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OPINIÃO


Joana Vasconcelos, “Mary Poppins”, 2010. Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet


Joana Vasconcelos, “Romeo”, 2010. Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet.


Joana Vasconcelos, “Guinevere, Juliet”, 2010. Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet.


Joana Vasconcelos, “Una Dirección”, 2003 (primeiro plano), “Big Booby”, 2007 (segundo plano). Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet.


Joana Vasconcelos, “Passerelle”, 2005. Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet.


Joana Vasconcelos, “Esposas”, 2005. Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet.


Joana Vasconcelos, "Sugar Baby", 2010, Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet


Joana Vasconcelos, “Medeia”, 2010. Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet.


Joana Vasconcelos, “Jardim do Éden”, 2010. Cortesia Haunch of Venison, Peter Mallet.

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JOÃO SILVÉRIO

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O INFINITO PROBLEMA DO GOSTO



SHAHEEN MERALI

2010-10-13




Assim que entramos na recepção do edifĂ­cio do antigo Museu da Humanidade, hoje transformado na Galeria Haunch of Venison, somos imediatamente confrontados com uma encruzilhada destinada aos astutos de espĂ­rito e passada cĂ©lere. Um pouco mais Ă  frente, encontramos a grandiosa balaustrada que percorre a escadaria de pedra rosada e, mais adiante, olhando-nos do alto com um certo desdĂ©m, estĂĄ uma estĂĄtua inspirada na tradição clĂĄssica, em silĂȘncio e, Ă© claro, seminua, olhando para baixo com as suas vestes pendentes e segurando de forma precĂĄria uma sĂ©rie de vasos gregos.

Vasconcelos envolveu esta figura sem brilho com um material reticulado que ao longe parece desenhar um alvo na cabeça e outro no coração. Uma observação mais atenta revela que os cĂ­rculos concĂȘntricos sĂŁo elaborados em crochĂ©, feito Ă  mĂŁo, que começa na zona das virilhas e termina junto Ă  aorta, do lado esquerdo – Ă© uma espĂ©cie de viagem espiritual materializada, que pressentimos ser uma espĂ©cie de cruzamento entre um tratado de espiritismo e um diagrama biolĂłgico.

O conjunto de modelos clĂĄssicos (re)vestidos a crochĂ© por Vasconcelos inclui as obras “Guinvere”, “Morgana”, “Perpetua” e “Juliet” (todas realizadas em 2010), sobre as quais a superfĂ­cie de crochĂ© cria um(outro) padrĂŁo sobre uma figuração tradicional explĂ­cita. Estas figuras desamparadas que no sĂ©culo XXI perderam o seu estatuto mitolĂłgico fazem parte de um patrimĂłnio preservado, e podem ainda ser encontradas num vasto nĂșmero de locais que, sendo congĂ©neres de museus, cumprem a função de santuĂĄrios. A pele em crochĂ© – sinuoso e erĂłtico adereço carnavalesco – permite-nos compreender a superficialidade destas peças produzidas em sĂ©rie – como mobiliĂĄrio/adorno de jardim de casas senhoriais, elas acabam por fornecer uma desejada nota extra de gosto ao estilo clĂĄssico a que os seus proprietĂĄrios desejam aceder. Com estas obras, Joana Vasconcelos aborda as questĂ”es de gosto e de classe, e acaba por mitigar de forma interessante a noção de gosto que ainda prevalece como mecanismo instaurador de uma certa aura de grandeza e sensação de autoridade – em grande medida as razĂ”es pelas quais a Haunch of Venison se instalou no que foi outrora um museu na zona antiga de Londres.

É esta importante abordagem de um sentido de totalidade e de exploração da especificidade do local que eleva o trabalho de Vasconcelos a um patamar que deve ser entendido como uma crĂ­tica e nĂŁo como mais um mero conjunto de obras que acaba, apenas, por sublinhar de forma ornamental o poder do mercado. Isto mesmo quando relacionamos o seu trabalho com o espanto e com o acolhimento que o pĂșblico devotou ao seu impressionante “A Noiva” / “The Bride”, lustre de cinco metros de altura executado com 14 mil tampĂ”es, apresentado em 2007 na New Art Gallery em Walsall.

