aproximação histórica entre arte, cultura de massas e sociedade. Mesmo tendo-se deparado com uma disciplina em mutação – como manter os limites internos da história da arte num contexto em que a produção artística contemporânea se desvia do trilho objectual ou, visando o consumo, se mistura aos demais domínios da produção cultural? –, os receios de Didi-Huberman sobre o fim da história da arte mostram-se assim infundados. Serenadas as convulsões anti-arte que marcaram, de modos diferentes, o início e os meados do século XX, a produção artística contemporânea mostra-se simpática e optimista. Resultado de uma notável elasticidade dos parâmetros estéticos e de uma revisão ideológica dos conceitos e das categorias artísticas, a ampliação da noção de arte foi o tramite mais eficaz para a superação do problema: tanto no sentido de uma ampliação horizontal – que a conduziu à identificação da criação artística com a visualidade –, como num sentido vertical – pela revisão das práticas historiográficas, propensas a considerar como “factos artísticos” todos os que “a ideologia dominante lhes oferece como tais através da suas instituições públicas e privadas” (Hubert Damisch). Gozando de uma probidade insofismável, a história da arte apruma-se invariavelmente pelos vencedores: o seu programa é, como diria Benjamin, o “apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”, não para salvar o passado (i.e., para o problematizar), mas para o tornar útil: o imperialismo é neoclássico (ou seja, pós-modernista – não na versão de Lyotard, mas no sentido habermasiano do termo). Alguns dos principais museus da “Capital do Século XIX” (imagem alegórica da própria modernidade) estão, neste momento, apostados em promover um confronto entre as suas colecções e a criação estética contemporânea. Tendo, há muito, deixado de ser o epicentro da discussão artística, Paris chegou à conclusão que só tirando partido das suas mais importantes instituições museológicas – e do incomensurável património artístico que estas gerem – poderá fazer frente a um certo decadentismo e abrir novas perspectivas face à hegemonia do paradigma anglo-saxónico: à presentificação fluida contrapõe, pois, o abismo da história. O Louvre, depositário de uma colecção que facilmente se confunde com a própria história da arte, aposta em várias frentes. Dando continuidade a uma tradição e a uma lógica de “modernização” do museu – em 1947 Picasso é convidado a expor na Grande Galeria, em 1953 Braque pinta o tecto da sala Henri II – , na qual se inscreve a actual política de abertura à criação contemporânea, tem convidado, ao longo dos últimos 20 anos, diversos artistas a produzir pontos de vista particulares sobre a instituição, entre os quis se contam Christian Milovanoff (“Le Louvre revisité”, 1986), Jean-Christophe Ballot (“Le Louvre en métamorphose”, 1994), Etienne Revaut (“Le geste surpris”, 2004), Patrick Faigenbaum (“Louvre et Chaussé d’Antin”, 2004), Jean-Luc Moulène (“Le Louvre – Le Monde”, 2006) e, presentemente, Candida Höfer (“le Louvre”) que, com Thomas Struth e Louise Lawler (também eles já com trabalho e mostras realizados no museu) se tem centrado numa pesquisa estética sobre os dispositivos e espaços de exposição. Por outro lado, tem organizado ainda sucessivas mostras que visam o cruzamento da colecção com a criação contemporânea, nomeadamente “Contrepoint”, iniciativa que indo já na terceira edição (2004-2005 e 2006), propõe a disseminação de objectos contemporâneos pelo espaço das galerias. Paralelamente a estas acções, o museu tem vindo igualmente a convidar pensadores contemporâneos (não necessariamente ligados às artes plásticas) – Jacques Derrida, Peter Greenaway, Julia Kristeva, Hubert Damisch – a desenvolver abordagens transversais, “comissariando” novas aproximações à colecção. Neste momento, a proposição da escritora norte-americana Toni Morrison, intitulada “The Foreigner’s Home”/“Étranger chez soi”, constitui o mote para a exposição “Corps Étrangers : danse, dessin, film”. Candida Höfer apresenta um conjunto de 9 