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A AUTORIDADE DO AUTOR - A PARTIR DO TRABALHO DE DORIS SALCEDO (SOBRE VAZIO, SILÊNCIO, MUDEZ)FILIPE PINTO2012-01-161. Antes de entrarmos na grande nave do CAM, ainda na antecâmara, podemos ler um texto de apresentação da própria Doris Salcedo; a artista começa por se referir à morte violenta de mais de dez mil jovens num período de vinte anos na cidade de Los Angeles; mais à frente estabelece uma relação com o que se passa na sua Colômbia natal. E continua, em ‘Plegaria muda’ procuro articular diferentes experiências e imagens que formam parte da natureza violenta do conflito colombiano. Também pretendo conjugar uma série de eventos violentos que determinam a imparável espiral de violência mimética e fratricida que caracteriza os conflitos internos e guerras civis em todo o mundo. ‘Plegaria muda’ procura confrontar-nos com o pesar contido e não elaborado, com a morte violenta quando reduzida à sua total insignificância e que faz parte de uma realidade silenciada como estratégia de guerra. [1] Por fim acaba por falar mais especificamente no assassínio contínuo de mil e quinhentos jovens pelo exército colombiano. Durante meses, Salcedo acompanhou um grupo de mães no reconhecimento das valas reveladas pelos assassinos. ’Plegaria muda’ é uma tentativa de elaboração desse luto [dessas mães], um espaço demarcado pelo limite radical imposto pela morte. Um espaço fora da vida, um lugar à parte, que recorda os nossos mortos. [2] 2. É comum sentir-se um desconforto, uma desconfiança, quando se percebe que um artista tem algo específico a dizer com a sua obra, tem uma mensagem (embora talvez pior seja o que se passa quando se intui que o artista não quer dizer nada, não tem nada para dizer). Aquele texto de apresentação possui um carácter de advertência – antes de termos acesso à peça propriamente dita, Salcedo adverte-nos quanto ao significado do que vamos ver e experimentar; é um aviso, uma recomendação, uma orientação. O que vão ver quer dizer isto; o artista fala o que a obra quer dizer; o artista fala aquilo que a obra na verdade não diz, aquilo no qual ela é muda. Nada em Plegaria muda nos liga aos acontecimentos de que nos fala Salcedo. Mas mais importante ainda é o facto de o espetador não precisar de ter conhecimento da intenção da artista para aceder à obra – aquela advertência não é a explicação da obra, mas apenas a explicitação da intenção da artista. Existem peças que necessitam que seja disponibilizado um acesso – geralmente um texto – do artista ou de um interlocutor; outras funcionam melhor livres de determinações a priori; outras ainda funcionam no espaço que é proposto entre a obra em si e o seu título – é conhecida a estratégia, por vezes entre a obra e o título não existe relação aparente, e nesse intervalo de incerteza e desconhecimento estabelece-se um espaço de liberdade e investigação, dúvida e perturbação, um espaço que potencia a obra. 3. Plegaria muda não parece necessitar da determinação que a intenção da artista impõe. O carácter mortuário, o silêncio recolhido invocado no próprio título da peça, a terra fértil, o formato de cada elemento, com as medidas próximas de um corpo humano deitado, inerte – é comum no trabalho de Doris Salcedo o uso de objectos que têm uma relação intrínseca com o corpo, tais como mesas, cadeiras, camas, sapatos –, todas estas características ligam-nos imediatamente à experiência incómoda de um cemitério fora do lugar, inapropriado, desterrado, absurdo. A erva a crescer por cima destes túmulos – crescer é afastar-se da terra – lembra-me que a vida toca a morte na superfície da terra – no enterro e no plantar; lembra-me que plantar é também enterrar; que é na terra que uma semente esplende e que um corpo desiste [3]. Plegaria muda pode ser sobre aquela linha ténue onde a vida e a morte se confundem, como na vivacidade histérica do peixe acabado de apanhar – parece mais vivo que nunca e no entanto já quase morto. E como escreve Salcedo no final daquela advertência, Espero que, apesar de tudo, e mesmo em condições difíceis, a vida prevaleça… como sucede em ‘Plegaria muda’, porque na verdade, regar uma planta – o que certamente acontece no CAM –, é confiar no futuro; regar é um acto de esperança. Doris Salcedo tenta sempre resgatar para a leitura do seu trabalho um sentido político, na sua acepção mais vulgar – trata-se quase sempre de uma espécie de espartilho semântico; tenta ligar cada peça a um facto mais ou menos específico, a uma injustiça, uma tragédia infligida, uma catástrofe humana, mas nesse movimento acaba por constranger e restringir, delimitar e dirigir a leitura do espetador, e essa sim, é uma atitude explicitamente política, de exercício de poder, de autoridade. 