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MARCELO FELIX

2006-08-17
BAS JAN ADER, TRINTA ANOS SOBRE O ÚLTIMO TRAJECTO

JORGE DIAS

2006-08-01
UM PERCURSO POR SEGUIR

SÍLVIA GUERRA

2006-07-14
A MOLDURA DO CINEASTA

AIDA CASTRO

2006-06-30
BIO-MUSEU: UMA CONDIÇÃO, NO MÍNIMO, TRIPLOMÓRFICA

COLECTIVO*

2006-06-14
NEM TUDO SÃO ROSEIRAS

LÍGIA AFONSO

2006-05-17
VICTOR PALLA (1922 - 2006)

JOÃO SILVÉRIO

2006-04-12
VIENA, 22 a 26 de Março de 2006


INSUFICIÊNCIA NA PRODUÇÃO ARTÍSTICA. EM CONVERSA COM VÍTOR SILVA E DIANA GEIROTO.



JOÃO MATEUS

2021-02-04




 

 


I - Premissa

Consideremos a seguinte premissa: existe uma insuficiência na produção artística contemporânea.

Esta premissa parte antes de mais de algo que é objetivamente sentido e observado, por vários, mas difícil de ser definido ou materializado. Uma dificuldade desta consideração é a de não generalizar. Esta insuficiência altera-se mediante diferentes locais, mediante diferentes indivíduos, diferentes necessidades. E ainda assim, esta insuficiência existe. Falamos de produção artística contemporânea, no seu todo – decisão desde logo discutível. Mas a verdade é que há no ar “(…) a sense of disappointment, a broken promise (…)” [1] que é sentida, e que domina hoje mais do que o que esperávamos. Quando por nós foi procurado explorar esta questão, esta sensação, ficou claro que, explorada individualmente, ficaríamos sujeitos a uma subjetividade e de uma perspetiva limitada. Para um desenvolvimento com uma visão mais abrangente, foram convocados dois artistas-investigadores com os quais conversámos para pensar esta questão: Diana Geiroto Gonçalves e Vítor Grilo Silva.

Dirigimo-nos inicialmente a esta com uma preocupação em relação a uma insuficiência disciplinar. Uma insuficiência em relação ao que a produção artística se propõe elucidar ou transformar, ou até onde esta, de forma modesta, se permite ir. Uma insuficiência do seu alcance, possivelmente. Nas conversas tidas com os artistas, aqui referenciadas, Diana Geiroto e Vítor Silva trouxeram-me duas perspetivas distintas sobre este tópico: uma afeta a uma insuficiência temporal e uma outra preocupada com uma insuficiência relacional, respetivamente, que aqui exploramos.

Existe uma perceção clara de uma fratura, de um desânimo. Uma insuficiência que não tem apenas a ver com falta de financiamento (embora este também seja um fator) e que é anterior à pandemia. Nos termos postos, facilmente são estabelecidas ligações, quer com a realidade contextual da pandemia da Covid-19, quer com as dificuldades económicas dela advinda. Ainda que nesta equação estes sejam elementos com peso e influência, a insuficiência de que aqui falamos, e o seu desenvolvimento, são anteriores a estas questões. A sua origem não é apenas a dificuldade económica do último ano, é mais do que isso.

Quando falamos de insuficiência, falamos de ausência e desaparecimento. Ações que nem sempre são testemunhadas, mas frequentemente apreendidas. Apreender é aqui relevante ao sublinhar o caráter duracional e evolutivo desta questão. Para um decorrer, de um movimento, que poderá até ser um devir. Esta insuficiência tem estado presente e tem vindo a desenvolver-se.