fotografias de grande formato, de uma série de 15, realizadas em 2005 nas salas de exposição do Louvre. Interessada nos espaços públicos que simbolizam a cultura universal enciclopédica das grandes instituições culturais (museus, bibliotecas, arquivos ou, mais recentemente, a Ópera de Paris), Höfer realiza nesta série uma aproximação à especificidade da arquitectura museológica: a galeria. Instalada na cave do museu, na secção consagrada à história do palácio/castelo onde podem ser vistas as fundações do Louvre medieval – salle de la Maquette –, a exposição pretende pois questionar os próprios alicerces epistemológicos da instituição. As fotografias, esvaziadas de presença humana e reclamando a objectividade e o distanciamento que caracterizam a escola de Düsseldorf, centram-se em pontos de vista centrais sobre as perspectivas infinitas das galerias do museu. A fotografia de museu, que já quase se tornou um género em si mesma, serve aqui para questionar o linearísmo sequencial (espacial, mas também cronológico) que estrutura a organização museológica na sua formulação clássica, votando ainda uma atenção muito particular à história do edifício, aos indícios materiais que denunciam uma ocupação anterior de tipo diferente. Esta inquirição sobre a história do lugar e das suas reconversões, sugerida em todas as fotografias apresentadas, culmina numa imagem da grande sala de jantar de Napoleão III, cujos apartamentos privados no Louvre, preservados e abertos ao público, constituem uma peça-chave para a compreensão da sua cenografia museológica. Dividida em duas partes, “Corps Étrangers : danse, dessin, film” parte do enquadramento temático-conceptual proposto por Toni Morrison – visando múltiplas ressonâncias, tanto históricas como contemporâneas, as noções de casa, asilo, lugar de ancoragem e comunidade servem para articular a questão: como é que ao longo do tempo o sentimento de pertença a um lugar, a uma identidade, tem sido posto em risco pelos acasos da história; como é que as mutações políticas, sociais ou culturais podem dar lugar a uma experiência de desaposseção do indivíduo daquilo que considera ser a sua casa, o seu território ou lugar de pertença, referência simbólica maior em permanente redefinição: como refere François Villon: “en mon pays suis en terre lointaine”. A exposição integra a instalação “Retranslation/Final Unfinished Portrait (Francis Bacon)”, trabalho de parceria de William Forsythe e Peter Welz, e “Corps Étrangers”, selecção de desenhos de Delacroix, Le Brun, Degas, Gériacult e Füssil, das colecções dos museus do Louvre e d’Orsay postos em relação com trabalhos em suporte vídeo realizados por Sonia Andrade, Samuel Beckett, Bruce Nauman e Kazuo Ohno. Forsythe e Welz centram-se no último retrato de Francis Bacon, deixado inacabado aquando da sua morte, em 1992, para realizar um exercício de transposição formal. Se Bacon se refere à sua própria pintura não como uma “ilustração da realidade”, mas antes como uma “concentração da realidade e uma estenografia da sensação”, a tradução performativa de Forsythe adopta por matriz o desenho preparatório (impressão imediata do movimento, de uma energia em acto), o intervalo entre as múltiplas silhuetas que definem a figura. Trabalhando actualmente sobre os graus de consciência da sensação e sobre a ideia da figura como “desenvolvimento de um êxtase de sensações”, William Forsythe recusa a forma enquanto congelação de um ponto de vista objectivo: se o corpo evolui constantemente de um estado a outro, o que importa analisar é o processo de formação. Deste modo, impregnando os pés e as mãos com minha de chumbo, Forsythe tenta reproduzir com o corpo, de memória e através do movimento, as múltiplas linhas estruturantes do desenho de Bacon sobre um suporte branco horizontal, fazendo assim emergir um novo registo gráfico. A instalação vídeo de Peter Welz produz, por seu turno, uma interpretação plástica da performance decompondo o movimento no espaço. A tridimensionalização da figura, resultado de um processo de hibridação formal – desenho-performance-vídeo-intalação – apresentado nas salas de estatuária grega do Louvre, propõe assim um confronto contemporâneo com as representações do corpo na escultura clássica. A segunda parte da exposição “Corps Étrangers”, partindo de uma premissa que identifica o corpo em movimento como “lugar de uma identidade precária, suspensa ou instável”, propõe-se a ler as representações gráficas da figura humana a partir da sua performatividade e das suas linguagens, prolongando assim a reflexão sobre as relações entre o desenho e o movimento corporal exploradas em “Retranslation/Final Unfinished Portrait (Francis Bacon)”. São quatro as aproximações à questão, formuladas no confronto entre desenhos do século XIX – que têm em comum o facto da qualidade do movimento das figuras representadas evocar uma experiência eminentemente física de “estados interiores”, desligada da fixação de uma narrativa – e obras fílmicas realizadas nas décadas de 60 e 70, provenientes de diferentes enquadramentos disciplinares (vídeo-performance, dança butô e teatro de texto). Na primeira confrontação, “Campos de batalha”, estabelece-se um paralelismo entre uma performance vídeo realizada pela artista brasileira Sonia Andrade, em 1977, em plena ditadura militar, e os estudos de Degas para o quadro “Scène de guerre au Moyen Âge”, de 1865. Num caso como no outro, os fundamentos do desenho como processo de definição e identificação da figura traduzem-se numa violência gráfica que é a da desfiguração. No espaço denominado “Pregas”, o filme “Portrait of Mr. O”, de Kazuo Ohno, 1969, entra em diálogo com esquiços de Delacroix, realizados entre 1836 e 1840. O fio condutor do confronto centra-se na emancipação expressiva do corpo e nas potencialidades das articulações, elementos intermediários de circulação e de fluxo que remetem para processos de transformação e de passagem de um estado a outro, ponto nevrálgico tanto do teatro butô como dos desenhos de Delacroix, inspirados em Goya e Rubens. A terceira parte da exposição, “Culpas”, põe lado a lado “Boucing in the Corner, n.º 2: Upside Down”, vídeo de 1969, da autoria de Bruce Nauman, e esboços de Le Brun produzidos por volta de 1672 para “La Chutte des anges rebelles”, pintura destinada ao tecto da capela de Versalhes. O tema central da reflexão é, nos dois trabalhos, a massa corporal, a sua densidade e o modo como a sujeição à gravidade define e investe de significado a postura e o movimento do corpo. Por fim, “Apagamentos”, último binómio apresentado na exposição, propõe uma correspondência entre o “Film”, transposição cinematográfica de teatro de texto realizada por Samuel Beckett, em 1965, e desenhos de Seurat, Füssli e Géricault. A polarização entre a experiência filmográfica de Beckett e os desenhos pré-românticos e impressionistas incide no relativismo percepcional proposto por Berkeley, na procura de um não-ser que se concretiza na experiência do apagamento e na temática moderna da figuração estranha a ela própria. O denominador comum destas confrontações é, evidentemente, o corpo – as determinações estéticas, culturais e políticas dessa concepção, as representações associadas, as implicações sobre as possibilidades de perceber e agir –, suporte/medium e tema central, não apenas da pesquisa estética das décadas de 60 e 70 (com prolongamentos, desenvolvimentos e anacronismos que chegam até ao presente, de modo mais ou menos estereotipado), mas de toda a história de arte ocidental. No entanto, outros traços se detectam de imediato. O que os paralelismos propostos dão a ver não é só uma oposição entre o “antigo” e o “moderno”, uma recorrência de questões filosóficas e morfológicas que atravessam a criação artística e se constituem como prisma de abordagem diacrónica, certamente válido: a permanência das formas, a tese de que não há evolução em arte, traduz, neste como noutros casos, uma clara assumpção ideológica: se, por um lado, se verifica que todos os “desenhos antigos” da exposição são franceses, afere-se, por outro, que nenhum dos autores das obras