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PARA UMA GEOSOFIA DAS EXPOSIÇÕES GLOBAIS. CONTRA O SAFARI CULTURALLUÍSA ESPECIAL2006-11-03Num momento de grande fervor pelo imediato e pelo culto do espectáculo, as bienais e feiras de arte são um trunfo para os interessados pelas questões da arte mais atentos: através destas é possível tomar contacto com as novidades do mundo da arte (obras, artistas, comissários), avaliar as cotações de mercado dos novos artistas, rever as posições dos veteranos e assistir aos eventos paralelos (conferências, concertos, performances). São, em igual medida, um trunfo para os artistas: é lá que são caçados pelos curadores, galeristas e coleccionadores e é lá que os contactos ao mais alto nível se tecem. Com a internacionalização das carreiras, é nas feiras e nas bienais que os curadores fazem o trabalho que tem vindo a substituir as visitas aos ateliers dos artistas. O problema é que desta forma se corre o risco de os curadores, qual tribo nómada, passarem a fazer a sua pesquisa exclusivamente a partir do que vêm nas feiras. Estes eventos são um concentrado de glamour, que alguns chamam ironicamente de vanity fairs em vez de art fairs (1), e que cada vez mais tendem a atravessar os quatro cantos do mundo. É aí onde todos os artistas querem estar, onde todos os curadores devem estar e nas quais o visitante comum não tem meios para poder estar. Sendo iniciativas de cariz essencialmente económico são animadas, na teoria, por artistas e comissários e, na prática, por vendedores e compradores. Não são, por conseguinte, o cenário ideal para contemplar as obras de arte no sentido museológico mas sim para observar o que ditam as leis do mercado da arte em dado momento. O aparecimento ou desaparecimento destas, as suas oscilações, correspondem às oscilações do mercado da arte. Para um visitante desprevenido, nas feiras, a ausência de um fio condutor que ligue as obras de arte soará a uma mera indexação de artistas. No caso das bienais o facto de se procurar que exista uma ligação entre as peças exibidas trata-se de uma luta por manter uma identidade coerente. Ambos os casos são exemplo de contextos de grande escala superpovoados e que são a encenação perfeita para a crítica: centenas de obras equivalem a centenas de escolhas de um comissariado individual ou de grupo reduzido sobre um panorama à escala global. Para as cidades acolhedoras o lucro pode ser imenso: a nível do turismo, do comércio, da projecção de uma imagem externa sólida, e, strictu sensu para a dinamização do circuito das artes. A efemeridade destes acontecimentos acentua o factor de histeria que precipita multidões num dado espaço de uma dada cidade numa determinada altura do ano. A geografia e o cronograma das bienais tradicionais são bem conhecidos por quem se movimenta nestes circuitos. A rivalidade mantém-se entre a veterana Bienal de Veneza (desde 1895) e a sólida Documenta (desde 1955), que se realiza de cinco em cinco anos. Estas foram criadas com objectivos distintos e a sua esfera de inserção nas cidades que as albergam são igualmente diferenciadas: Veneza é uma cidade com uma animação cultural de proa (apesar da Bienal ser criticada por não ter ligação à cidade) e Kassel tem por propósito fundamental a realização da Documenta. Também em termos económicos os pontos de partida são distintos: Veneza em 2003 teve cinco milhões e meio de euros de orçamento, metade do orçamento da bienal alemã. Em termos de planificação, em Veneza a margem de preparação foram, no mesmo ano, dezoito meses, enquanto que em Kassel são habitualmente cinco anos. Destas assimetrias resultam, naturalmente, outras assimetrias. O papel das bienais periféricas da década de 90 é exaltado por Hans-Ulrich Obrist (2) por terem ajudado uma nova geração de artistas provenientes de diferentes backgrounds culturais a ganharem visibilidade internacional. Para além disso, o sucesso de