Em agosto de 2020 Martin Herbert afirmou que o mundo artístico se tinha acomodado a um movimento perpétuo, a uma falta de tração. No processo de descrição e caracterização deste movimento, Herbert utiliza os termos “perpetual motion” [2] e “catatonic” [3] para qualificar o que tinha vindo a observar em termos recentes. Embora os termos se apliquem em parte à máquina de transação do mercado artístico comercial, que sofreu naturalmente uma transformação abrupta, ambos os termos falam de uma ação contínua, despersonalizada, a partir da qual se subentende um prolongamento. Também neste domínio se reconhece a não-existência ou desvanecimento do que antes se encontrava presente, ou mais demarcado. Em 2007 ouvíamos outras vozes ainda mais implacáveis: “(…) art today, though it has disappeared, doesn’t know it has disappeared and – this is the worst of it – continues on its trajectory in a vegetative state.” [4] e ainda recentemente, em 2020, Odete Ferreira, artista portuguesa, afirmava “I know that art today has no impact and sometimes maybe it should be stopped (…)”. [5]

 

 

II - Manifestações

Uma das primeiras questões que Vítor Grilo Silva mencionou quando confrontado com a premissa aqui apresentada, foi a questão da operatividade dos objetos, ou a falta dela. Esta operatividade, “qualidade do que é operativo, do que está pronto para utilização”, é hoje escassa na relação que detemos com a produção artística. Falar de operatividade é falar de ativação, de ligações e relações estabelecidas, ou pelo menos da possibilidade de. Entre sujeitos e objetos, mas igualmente entre sujeitos e outros sujeitos. Operatividade pode facilitar uma interação bem como uma cooperação, sendo que existem operações e espaços que só podem ser alcançados ou ativados, coletivamente. Esta operatividade pode assim ser, a arena das ações e relações.

Pensar segundo a perspetiva da operatividade, significa pensar de forma distinta das heranças que nos chegam. Heranças que determinam modos específicos de interação e de execução. Heranças que definem como determinadas aproximações devem ser feitas, como certas interações devem acontecer, e que construções, obras, objetos, trabalhos e projetos podem ser apresentados, ainda que dentro de uma narrativa que o contradiz e que tudo afirma contemplar. Olhar para esta questão a partir da perspetiva da operatividade permite-nos dar prioridade a um conjunto diferente de valores e objetivos, distintos das formalidades e preocupações utilitárias.

Utilizemos uma analogia: o processo de refinamento tende a concentrar e reduzir. A perpetuar e a repetir. Condição necessária à reprodução de um determinado conjunto de características. Esta repetição tende por sua vez a proteger e a sacralizar – processos expectáveis, simbióticos e mutuamente necessários. No entanto, a condição natural de uma edificação heterogénea, para além de uma contínua reprodução, necessita de uma resistência que procure assegurar que esta edificação se expande para lá de si mesma, evitando terminar-se, estabelecendo um equilíbrio entre expansão e preservação. Assim nos chegam heranças e legados.

No final de umas das suas obras mais recentes, McKenzie Wark dirige-se à importância de spoken-only languages. Spoken-only languages são hoje, segunda a autora, substituídas por linguagens técnicas que passam a operar enquanto linguagens de produção. [6] As heranças que nos chegam são em grande parte linguagens tecnicistas, dotadas de imanência, que se sobrepõem a linguagens quotidianas, não-tecnicistas, não mecanizadas, o que se verifica dentro e fora do espaço artístico. No mesmo ano, 2019, Franco Berardi falava de algo semelhante quando se referia a automatismos tecno-linguísticos. Em “Futurability: The Age of Impotence and the Horizon of Possibility”, o autor focou-se nestes automatismos que, dizia, procuram automatizar todo o espaço de produção e cognição, simplificando relações sociais e substituindo atos afetivos. [7] Processos de automação e a tecnicização usurpam o espaço da cognição. Em ambos os casos, experiências de conjunção social são substituídas por conexões funcionais. [8]

Quer as linguagens não técnicas, quer este entendimento de operatividade, existem em oposição a uma redução ou fechamento – dos objetos, das relações que podem ser estabelecidas e da linguagem. Ambos estes aspetos, que prosperam no domínio do mundano (que é o do mundo), não se regem por um objetivo último de utilidade. Tal não significa que toda a tecnicização seja inerentemente negativa, mas sim que a dispersão global de linguagens estritamente técnicas, uniformiza e limita. Contrariamente, Vítor demonstrou-se mais interessado numa noção de aproximação, de cuidado e afetividade, de languages of care – hoje tão obviamente fundamentais e necessárias de serem de priorizadas – dentro da sua prática.