contemporâneas que lhes servem de contraponto tem a mesma nacionalidade. Daqui decorrem pelo menos duas hipóteses de interpretação: ou a proposição indica que muitas das questões tratadas internacionalmente pelas neo-vanguardas haviam já sido objecto da démarche das escolas pré-romântica e impressionista francesas dos séculos XVIII e XIX; isto é, o modernismo francês seria portanto uma báscula fundamental da arte contemporânea, antecipando, enquadrando e definindo inúmeros aspectos presentemente em discussão; ou, o que a exposição denuncia é, pelo contrário, o historicismo como plataforma de afirmação e último reduto da participação da criação artística francesa no debate contemporâneo. Entre o louvor e a constrição, o que se afigura particularmente produtivo no confronto da arte contemporânea com a história é a reavaliação (bidireccional, correlativa e reversível) dos dois tropos postos em choque. Desse acidente, que originou algumas das transformações estéticas mais importantes do século XX, poderão, sem dúvida, resultar novas vias de entendimento do fazer artístico, nomeadamente no que se refere ao seu compromisso político, ou seja, à sua existência histórica. Partindo de princípios idênticos aos que orientam este projecto curatorial do Louvre, também o musée d’Orsay tem, desde 2004, promovido o confronto de obras da colecção com criações contemporâneas. O programa desta iniciativa, denominada “Correspondences musée d’Orsay / art contemporain”, propõe dar a ver as colecções do museu através do olhar de artistas contemporâneos. A um ritmo de duas ou três edições por ano, o museu convida dois artistas com percursos criativos diferentes (sendo um francês e o outro estrangeiro, essa é a regra) a escolher uma obra da colecção para, a partir dela, estabelecer um paralelismo com o seu próprio trabalho. Do diálogo assim estabelecido, pretende-se que resulte a possibilidade de ver as colecções a partir de um novo prisma, fazendo “ressoar a modernidade ainda activa” das peças que a constituem. Depois das correspondências entre “Gustave Courbet / Tony Oursler” e “Gustave Le Gray / Pierre Soulages”, “Carpeaux / Joel Shapiro” e “Chat noir / Christian Boltanski”, “Van Gogh / Braco Dimitrijevic” e “Manet / Anthony Caro”, “Steichen / Alain Kirili” e “Courbet / Brice Marden”, “Quartier de l\'Opérea / Annette Messager” e “Gauguin / Robert Mangold”, são actualmente apresentados os confrontos entre “Cézanne / Jeff Wall” e “Monet / François Morellet”. A primeira correspondência é estabelecida por Jeff Wall a partir de “Le pont de Maincy”, quadro de Cézanne, de 1879, que considera “essencial” no processo de fusão entre a herança pictórica e a perspectiva fotográfica. Se Wall ilustra as suas ligações com a obra de Caravaggio e de Poussin, reconhece em Manet, Degas e Cézanne referências evidentes e estruturais: evocando recorrentemente o paradigma do pintor da vida moderna, caro ao século XIX – período em que se reaviva e actualiza o princípio da invenção pictural –, considera que a prática pictórica destes autores lhe fornece um enquadramento à sua actividade fotográfica. “Le pont de Maincy”, que havia já sido objecto de uma interpretação de Jeff Wall, tendo determinado a realização de “The Drain”, em 1989, serve agora de ponto de partida para “Rear View, Open Air Theatre”, de 2005. Sendo óbvia a analogia formal entre as três imagens – a fotografia é para Jeff Wall, como a pintura para Cézanne, um trabalho minucioso de construção, de análise e sublimação de planos e estruturas compositivas –, esta transposição, que é também uma decomposição, traduz alguns dos principais determinações estéticas da pesquisa de Jeff Wall. Recusando o estatismo da classificação da fotografia entre o ficcional e o factual, Jeff Wall reporta as suas imagens como sendo “cinematográficas” ou “documentais” – implicando, as primeiras, diferentes formas de performatividade, de colaboração e de mise-en-scène, que as segundas não pressupõem, sugerindo, pelo contrário, uma “captação directa” do objecto, na maior parte das vezes