Creio que Vasconcelos operou uma envolvĂȘncia subversiva quer da imponĂȘncia do edifĂ­cio da galeria Haunch of Venison quer do objectivo desta Ășltima de conquistar o mundo comercial da arte ao inserir as suas obras no contexto das caracterĂ­sticas especĂ­ficas da galeria e na forma como a mesma se posiciona no mundo da arte. Vasconcelos torna esta superficialidade mais vĂ­vida e mais evidente ao seleccionar e colocar as suas obras em diĂĄlogo conflituante com a realidade que as envolve.

A obra “Una DirecciĂłn” / “One Way” (2003) – conjunto de varas de aço inoxidĂĄvel ligadas por cabelos sintĂ©ticos entrançados e de vĂĄrias cores desvanecidas – Ă© tributĂĄria de uma tendĂȘncia cultural que, embora sendo contemporĂąnea, serĂĄ, esperançosamente, passageira. Esta obra obstrutiva, colocada perto da ĂĄrea de recepção da galeria, sugere de forma implĂ­cita que nos encontramos na entrada de uma instituição cujo acesso Ă© controlado por via do recurso a mecanismos impositivos que, dessa forma, asseguram que o poder Ă© mantido. “Una DirecciĂłn” / “One Way” Ă© mais do que uma referĂȘncia subtil Ă s fronteiras e limites que nos colocam numa situação de subserviĂȘncia perante leis locais de acordo com as quais se operam transacçÔes ou segundo as quais se opera a progressĂŁo no interior do seu territĂłrio. As varas de aço interligadas guiam-nos, literalmente, atravĂ©s do espaço da entrada da Haunch of Venison, e exercem a sua influĂȘncia sobre o ritmo altivo ou natural da nossa passada, desacelerando-o. Temos a sensação de pertencer a um grupo de imigrantes que estĂĄ a ser monitorizado – e somos levados a procurar o nosso bilhete de identidade para o apresentar e assim podermos avançar. Mais do que nunca, o local transforma-se num templo da cultura da expansĂŁo e retracção. A sensação Ă© a de termos chegado ao epĂ­tome das artes superiores e de nos encontrarmos, simultaneamente, no meio da mais intermediada fase da produção artĂ­stica.

Durante toda a exposição, Joana Vasconcelos mantĂ©m esta dupla visĂŁo traumĂĄtica da nossa condição cultural, da nossa incessante e derradeira exigĂȘncia – beleza a qualquer custo, humano ou ambiental. Ela fĂĄ-lo de forma arrojada ao transpor de forma obsessiva, para as suas obras, a nossa relação fĂștil com o gosto, com os valores e com a forma artificial como estamos a manipular o natural, bem como a forma como aumentamos o controlo sobre as massas atravĂ©s da imposição de uma situação de desvantagem, empregando estratĂ©gias que se fundam no preconceito baseado na classe social ou no gĂ©nero. Como sĂ­mbolo mĂĄximo de prosperidade material a socialite Paris Hilton disse em certa ocasiĂŁo que: “Todas as mulheres deveriam ter quatro animais de estimação nas suas vidas – Marta no guarda-vestidos, um jaguar na garagem, um tigre na cama e um burro que pague tudo isto.” (1).

O discurso politizado de Vasconcelos emerge de um panorama histĂłrico que abrange “The Dinner Table” de Judy Chicago e a obra “Story Quilts” de Faith Ringold na sua utilização e recurso ĂĄs prĂĄticas artesanais como modo de expressĂŁo intemporal que resulta numa obra artĂ­stica que permanece para lĂĄ da expressĂŁo humana. É chegada a vez de Vasconcelos retornar a esta busca tal como o fizeram Chicago e Ringold nas suas pesquisas, em que destacavam precisamente a falta de investigação e reconhecimento institucional do feminismo. O crochĂ©, prĂĄtica artesanal, que ela usa repetidamente para cobrir animais de faiança, pianos, ou figuras clĂĄssicas, tem Ăłbvias conotaçÔes simbĂłlicas com a expansĂŁo e subversĂŁo de uma nova estĂ©tica e com reflexĂ”es que estĂŁo por concluir no que diz respeito Ă s histĂłrias de correntes estĂ©ticas que ainda sĂŁo alvo de preconceito e continuam a ser definidas em função do sexo.