Este conjunto e desenvolvimento de fenómenos ao longo do decorrer histórico, impedem uma certa “penetração no objeto”, ou uma forma “de aceder objetos”. Constituem e confluem por isso num enquadramento segundo o qual se estruturam modos pré-determinados e tendenciosos de leitura, perceção e relacionamento. Não se trata de “acessibilidade, mas do acesso aos objetos” que poucas vezes acontece, e quando acontece nem sempre é da forma mais interessante. Este enquadramento gera, naturalmente, um saber e uma referencialidade – fundamentais para um processo de desenvolvimento e edificação – que podem criar, simultaneamente, uma “herança sacra” difícil de se manusear.

Esta é uma generalização complexa, mas não há nestas heranças uma negação de entretenimento? “As pessoas andam mal, as pessoas andam tristes.” Onde está a energia, onde está a alegria?! “Todas as investigações são vãs se não anseiam a alegria” recordava Vítor ao citar uma frase do projeto “reciprocity” de Diogo Branco e Helena Carneiro.

E aqui, Vítor falou-me do mistério enquanto prisma para pensar. Neste caso mistério pode, e talvez deva, ser pensado e equacionado a outras palavras, como magia, ritual, ou até a não-saber. No decorrer das conversas que tivemos sobre esta problemática, por mais do que uma vez procurou-se considerar o tópico de insuficiência em relação a outros tempos (outras relações e linguagens), que acabou por desaguar no espaço do ritual e mito. O ritual primordial opera a partir da dança, da magia, do trânsito, da fruição, da diversão e de um outro tipo de pedagogia. “O que é que aconteceu ao mistério?” – perguntava-me Vítor Silva. O mistério foi “uma pulsão que se perdeu”, mas uma relação “que pode ser refeita”. Conceber a magia ou o mistério como metodologia, poderá parecer ser uma conceção descabida, mas não mais descabida do que achar que não existe qualquer tipo de insuficiência no espaço da produção artística, ou achar que o que vigora não precisa de qualquer ânimo, ou reconfiguração. O que se manifesta nesta sugestão de metodologia é, entre outras coisas, a necessidade de se considerar outras formas de relacionamento, não apenas, mas também, com uma produção artística. Uma outra forma de cada indivíduo preencher e ressignificar os signos com que é diariamente confrontado, uma outra forma de cooperação semântica. [9]

Quando falamos de insuficiência falamos de desapontamento perante algo, e de ficar aquém. Apenas porque um mecanismo subsiste não significa que este seja suficiente ou que cumpra as necessidades que dele são requeridas. Parece existir de facto uma mecanização, como dizia Martin Herbert, que mantém um certo nível de subsistência, mas uma subsistência que se tem vindo a revelar insuficiente.

Entre outras coisas, o que pode ter desaparecido ou ser insuficiente, pode ser o desaparecimento de um certo enlevamento advindo do ritual e do domínio da verdadeira Magia que se dá entre nós. Se falávamos de operatividade e manuseamento é porque ambas as ações partem de um desconhecimento perante o que está diante de nós, sendo em grande parte esse desconhecimento que motiva essa busca, e processo esse que pode ser reduzido com uma mecanização ou tecnicização da linguagem. Ou seja, é possível que esta insuficiência se relacione com um determinado grupo de dinâmicas e relações de sociabilidade, de interação e manipulação, mais até do que as próprias práticas em si.

Quando esta premissa foi apresentada a ambos os artistas e investigadores, procurei conjurar uma imagem de um futuro. Nesta imagem a produção artística existiria numa realidade de pós-escassez. Esta produção seria uma porção de um todo, que embora detivesse uma linguagem individual, conservaria um vínculo a um corpo de produção global e expansivo. Fi-lo de modo a que, através da delineação de um cenário idílico, ao colocá-lo em confronto com a imagem de uma atualidade, pudéssemos de alguma forma obter o espaço negativo, o espaço em falta, o elemento que perpetuava essa insuficiência. Esta imagem conjurava a representação uma ponte, construída de modo coletivo e colaborativo.