4. Lembremos entretanto outras duas famosas instalações de Salcedo – Shibboleth, na Tate Modern em 2007 e a peça para a Bienal de Istambul em 2003 – também visíveis em fotografias no CAM. Apesar da monumentalidade característica, o silêncio e o vazio são presenças recorrentes no seu trabalho, inclusive em Plegaria muda – as coisas vegetais crescem sempre em silêncio. O vazio não é o nada total; tal como o silêncio é constituído por rumores, murmúrios, ruídos surdos, nem que sejam os produzidos pelo nosso próprio corpo, o vazio transporta sempre uma carga, que pode ser uma memória, um passado, um desejo, uma premonição; o vazio é um contentor. Um vazio nunca está vazio; o vago é algo pronto a ser ocupado, como uma cadeira vaga, quer dizer, livre. Deixar abertos os espaços vazios: essa seria a mais elevada das artes [4]. O vazio é também o espaço para pensar – não levantamos nós a cabeça quando queremos pensar ou desenterrar algo esquecido? não olhamos nós para cima, para o céu vazio, para o sítio onde nada há que nos possa dis-trair? Para a Bienal de Istambul de 2003, Salcedo empilhou cerca de mil e quinhentas cadeiras num vazio entre dois prédios (as cadeiras restituíam, com precisão, a linha das fachadas contíguas); aquele quarteirão desdentado lembrava-nos que faltava ali algo – um vazio é sempre entendido como falta ou resultado de uma perda. Quando esquecemos algo, quando por exemplo não nos lembramos de uma palavra, sentimos o vazio que ela deixou na nossa fala; quando esquecemos algo como uma palavra, sabemos no entanto que ela existe; temos por assim dizer acesso ao espaço que ela ocupou, ao espaço vazio que entretanto deixou; no esquecimento temos um acesso privilegiado ao vazio. No trabalho de Doris Salcedo há uma luta explícita contra o esquecimento – Salcedo diz mesmo preferir a palavra memorial em vez de monumento –, mas sempre contra o esquecimento de algo muito específico; no caso desta instalação, a artista queria referir-se ao terror das migrações no mundo global. A recordação tem a grande vantagem de começar com a perda, por isso é mais segura, já que nada tem a perder. [5] 5. O resultado do esquecimento é, como vimos, o silêncio, a palavra que falta, que falha; as palavras acotovelam-se na boca do mudo, e de lá não saem incólumes. O silêncio só existe no vazio mais radical; é nas alturas que o silêncio se esconde, é onde o ar rareia, onde encontra o vazio pleno e o som se perde; e quanto mais alto, já fora da atmosfera, aí se percebe que o som é ar, na ausência deste, o outro não existe. Temos assim a equação do silêncio: - altura + ar = som; + altura - ar = silêncio. O silêncio é o som asfixiado. A fala, a voz, parasita o ar da respiração [6]. A mudez é também um vazio, um silêncio, uma ausência. Porque falamos nós? porque possuímos uma boca incompleta (Ramos Rosa, creio); isto é, porque o nosso corpo está incompleto. Mas é também o vazio da boca que permite a fala, porque a fala perde-se no meio da mastigação. Lugares do silêncio, cemitérios; jardins e bibliotecas. O final do dia; o dia acaba em silêncio; o sono ganha peso em relação ao som. O silêncio é como um pano húmido: ele retira o pó sem o fazer voar. [7] 6. Em Shibboleth (Tate Modern em 2007), Salcedo instalou uma racha – manufacturada no seu atelier na Colômbia, aliás como todas as suas peças – ao longo de toda a Turbine Hall – numa visita prévia Salcedo notara uma fissura no chão cinzento e esse foi o pormenor que desencadeou toda a intervenção. Aquela racha era em tudo semelhante às produzidas pelos terramotos – Salcedo e a sua equipa estudaram o desenho e configurações de rachas produzidas por esses eventos naturais. Ao contrário da intervenção em Istambul quatro anos antes, aqui a artista não ocupou um espaço vago, sublinhando-o, mas antes criou precisamente um vazio. Segundo a artista aquela fractura manufacturada representaria a cisão entre o norte e o sul, entre brancos e não brancos, imigrantes e cidades cosmopolitas, primeiro e terceiro mundos. Uma falha no mundo – como o silêncio –, ou onde o mundo falha. “Shibboleth” é um costume, frase ou linguagem que atua como um teste de pertença a um grupo ou classe particular; retirada de uma história bíblica, “shibboleth” era utilizada como palavra-passe – quem a soubesse dizer com o sotaque certo poderia passar para a outra margem do rio, para a margem segura. A racha ficou marcada no pavimento da Turbine Hall, para sempre, como uma cicatriz. 