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OPINIÃO


Doris Salcedo, Plegaria Muda, 2008-2010.


Doris Salcedo, Istanbul Project, Bienal de Istambul, 2003.


Doris Salcedo, Istanbul Project, Bienal de Istambul, 2003.


Doris Salcedo, Shibboleth, Turbine Hall (Tate Modern), 2007.


Doris Salcedo, Shibboleth, Turbine Hall (Tate Modern), 2007.


Turbine Hall (Tate Modern) depois de Shibboleth.


Turbine Hall (Tate Modern) depois de Shibboleth.

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ANA CRISTINA LEITE

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2016-10-03
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MARIA LIND

2016-08-31
NAZGOL ANSARINIA – OS CONTRASTES E AS CONTRADIÇÕES DA VIDA NA TEERÃO CONTEMPORÂNEA

LUÍS RAPOSO

2016-06-23
“RESPONSABILIDADE SOCIAL”, INVESTIMENTO EM ARTE E MUSEUS: OS PONTOS NOS IS

TERESA DUARTE MARTINHO

2016-05-12
ARTE, AMOR E CRISE NA LONDRES VITORIANA. O LIVRO ADOECER, DE HÉLIA CORREIA

LUÍS RAPOSO

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AINDA OS PREÇOS DE ENTRADA EM MUSEUS E MONUMENTOS DE SINTRA E BELÉM-AJUDA: OS DADOS E UMA PROPOSTA PARA O FUTURO

DÁRIA SALGADO

2016-03-18
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VICTOR PINTO DA FONSECA

2016-02-16
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MIRIAN TAVARES

2016-01-06
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LUÍS RAPOSO

2015-07-02
PATRIMÓNIO CULTURAL E OS MUSEUS: VISÃO ESTRATÉGICA | PARTE 2: O PRESENTE/FUTURO

LUÍS RAPOSO

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JOÃO SILVÉRIO

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VIENA, 22 a 26 de Março de 2006


A AUTORIDADE DO AUTOR - A PARTIR DO TRABALHO DE DORIS SALCEDO (SOBRE VAZIO, SILÊNCIO, MUDEZ)



FILIPE PINTO

2012-01-16




1.

Antes de entrarmos na grande nave do CAM, ainda na antecâmara, podemos ler um texto de apresentação da própria Doris Salcedo; a artista começa por se referir à morte violenta de mais de dez mil jovens num período de vinte anos na cidade de Los Angeles; mais à frente estabelece uma relação com o que se passa na sua Colômbia natal. E continua, em ‘Plegaria muda’ procuro articular diferentes experiências e imagens que formam parte da natureza violenta do conflito colombiano. Também pretendo conjugar uma série de eventos violentos que determinam a imparável espiral de violência mimética e fratricida que caracteriza os conflitos internos e guerras civis em todo o mundo. ‘Plegaria muda’ procura confrontar-nos com o pesar contido e não elaborado, com a morte violenta quando reduzida à sua total insignificância e que faz parte de uma realidade silenciada como estratégia de guerra. [1]

Por fim acaba por falar mais especificamente no assassínio contínuo de mil e quinhentos jovens pelo exército colombiano. Durante meses, Salcedo acompanhou um grupo de mães no reconhecimento das valas reveladas pelos assassinos. ’Plegaria muda’ é uma tentativa de elaboração desse luto [dessas mães], um espaço demarcado pelo limite radical imposto pela morte. Um espaço fora da vida, um lugar à parte, que recorda os nossos mortos. [2]

2.

É comum sentir-se um desconforto, uma desconfiança, quando se percebe que um artista tem algo específico a dizer com a sua obra, tem uma mensagem (embora talvez pior seja o que se passa quando se intui que o artista não quer dizer nada, não tem nada para dizer).

Aquele texto de apresentação possui um carácter de advertência – antes de termos acesso à peça propriamente dita, Salcedo adverte-nos quanto ao significado do que vamos ver e experimentar; é um aviso, uma recomendação, uma orientação. O que vão ver quer dizer isto; o artista fala o que a obra quer dizer; o artista fala aquilo que a obra na verdade não diz, aquilo no qual ela é muda. Nada em Plegaria muda nos liga aos acontecimentos de que nos fala Salcedo. Mas mais importante ainda é o facto de o espetador não precisar de ter conhecimento da intenção da artista para aceder à obra – aquela advertência não é a explicação da obra, mas apenas a explicitação da intenção da artista.