Diana Geiroto começou por se dirigir a um aspeto que estava implícito a toda esta questão, mas que ainda não tinha sido abordado: a violência da palavra insuficiência. Há nesta uma noção “de défice, de uma inabilidade, que aparenta ser da ordem do irreversível”. Sendo todos nós agentes intervenientes no contexto artístico, esta premissa põe em causa e questiona não só a nossa área de trabalho, como todo o investimento que, por nós, nele foi feito. Este questionamento parece-me importante.

Embora reconhecendo que “há qualquer coisa desaparecida”, a artista procurou refutar, ou apresentar uma perspetiva distinta, mais otimista. A produção artística “(…) acontece, manifesta-se, independente do que está em falta ou (…) por causa do que está em falta, ainda que não da mesma forma.” Esta insuficiência não estaria na produção, mas em torno dela.

A artista introduziu um aspeto fundamental, a componente temporal. “Gosto de pensar que num plano mais abrangente esta dissolução, ou desaparecimento, é expansiva: que não determina um fim, que as forças tendem à agregação, que tendem depois à desintegração, e que voltam a uma outra formulação reconfigurada. Talvez esta ideia seja mais uma forma ingénua de crença na imortalidade. Numa macro-escala, reconheço o presente fluxo desagregador, no qual entendo a libertação do objeto rumo à tecnicização dos modos de estar e de fazer, dos quais não vislumbro um fim. Em micro-escala, o fluxo reverte a cada momento, nunca se fixando mais do que um breve instante. Então, a dificuldade parece ser a forma dual como se percebe a cadência da transmutação dos processos. Por outras palavras, estamos demasiados distantes no tempo para ouvir imediatamente o eco e temos demasiada pressa para ficar à espera do seu retorno.”

Esta observação considera a natureza faseada, de uma transformação. Sugere até uma resposta para este problema no sentido em que o que denominamos de insuficiência pode ser uma fase necessária de um decorrer, de um processo de atualização. Mais – relembra-nos que a componente temporal determina como é que nos apropriamos ou conhecemos certas coisas.

De forma diferente, esta possibilidade foi articulada anteriormente com os dois anúncios formais do fim da Arte, na primeira metade do séc. XIX e em 1997, que reconheciam, na verdade, a necessidade de uma adaptação e reestruturação da produção artística. Baudrillard reconfigura o tópico em 2007 embora insista numa ideia semelhante, a partir de uma noção de desaparecimento, mais próximo do que aqui abordamos. Em “Why Hasn’t Everything Already Disappeared” o autor afirma: “At any rate, removing meaning brings out the essential point: namely, that the image is more important than what it speaks about – just as language is more important than what it signifies.“

Analogamente, também a produção artística e cultural é mais importante do que a sua insuficiência. O reconhecimento de um desaparecimento que se repete, recupera uma ideia de devir e remete-nos para uma espécie de eco. Levada ao extremo, poderíamos afirmar que o que tem vindo a acontecer tem sindo um gradual reconhecimento de uma progressiva insuficiência, como um eco, mas invertido, que se torna mais forte, definido e recorrente à medida que o tempo avança.

Eco foi também uma das palavras que surgiu mais do que uma vez em conversa com a artista. O eco lida com o tempo que determinada onda de som leva a dissipar-se e a decair, à medida que vai sendo gradualmente refletida a partir de outras superfícies. O eco lida por isso com o processo da cognição, da apreensão de informação no tempo, e com a decomposição e dissipação de dita informação.