algumas destas exposições fora dos centros levou à construção de estruturas permanentes dedicadas à actividade expositiva nesses locais. A este quadro têm-se vindo a somar tantas dezenas de outras de bienais e de feiras, perfazendo actualmente muitas dezenas. A chamada “exposição global” tem vindo a ser debatida pela questão dos centros e das periferias, e pelo repto de dar visibilidade não só à arte Eurocêntrica. Deste espírito nasceram a já mítica exposição “Magiciens de la Terre” em 1989 no Centro Pompidou comissariada por Jean Hubert Martin, apontada como ponto de partida para abordar a questão da globalização como mote das exposições de grande escala. Seguiram-se, entre outras, as Documenta 10 e 11, a primeira que abordava a globalização sob o ponto de vista das questões urbanas e a segunda, comissariada por Okwui Enwezor. Esta última acentuou o valor do local e da diferença e teve cinco plataformas de debates (Lagos, Santa Lucia, Berlim, Nova Dehli e Viena) que culminaram em Kassel. Nesta busca do “outro”, corre-se o risco de cair em terrenos ardilosos: na questão do “safari cultural” (3), na necessidade de cumprir uma fachada politicamente correcta de harmonia entre as nações de um mundo mais ou menos globalizado. No presente, existem bienais com orientações diversas como a Manifesta, que não tem cidade fixa e que se realiza desde 1996, a Bienal de Liverpool, que ainda que europeia selecciona frequentemente curadores de diversas proveniências (este ano Gerardo Mosquero de Havana e Manray Hsu de Taiwan), as bienais de Berlim, de Moscovo, de Lyon, de Santa Fé, de Joanesburgo, de Tirana, de Istambul (desde 1987), de Singapura, de Xangai (desde 1996), de Dacar, de Luanda, do Cairo, de Havana (que na edição de 1991 se concentrou na arte de países do Terceiro Mundo), a Bienal de Sydney (desde 1973) e as Trienais de Fukuoka Asia Pacific, Yokohama e Nova Deli (desde 1968), Beijing, Singapura, Gwangju, entre tantas outras. O conceito geopolítico mantém-se como tópico de aceso debate no seio das bienais, tanto nas publicações, como em performances e conferências (4), mas também noutros campos da prática artística como na programação: a esse respeito lembramos que a vindoura 27ª Bienal de São Paulo excluiu da sua programação as denominadas Representações Nacionais, medida que reflecte um desejo de maior autonomia face às escolhas dos artistas fora de uma matriz estritamente geográfica. Da mesma forma, na aquisição de uma nova colecção, já não se pode ignorar esta evidência. Basta atentarmos no texto de Manuel E. González e de Alexandre Melo na abertura do catálogo da Ellipse Foundation: “The Collection is global in principle, neither excluding nor favouring any particular cultural area of specific location, any particular cultural or geographical area. Devoted as it is to multiple differences and intensive aesthetic arguments, there are no geographical quotas. It pays homage to diversity as the lodestar of contemporary art, honouring openness of spirit and multi-culturalism in broad-ranging forms” (5). Se estes valiosos propósitos são ou não cumpridos na organização das bienais, das ferias, das colecções institucionais, é algo a que devemos estar vigilantes, para que sob a máscara discursiva não se iluda a visão da realidade. O recente caso de Miami Basel é o exemplo de uma localidade com grandes meios financeiros e infra-estruturas sólidas como um aeroporto internacional, um grande porto, uma capacidade hoteleira de destaque, uma cena artística viva, coleccionadores empreendedores e um espaço expositivo situado perto da praia. Mas quanto a esta perspectiva geopolítica, note-se que no ano de 2003 metade das galerias representadas era americana. Também nos Estados Unidos, mas na outra costa, apontamos a PERFORMA, que se estreou em Novembro de 2005. Tem por palco a cidade de Nova Iorque e entrou directamente para o calendário das grandes bienais. Numa