Existem peças que necessitam que seja disponibilizado um acesso – geralmente um texto – do artista ou de um interlocutor; outras funcionam melhor livres de determinações a priori; outras ainda funcionam no espaço que é proposto entre a obra em si e o seu título – é conhecida a estratégia, por vezes entre a obra e o título não existe relação aparente, e nesse intervalo de incerteza e desconhecimento estabelece-se um espaço de liberdade e investigação, dúvida e perturbação, um espaço que potencia a obra.

3.

Plegaria muda não parece necessitar da determinação que a intenção da artista impõe. O carácter mortuário, o silêncio recolhido invocado no próprio título da peça, a terra fértil, o formato de cada elemento, com as medidas próximas de um corpo humano deitado, inerte – é comum no trabalho de Doris Salcedo o uso de objectos que têm uma relação intrínseca com o corpo, tais como mesas, cadeiras, camas, sapatos –, todas estas características ligam-nos imediatamente à experiência incómoda de um cemitério fora do lugar, inapropriado, desterrado, absurdo.

A erva a crescer por cima destes túmulos – crescer é afastar-se da terra – lembra-me que a vida toca a morte na superfície da terra – no enterro e no plantar; lembra-me que plantar é também enterrar; que é na terra que uma semente esplende e que um corpo desiste [3]. Plegaria muda pode ser sobre aquela linha ténue onde a vida e a morte se confundem, como na vivacidade histérica do peixe acabado de apanhar – parece mais vivo que nunca e no entanto já quase morto.

E como escreve Salcedo no final daquela advertência, Espero que, apesar de tudo, e mesmo em condições difíceis, a vida prevaleça… como sucede em ‘Plegaria muda’, porque na verdade, regar uma planta – o que certamente acontece no CAM –, é confiar no futuro; regar é um acto de esperança.

Doris Salcedo tenta sempre resgatar para a leitura do seu trabalho um sentido político, na sua acepção mais vulgar – trata-se quase sempre de uma espécie de espartilho semântico; tenta ligar cada peça a um facto mais ou menos específico, a uma injustiça, uma tragédia infligida, uma catástrofe humana, mas nesse movimento acaba por constranger e restringir, delimitar e dirigir a leitura do espetador, e essa sim, é uma atitude explicitamente política, de exercício de poder, de autoridade.

4.

Lembremos entretanto outras duas famosas instalações de Salcedo – Shibboleth, na Tate Modern em 2007 e a peça para a Bienal de Istambul em 2003 – também visíveis em fotografias no CAM.

Apesar da monumentalidade característica, o silêncio e o vazio são presenças recorrentes no seu trabalho, inclusive em Plegaria muda – as coisas vegetais crescem sempre em silêncio.

O vazio não é o nada total; tal como o silêncio é constituído por rumores, murmúrios, ruídos surdos, nem que sejam os produzidos pelo nosso próprio corpo, o vazio transporta sempre uma carga, que pode ser uma memória, um passado, um desejo, uma premonição; o vazio é um contentor. Um vazio nunca está vazio; o vago é algo pronto a ser ocupado, como uma cadeira vaga, quer dizer, livre.

Deixar abertos os espaços vazios: essa seria a mais elevada das artes [4].

O vazio é também o espaço para pensar – não levantamos nós a cabeça quando queremos pensar ou desenterrar algo esquecido? não olhamos nós para cima, para o céu vazio, para o sítio onde nada há que nos possa dis-trair?