entendível como “natureza morta” ou “paisagem” esvaziada de presença humana – para, a partir dessa organização, estabelecer um diálogo entre as duas categorias. A dinamização dos géneros opera-se em Jeff Wall através da exploração das potencialidades discursivas da fotografia, partido da convicção de que é impossível produzir uma narrativa sem representar ocorrências. Essa perspectiva, significativamente um dos grandes pontos de convergência tanto com a obra de Cézanne como com Atget (cuja influência é convocada na exposição, onde se incluem algumas das suas mais conhecidas imagens), articulada com uma vontade de aproximação aos “valores clássicos da fotografia”, propõe a representação como ocorrência: a produção da obra, a tomada de um ponto de vista, constitui, ela própria, um acontecimento, contendo, de algum modo, a história da sua própria elaboração. É precisamente essa sedimentação processual, a construção de um espaço de “outros visíveis”, ulteriores e simultâneos, que Cézanne mostra com tanta intensidade: a representação, a inclusão e o apagamento de figuras (esse terá sido o caso de “Le pont de Maincy”, e argumento para a encenação de “The Drain”) abre um espaço diegético. O elemento “invisível” contido na imagem – que, passe o paradoxo da invisibilidade em fotografia, não corresponde ao inefável ou ao intransmissível (nem decorrerá de um “efeito de leitura”) – é assim, sem o pretender definir, um dos pontos centrais do trabalho de Jeff Wall: o poder de sugestão como propriedade específica da obra de arte: a capacidade de fazer figurar coisas ou atributos que não são apresentados nem representados. O segundo convidado do musée d’Orsay, François Morellet (fundador, nos anos 60, com Le Parc e Yvaral, entre outros, do Groupe de Recherche d’Art Visuel) tem trabalhado nas fronteiras do minimalismo, do conceptualismo e do concretismo. Recusando o “sentimento” em favor de uma “neutralidade activa”, investigando uma linguagem geométrica fundada em formas simples, associadas em composições elementares, e explorando as condições de instalação, a relação dos objectos com o espaço envolvente, a escolha para o confronto recaiu sobre a série “As Catedrais” de Monet, por se lhe afigurar “magnífica, sistemática, obstinada e provocante”: como Morellet, Monet é um pintor sistemático que recorre à série como estratégia de superação da subjectividade. Depois de já ter realizado inúmeros trabalhos (e “desfigurações”) a partir da obra de diferentes artistas – entre os quais Rodin, La Tour e Courbet – a abordagem à Monet desenvolveu-se, de modo assaz evidente, através do estudo do tratamento lumínico. Se Monet procede a uma análise da luz – para muitos impressionistas a análise realista de luz não passava, por vezes, de um pretexto para se libertarem do realismo –, Morellet faz uma síntese da luz. Partindo de três quadros da série de “La cathédrale de Rouen” de Monet (“Le portail vue de face. Harmonie brune”, “Le portail et la tour Saint-Romain, effet du matin. Harmonie blanche” e “Le portail, temps gris. Harmonie gris”, realizados entre 1892 e 1894), Morellet avalia as variantes da intensidade da luz entre os quadros e, respeitando as suas dimensões e o recorte das silhuetas dos portais da catedral representados, reproduz, usando tubos de néon, essas variações. Procurando um distanciamento dos modelos canónicos da história da arte, através do ensaio de novas perspectivas sobre as colecções, o Louvre e o musée d’Orsay aproximam-se de algumas concepções da antropologia histórica das imagens e da iconologia do intervalo formuladas por Aby Warburg no limiar do século XX. Desenvolvendo o projecto de uma Kulturwissenchaft unitária, aberta a múltiplos campos do saber, Warburg encara a história da arte como uma memória errática de imagens que regressam constantemente como sintomas, como um processo trans-histórico de “renascimentos” (que não seriam um revivalismo através do qual se procederia à recuperação de uma tradição perdida, mas um mecanismo inconsciente, próprio da memória colectiva, que se manifesta