7. Cemitério, valas, rachas, buracos entre prédios, vazios e silêncios, memória, recordação e esquecimento, são claros os traços característicos do trabalho fértil de Doris Salcedo; mais fértil ainda se conseguirmos ter acesso a ele apesar das intenções explícitas da artista. No entanto, nada deverá proibir um artista – qualquer pessoa – de se expressar livremente; nada deverá inibir um artista de falar sobre a sua intenção ao criar uma determinada peça – a intenção é um direito de autor. Doris Salcedo fala sobre o significado das suas obras porque se trata do fundamento das mesmas, a sua razão de existência. A obra de arte disponibiliza um acesso ao sítio a partir do qual o artista vê o mundo. O que acontece é que os textos que se escrevem sobre o seu trabalho repetem inevitavelmente as suas intenções, numa obediência à voz da artista, repetem-se em mise en abyme; o que acontece é que a abordagem ao seu trabalho se dá acriticamente – lemos que Shibboleth é sobre racismo, que Plegaria muda é sobre jovens colombianos mortos pelo exército do seu país, mas nada disso é patente nas peças; esse significado específico é dado apenas pela intenção da artista. O que acontece comummente é que esses textos demonstram uma espécie de ventriloquismo, quer dizer, demitem-se de uma posição crítica mexendo apenas a boca para re-citar as palavras do artista; muitos textos não passam portanto de folhas de sala; e assim o significado do trabalho vai-se sedimentando em algo que lhe é exterior. Sem aquele texto prévio seria possível dizer que Plegaria muda se trata de uma obra política? – A morte é sempre política; a morte representa sempre um acesso que já não existe, um possível para sempre negado. 8. Salcedo diz que chega sempre tarde, sempre depois, chega quando o acontecimento já passou. É talvez por isso que o silêncio se instala nas suas peças; o silêncio instala-se sempre depois da tragédia – é comum as vítimas de terramotos ou acidentes de viação relatarem o súbito silêncio, a paragem do tempo, a lentidão dos poucos movimentos que se seguem ao reboliço trágico; lembra os movimentos num ambiente aquático – com os ouvidos inundados, reconhecemos o som interior da respiração. Parece que a realidade abranda – devém devagar –, e depois do acontecimento trágico precisa de ganhar fôlego, e só o faz na ausência de som e de gestos – o gesto altera a posição do ar; produz ruído. Memoriais silenciosos, de um terramoto (Tate), de um desmoronamento (Istambul), de um enterro (CAM). Chegamos nós também sempre depois; não testemunhas mas sobreviventes; mas ao explicitar a intenção, Salcedo parece querer o contrário – transformar o espetador em testemunha. 9. E como pode o espetador escapar à leitura daquela advertência inicial em Plegaria muda? Se atrás falámos de crítica, aqui podemos pensar a questão curatorial; aquele texto prévio empobrece a leitura da instalação? afunila as possibilidades do espetador, torna menos profunda, com menos camadas possíveis, a própria peça? A experiência do espetador é polida por aquele texto? é, por assim dizer, arredondada? Não se trata aqui da morte do autor e do nascimento do leitor; como já se disse, existem obras que necessitam impreterivelmente de uma porta de acesso, mas esse não parece ser o caso do trabalho de Doris Salcedo. Existem sempre intervalos ínfimos e incertos entre fornecer toda a informação ao espetador e ser paternalista e autoritário, ou entre não disponibilizar nada e deixá-lo perdido ou livre. Finalmente, esta parece ser uma exposição ideal para pensar também a responsabilização do espetador (já aqui se escreveu sobre isso mesmo) [8]; cada um decide se para si é o autor que determina o que uma obra é ou sobre o que trata; se se sente livre para pensar ou se se deixa constranger por informações alheias. Pensar enfim, se na era da informação fácil e imediata o espetador se mostra mais ou menos emancipado. Filipe Pinto NOTAS [1] Doris Salcedo, Plegaria muda. Lisboa: Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. [2] Idem. [3] To get born, your body makes a pact with death,/ and from that moment, all it tries to do is cheat, excerto de “A Slip of Paper” in Louise Glück, A Village Life. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2009. [4] Peter Handke, Phantasien der wirderholung, tradução minha da versão espanhola, Peter Handke, Fantasías de la repetición. Zaragoza: Prames, 2000, p. 42. [5] Søren Kierkegaard, A repetição. Lisboa: Relógio d’Água, 2009, p. 37. [6] (…) imediatamente os pulmões que expelem e chamam o ar, e a voz humana que parasita a expiração (…), in Pascal Quignard, A vida secreta. Lisboa: Editorial Notícias, 1999, p. 226. [7] Idem, p. 55. [8] Filipe Pinto, “Para uma crítica da interrupção” (nomeadamente a partir do ponto 8), in Artecapital, www.artecapital.net/opinioes.php?ref=93 |