Para a Bienal de Istambul de 2003, Salcedo empilhou cerca de mil e quinhentas cadeiras num vazio entre dois prédios (as cadeiras restituíam, com precisão, a linha das fachadas contíguas); aquele quarteirão desdentado lembrava-nos que faltava ali algo – um vazio é sempre entendido como falta ou resultado de uma perda. Quando esquecemos algo, quando por exemplo não nos lembramos de uma palavra, sentimos o vazio que ela deixou na nossa fala; quando esquecemos algo como uma palavra, sabemos no entanto que ela existe; temos por assim dizer acesso ao espaço que ela ocupou, ao espaço vazio que entretanto deixou; no esquecimento temos um acesso privilegiado ao vazio.

No trabalho de Doris Salcedo há uma luta explícita contra o esquecimento – Salcedo diz mesmo preferir a palavra memorial em vez de monumento –, mas sempre contra o esquecimento de algo muito específico; no caso desta instalação, a artista queria referir-se ao terror das migrações no mundo global.

A recordação tem a grande vantagem de começar com a perda, por isso é mais segura, já que nada tem a perder. [5]

5.

O resultado do esquecimento é, como vimos, o silêncio, a palavra que falta, que falha; as palavras acotovelam-se na boca do mudo, e de lá não saem incólumes. O silêncio só existe no vazio mais radical; é nas alturas que o silêncio se esconde, é onde o ar rareia, onde encontra o vazio pleno e o som se perde; e quanto mais alto, já fora da atmosfera, aí se percebe que o som é ar, na ausência deste, o outro não existe. Temos assim a equação do silêncio: - altura + ar = som; + altura - ar = silêncio. O silêncio é o som asfixiado.

A fala, a voz, parasita o ar da respiração [6].

A mudez é também um vazio, um silêncio, uma ausência. Porque falamos nós? porque possuímos uma boca incompleta (Ramos Rosa, creio); isto é, porque o nosso corpo está incompleto. Mas é também o vazio da boca que permite a fala, porque a fala perde-se no meio da mastigação.

Lugares do silêncio, cemitérios; jardins e bibliotecas.
O final do dia; o dia acaba em silêncio; o sono ganha peso em relação ao som.

O silêncio é como um pano húmido: ele retira o pó sem o fazer voar. [7]

6.

Em Shibboleth (Tate Modern em 2007), Salcedo instalou uma racha – manufacturada no seu atelier na Colômbia, aliás como todas as suas peças – ao longo de toda a Turbine Hall – numa visita prévia Salcedo notara uma fissura no chão cinzento e esse foi o pormenor que desencadeou toda a intervenção.

Aquela racha era em tudo semelhante às produzidas pelos terramotos – Salcedo e a sua equipa estudaram o desenho e configurações de rachas produzidas por esses eventos naturais. Ao contrário da intervenção em Istambul quatro anos antes, aqui a artista não ocupou um espaço vago, sublinhando-o, mas antes criou precisamente um vazio. Segundo a artista aquela fractura manufacturada representaria a cisão entre o norte e o sul, entre brancos e não brancos, imigrantes e cidades cosmopolitas, primeiro e terceiro mundos. Uma falha no mundo – como o silêncio –, ou onde o mundo falha.

“Shibboleth” é um costume, frase ou linguagem que atua como um teste de pertença a um grupo ou classe particular; retirada de uma história bíblica, “shibboleth” era utilizada como palavra-passe – quem a soubesse dizer com o sotaque certo poderia passar para a outra margem do rio, para a margem segura.

A racha ficou marcada no pavimento da Turbine Hall, para sempre, como uma cicatriz.

7.

Cemitério, valas, rachas, buracos entre prédios, vazios e silêncios, memória, recordação e esquecimento, são claros os traços característicos do trabalho fértil de Doris Salcedo; mais fértil ainda se conseguirmos ter acesso a ele apesar das intenções explícitas da artista. No entanto, nada deverá proibir um artista – qualquer pessoa – de se expressar livremente; nada deverá inibir um artista de falar sobre a sua intenção ao criar uma determinada peça – a intenção é um direito de autor. Doris Salcedo fala sobre o significado das suas obras porque se trata do fundamento das mesmas, a sua razão de existência.

A obra de arte disponibiliza um acesso ao sítio a partir do qual o artista vê o mundo.