através de sintomas – esses “índices misteriosos que impelem o passado para a salvação”, o “heliotropísmo” que tende a dirigir-se para “o sol que se levanta no céu da história”), de sobrevivência (Nachleben) da Antiguidade. A cultura seria assim um processo de sobrevivência, de transmissão (“não isento de barbárie”, acrescentamos, depois de Benjamin). É certo que se não sendo exactamente os mesmos os propósitos museológicos do Louvre e d’Orsay, os princípios metodológicos e expositivos que estão na base das correspondências denunciam a influência do modelo warburguiano. Elegendo a imagem como verdadeiro objecto da sua investigação (e dispensando o recurso às palavras), Warburg procura compreender a grande permeabilidade desta às sedimentações históricas e antropológicas, tentando identificar as cadeias de tradição que operam no interior da linguagem ocidental. O projecto inacabado da constituição de um Bilderatlas (Atlas de imagens que designou Mnemosyne) seria assim o instrumento fundamental para a realização dessa tarefa. A natureza das relações entre as imagens sobreviria pois da análise das constelações visuais, ordenadas não segundo uma mera similaridade formal, mas de acordo com conexões determinadas por uma “afinidade recíproca” e por um princípio de “boa vizinhança” (por sinal, o mesmo que presidia à organização da sua biblioteca). Deste modo, o que o projecto iconológico de Warburg demonstra é, antes de mais, a possibilidade (e a urgência) de superar o estatismo, o jugo do sincronismo e a saturação que caracterizam e circunscrevem a história da arte na sua formulação mais consensual: perfilhar uma disciplina implica, inevitavelmente, o reajustamento dos seus fundamentos e princípios operativos, a redefinição dos seus limites, a invenção da sua prática. O programa de dinamização dos bens culturais traduz, nos termos em que tem vindo a ser implementado nos principais museus franceses, não apenas um imperativo de reavaliação dos métodos, pressupostos teóricos, horizontes e objectivos historiográficos, como também um forte investimento na sua rentabilização (económica, simbólica e política). Os últimos desenvolvimentos deste processo, que começou com a popularização do Impressionismo, passam pela promoção de um “turismo cultural”, disposto a consumir e venerar os mais extraordinários mistérios da arte do passado (mostrando particular apetência por quatro ou cinco ícones que não precisamos de nomear), pela elevação do património artístico ao estatuto (religioso) de relíquia do absoluto, o Deus republicano a que chamaremos Humanismo. No entanto, e fazendo justiça ao que parece ser a especificidade de todas as celebrações, é a nostalgia que se torna particularmente nítida: a República Francesa do século XXI ainda não soube digerir as glórias do passado, a arte contemporânea francesa não sabe como relacionar-se com essa pesada herança; mas, “irrecuperável é cada imagem do presente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela”, diria Benjamin: é que todo o efectivamente presente consubstancia, necessariamente, as determinações do lugar e as reverberações do passado. O estabelecimento de correspondências entre a produção estética de diferentes períodos (que, nos exemplos que referimos, procedem da interposição e da interpretação) constituindo, em si mesmo, um princípio formador tanto da museologia como da história, obriga à fixação de um ponto de vista, a uma ancoragem histórica, impõe um aqui e um agora como agentes da mediação (definíveis como linguagem, sujeito, ideologia, teleologia etc.). Questionar uma correspondência significa, por isso, problematizar a negociação, os instrumentos de intercessão que a estabelecem, o seu produto, e é a isso, precisamente, que as iniciativas do Louvre e do musée d’Orsay se furtam: a tematização evita os incómodos da desconstrução. De qualquer modo, seria importante realizar um estudo comparativo entre estes e outros exemplos e o expediente dos principais projectos museológicos nacionais. Esse trabalho está, no entanto, por fazer. |