cena artística nova-iorquina ainda abatida pelos acontecimentos de 2001, esta bienal foi louvada como momento de união. Trata-se de um novo tipo de bienal à escala mundial, alicerçado na performance e extensível às áreas que esse conceito dilatado engloba, como a música, a dança, o cinema. Assim, o subtítulo da bienal é genericamente designado de Primeira Bienal das novas Artes Visuais. Esta bienal nasce com um objectivo muito claro: traçar uma revisão da História da Arte do século XX e recolocar a performance na génese da arte contemporânea e dos trabalhos de artistas como Yves Klein, Marcel Duchamp, Rebecca Horn e Marina Abramovic. Na sua passagem por Portugal no início deste mês, a historiadora de arte e curadora RoseLee Goldberg, directora deste evento, aproveitou a ocasião para promover a PERFORMA. Com esta acção, RoseLee Goldberg afirma procurar não só ressuscitar a memória das performances como também o espírito a que se dispunha um espectador de uma performance nos anos 70, que por vezes duravam muitas horas (e por vezes apenas uns minutos como na emblemática peça “Shoot” de Chris Burden, que dura o tempo do disparo de uma bala de uma pistola). Desse estado de espírito de disponibilidade fala a performance de Marina Abramovic, “The House with the Ocean View” (2003), que durou doze dias e as noites correspondentes, e que viveu da presença do espectador na galeria e do contacto visual daquele com a artista. A artista participou em 2005 e voltará a participar na edição de 2007 com outras peças que não a referida. Essa sua ênfase na presença física é também uma das linhas de apresentação da PERFORMA. E uma vez que iniciámos com as perspectivas acerca do que representam genericamente as bienais e feiras de arte para os curadores, galeristas e coleccionadores, transcrevemos aqui, para finalizar, um excerto do relato calamitoso da experiência da artista Martha Rosler nas suas participações em exposições de grande escala: “My experience in Documenta had already prepared me to know that these shows have something in common with childbirth. No matter how often you are warned, you can never be prepared for the enormity of the labor” (6). Luísa Especial Investigadora na área da arte contemporânea NOTAS (1) Richard Flood, director do centro de exposições do New Museum of Contemporary Art, Nova Iorque. Apreciação feita durante o debate “The Global Proliferation of Private Museums and its Implications”, 14/10/2006 na Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva promovido pela Ellipse Foundation. (2) Tim Griffin (introd.), James Meyer et alii, “ Global Tendencies: Globalism and the Large-Scale Exihibition” in Jack Bankowsky (ed.), Artforum, XLII, nº3, November 2003, p. 162. (3) Expressão utilizada por Francesco Bonami, na qual um curador se passeia pelo mundo em busca do seu artista exótico, como se este se tratasse de um souvenir contemporâneo. Em Tim Griffin (introd.), James Meyer et alii, op.cit. , p. 162. (4) Ver programa de debates organizado pela ArteCapital para a Arte Lisboa 2006, no qual Isabel Carlos irá moderar o debate acerca do tema Trabalhar a dicotomia periferia-centro. (5)Ellipse´s Elipsis, Manuel E. González e Alexandre Melo no livro publicado pela Ellipse Foundation por ocasião da exposição inaugural “Open House”. (6)Tim Griffin (introd.), James Meyer et alii, op.cit. , p. 155. Sites de algumas bienais menos conhecidas: Bienal de Dakar www.dakart.org Bienal de Beijing www.bjbiennale.com.cn/english/introduction.asp Bienal de Lyon www.biennale-de-lyon.org/bac2005/angl Bienal de Gwangju www.gwangju-biennale.org/eng/news/news_view.asp?n=77 Bienal de Singapura www.singaporebiennale.org/ Bienal de Xangai www.shanghaibiennale.org/english/homepage.html Bienal de Istanbul www.iksv.org/bienal/english/index.asp Bienal de Tirana www.ganahl.info/tirana.html Bienal de Havana http://www.bienalhabana.cult.cu/ PERFORMA www.performa-arts.org/ |