O que acontece é que os textos que se escrevem sobre o seu trabalho repetem inevitavelmente as suas intenções, numa obediência à voz da artista, repetem-se em mise en abyme; o que acontece é que a abordagem ao seu trabalho se dá acriticamente – lemos que Shibboleth é sobre racismo, que Plegaria muda é sobre jovens colombianos mortos pelo exército do seu país, mas nada disso é patente nas peças; esse significado específico é dado apenas pela intenção da artista.

O que acontece comummente é que esses textos demonstram uma espécie de ventriloquismo, quer dizer, demitem-se de uma posição crítica mexendo apenas a boca para re-citar as palavras do artista; muitos textos não passam portanto de folhas de sala; e assim o significado do trabalho vai-se sedimentando em algo que lhe é exterior.

Sem aquele texto prévio seria possível dizer que Plegaria muda se trata de uma obra política? – A morte é sempre política; a morte representa sempre um acesso que já não existe, um possível para sempre negado.

8.

Salcedo diz que chega sempre tarde, sempre depois, chega quando o acontecimento já passou. É talvez por isso que o silêncio se instala nas suas peças; o silêncio instala-se sempre depois da tragédia – é comum as vítimas de terramotos ou acidentes de viação relatarem o súbito silêncio, a paragem do tempo, a lentidão dos poucos movimentos que se seguem ao reboliço trágico; lembra os movimentos num ambiente aquático – com os ouvidos inundados, reconhecemos o som interior da respiração. Parece que a realidade abranda – devém devagar –, e depois do acontecimento trágico precisa de ganhar fôlego, e só o faz na ausência de som e de gestos – o gesto altera a posição do ar; produz ruído.

Memoriais silenciosos, de um terramoto (Tate), de um desmoronamento (Istambul), de um enterro (CAM). Chegamos nós também sempre depois; não testemunhas mas sobreviventes; mas ao explicitar a intenção, Salcedo parece querer o contrário – transformar o espetador em testemunha.

9.

E como pode o espetador escapar à leitura daquela advertência inicial em Plegaria muda? Se atrás falámos de crítica, aqui podemos pensar a questão curatorial; aquele texto prévio empobrece a leitura da instalação? afunila as possibilidades do espetador, torna menos profunda, com menos camadas possíveis, a própria peça? A experiência do espetador é polida por aquele texto? é, por assim dizer, arredondada? Não se trata aqui da morte do autor e do nascimento do leitor; como já se disse, existem obras que necessitam impreterivelmente de uma porta de acesso, mas esse não parece ser o caso do trabalho de Doris Salcedo. Existem sempre intervalos ínfimos e incertos entre fornecer toda a informação ao espetador e ser paternalista e autoritário, ou entre não disponibilizar nada e deixá-lo perdido ou livre.

Finalmente, esta parece ser uma exposição ideal para pensar também a responsabilização do espetador (já aqui se escreveu sobre isso mesmo) [8]; cada um decide se para si é o autor que determina o que uma obra é ou sobre o que trata; se se sente livre para pensar ou se se deixa constranger por informações alheias. Pensar enfim, se na era da informação fácil e imediata o espetador se mostra mais ou menos emancipado.


Filipe Pinto



NOTAS

[1] Doris Salcedo, Plegaria muda. Lisboa: Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.
[2] Idem.
[3] To get born, your body makes a pact with death,/ and from that moment, all it tries to do is cheat, excerto de “A Slip of Paper” in Louise Glück, A Village Life. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux, 2009.
[4] Peter Handke, Phantasien der wirderholung, tradução minha da versão espanhola, Peter Handke, Fantasías de la repetición. Zaragoza: Prames, 2000, p. 42.
[5] Søren Kierkegaard, A repetição. Lisboa: Relógio d’Água, 2009, p. 37.
[6] (…) imediatamente os pulmões que expelem e chamam o ar, e a voz humana que parasita a expiração (…), in Pascal Quignard, A vida secreta. Lisboa: Editorial Notícias, 1999, p. 226.
[7] Idem, p. 55.
[8] Filipe Pinto, “Para uma crítica da interrupção” (nomeadamente a partir do ponto 8), in Artecapital, www.artecapital.net/opinioes.php?ref=93