“Tudo tem de chegar a toda a gente”, parece ser uma preocupação geral. Estender o eco ao máximo, na menor quantidade de tempo possível. Aqui a falta de tempo determina também um conjunto de possibilidades, do que é permitido que a produção artística seja e faça. Ademais, “como chega nem sempre é tão valorizado como a quantas pessoas chega”. Aqui voltamos, entre outros aspetos, à aproximação e afetividade, que são suplantadas e justificadas pela falta de tempo. A falta de tempo (quer de uma escassez, quer de um excesso de estímulos) condiciona, quer uma produção e contribuição ponderada, quer a possibilidade de interação de quem se procura relacionar com essa produção. Em ambos os casos, parece hoje ser fácil confluir num “lack of engagement”. Diana Geiroto disse que “Ao mesmo tempo que se abrem espaços que se configuram noutras dimensões do fazer e do pensar a produção, que surgem em grande medida da proliferação de veículos mediais, abrem-se paradoxalmente lugares-velados, tão intransponíveis na sua sobreposição quando fáceis de percorrer. Não serão, tão-pouco, estes lugares a problemática, mas antes o quão facilmente nos habituamos a não precisarmos de os perscrutar, como se um reflexo fugaz fosse o suficiente para captar os seus trânsitos. Em que momento se tornou suficiente conhecer uma evocação do trabalho e não o mesmo, uma referência a uma referência já ela mediada? Em que momento se tornou irrelevante a aproximação, aconteça ela da forma que for? Em que momento deixou o lugar de ser pensado como coisa em si e passou a ser alternativa facilitadora a outra? Em que momento deixou de ser necessário ver o todo e de estar na íntegra?”

Uma falta de tempo, apenas permite uma relação limitada. A quantificação numérica, lucrativa, produtiva da relação com o trabalho, limita ainda mais a relação que é feita com a produção. Com isto não se pretende classificar tais componentes como acessórios, mas constatar que esta atitude circunscreve e delimita. O que pode ser realmente insuficiente são as soluções fáceis, ou uma insuficiência até do próprio pensamento que apenas permite a subsistência tépida de todo este mecanismo artístico e cultural. O que é realmente insuficiente, pode ser o facto de se “considerar a suficiência suficiente”. Esta foi uma das últimas frases proferidas por Diana Geiroto e uma das ideias às quais mais vezes voltei.

 


III - Promessas

Em tempos foram-nos prometidos avanços exponenciais. Avanços esses que não se concretizaram e acabaram inevitavelmente por gerar uma sensação de engano e deceção. [10] Há uma “insuficiência de representação” do que imaginaríamos ser possível, mas que ainda não o é, que alimenta um crescente desapontamento. David Roodman deixou recentemente claro que as promessas de abundância patentes nos vetores exponenciais (neste caso específico, de previsão económica) são frequentemente uma ilustração e um resultado de um sinal de instabilidade que se encontra subjacente a estes vetores exponenciais. [11] Essa exponencialidade que advém frequentemente de uma incapacidade de ler ou prever certos dados para lá de um determinado momento, e é por isso, em parte, uma exponencialidade especulativa. Tais previsões são úteis. Particularmente úteis se forem lidas e interpretadas enquanto respostas que resultam da emergência de elementos que aparentam ser transformadores e revolucionários, e que alimentam um horizonte de possibilidades, supostamente sem fim. Tais previsões informam uma imagem de um futuro continuamente próspero. No entanto, esta imagem é construída por projeções de exponencialidade “que devem ser lidas enquanto indicadores de uma tendência, a longo prazo, da divergência de sistemas humanos” [12] e que, acima de tudo, não se desenvolvem automaticamente de acordo com percursos pré-determinados, como em tempos nos foi sugerido. [13] Ao contribuírem para o mito de uma realidade quimérica, a expectativa de um mito quebrado, resultante desta divergência e instabilidade, que é a base da nossa realidade (olhemos para o momento que estamos a viver), traduz-se numa deceção perante a ausência de representações e possibilidades que acharíamos já serem possíveis, mas que não vemos à nossa volta. É possível que deceção se transforme num sentimento de insuficiência, da mesma forma que é possível que tal sentimento seja resultante de expectativas, mitos e promessas quebradas.

O momento que habitamos é caracterizado por uma preocupação quase analítica com respostas e soluções. “Existem tantas instituições que se formam nesta disciplina e nós com medo de arranjar soluções”. A análise aqui apresentada sucumbe em parte a essa necessidade, mas falha ao não encontrar soluções objetivas.

Discurso é percurso em vários sentidos, como aqui aconteceu. Através deste pretendeu-se, no mínimo, combater as “implacáveis consequências da inação”. [14] Começámos por pedir que se considerasse uma premissa.

Chegamos a este momento, pouco confiantes de que tal premissa seja apenas uma premissa e nada mais do que uma premissa.

Agradeço, por fim, ao Vítor Grilo Silva e à Diana Geiroto Gonçalves, observadores particularmente sensíveis para a minúcia das palavras e para a realidade que os rodeia, sem os quais esta investigação não teria sido possível.

 

 

 

 

Diana Geiroto
(Lisboa, 1991). Artista plástica, investigadora. Licenciada em Pintura na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e Mestre em Práticas Artísticas Contemporâneas na Faculdade de Belas Artes do Porto. Desde 2013, tem vindo a desenvolver e apresentar trabalho com particular foco no contexto de residência e em projectos de ocupação colectivos. O seu trabalho individual incide sobre prática, investigação e problematização objetual, material e de traduzibilidade. É investigadora do núcleo de investigação i2ADS e membro fundador da associação Erro Universal - Núcleo de Investigação. Paralelamente, tem vindo a colaborar enquanto produtora em diversos projectos nas áreas das artes plásticas e performativas. Atualmente vive e trabalha no Porto.
 

João Mateus
(1995, Castelo Branco). Investigador independente. Licenciado em Desenho pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa e Mestre em Práticas Artísticas Contemporâneas pela Faculdade de Belas-Artes do Porto. O seu trabalho incide no campo da Imagem e Teoria Visual. Tem artigos publicados no CITAR Journal, CITCEM, Interact e contribuirá com um capítulo para o livro “Archives in ‘Lusophone’ Film” a ser publicado. Participou enquanto orador convidado no V Colóquio Narrativa, Média e Cognição (2018), IJUP (2019), Groove the City (2020) e no Workshop Archives in Lusophone Film (2020). Redige uma coluna mensal dedicada ao comentário e crítica cultural no Jornal Badaladas.
 

Vítor Grilo Silva
(1993, Évora). Artista-investigador. Licenciado em Arte e Design na Escola Massana, Barcelona. A sua prática incide sobre problemáticas linguísticas e dinâmicas sociais, investigações associadas à operatividade das produções artísticas e legados coloniais. Co-fundador e co-editor da plataforma WETLAND. Tem vindo a publicar trabalho de forma independente deste 2018 e participado em exposições e trabalho coletivo desde 2017. Desenvolve e apresenta frequentemente trabalho em contexto colaborativo, aspeto basilar a toda a sua prática. Encontra-se presentemente a desenvolver um projeto de investigação sobre museologia e intimidade.

 

 

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Notas

[1] Graeber, D. (2012, março). Of Flying Cars and the Declining Rate of Profit. The Baffler.
[2] Herbert, M. (2020). COVID-19 Silenced The Artworld. What Happens When The Machine Starts Up Again?. ArtReview
[3] Herbert, M. (2020, 29 de setembro). What If Virtual Galleries Ruled The World?. ArtReview.
[4] Baudrillard, J. (2011). Why Hasn’t Everything Already Disappeared?. Calcutá: Seagul Books, p. 22.
[5] Sá, E. (2020, 10 de setembro). “Discourse on Identities Is Devoid of History even if Obcessed With It” An interview with Odete. Maat Extended.
[6] Wark, M. (2019) Capital Is Dead. Londres/Nova Iorque: Verso, p.156.
[7] Berardi, F. (2019). Futurability. The Age of Impotence and the Horizon of Possibility. Londres/Nova Iorque: Verso, p.159.
[8] Idem, p.116, 124.
[9] Marcos, M. L. (2001). Sujeito e Comunicação. Porto: Campo das Letras, p.59.
[10] O trabalho de Ray Kurzweil e o seu conceito de singularidade são particularmente relevantes para esta questão. Este mesmo aspeto já foi, no entanto, abordado por David Graeber no ensaio “Of Flying Cars and the Declining Rate of Profit”, e por David Roodman no ensaio “Modeling the Human Trajectory”. Aaron Benanav dirigiu-se também recentemente a esta questão em “Automation and the Future of Work”.
[11] Roodman, D. (2020, 15 de junho). Modeling the Human Trajectory. Open Philanthropy.
[12] Ibid.
[13] Benanav, A. (2020). Automation and the Future of Work. Londres/Nova Iorque: Verso, p.40.
[14] Langley, P. (2020). Sounds Like the End of the World.