A obra de Joana Vasconcelos atinge a sua intensidade maior na forma inteligente e perscrutadora como ela apresenta imagens e objectos naquilo que Ă© a sua avaliação do papel desempenhado pela globalização protagonizada pelas grandes multinacionais. Os efeitos sobre o nosso gosto traduziram-se numa homogeneização e nivelamento do mesmo; os nossos hĂĄbitos e imaginação estĂŁo hoje mais uniformizados do que nunca pelo modo como se processa a utilização e distribuição da cultura popular. Actualmente, as nossas vidas quotidianas entrelaçam-se com os nossos desejos que estĂŁo, por sua vez, refĂ©ns das correntes em voga, as quais sĂł raramente questionamos ou compreendemos. O nosso recente enamoramento por cupcakes ou por cĂŁes pequenos pode bem ser exemplo disto mesmo, e este desejo Ă© patente tanto nas ruas do Rio de Janeiro como em Berlim. TornĂĄmo-nos, de certa forma, parte de uma oferta que nos Ă© imposta e se estende por todo o globo, suprindo a maior parte das nossas necessidades irracionais, e emergiu, deste modo, uma estĂ©tica ligada a um modo de vida padronizado que se baseia numa imagem criada pelo meio empresarial. Usamos hoje as mesmas roupas e queremos, todos, as mesmas formas Ă  medida que o nosso consumo urbano se transformou num tipo descompensado de propriedade frustrada ou numa constante falta daquilo
 As quatro obras com que a exposição termina podem ser agregadas num conjunto que nos oferece uma reflexĂŁo visual sobre a forma hoje pensamos a nossa pertença atravĂ©s do modo como satisfazemos os nossos desejos. “Passerelle” (2005), “Esposas” (2005), “Sugar Baby” (2010) e o enorme “Garden Of Éden” (2010), derivam directamente de um planeta plĂĄstico, transbordante, hiper-consumista e de onde, na sua obsessĂŁo obesa, emergem as esculturas de Vasconcelos - objectos de escala e volumes hiperbolizados e lugares de desejo utĂłpico.

Os nossos defeitos sĂŁo curiosa e radicalmente distribuĂ­dos por um conjunto de espaços imorais que pĂ”em em causa a nossa obsessĂŁo com a alimentação e com as dietas, a nossa necessidade compulsiva de praticar exercĂ­cio fĂ­sico e de transformar a natureza numa realidade rĂ­gida. AtravĂ©s destas obras compreendemos um pouco melhor como a nossa atitude irresponsĂĄvel deu origem Ă s divisĂ”es e Ă  insaciabilidade que estĂŁo a matar o nosso planeta. O triunfo de Vasconcelos estĂĄ em conseguir forçar, da forma mais sensual possĂ­vel, a nossa compreensĂŁo de que a ideia que temos de progresso Ă© absolutamente entrĂłpica. Talvez tenhamos de aprender um certo distanciamento, uma vez essa separação pode fornecer o tĂŁo necessĂĄrio entendimento sobre os nossos prĂłprios comportamentos actuais que estĂŁo, de uma forma tĂŁo profunda, ligados Ă  nossa fase mais destrutiva do planeta. De acordo com a cristĂŁ mĂ­stica e filĂłsofa, Simone Weil: “O apego Ă© o grande criador de ilusĂ”es; a realidade sĂł pode ser alcançada por alguĂ©m cuja atitude seja de distanciamento.” (2). A obra de Joana Vasconcelos constitui seguramente um Ăłptimo ponto de partida para iniciarmos um processo de distanciamento relativamente aos nossos comportamentos mais desadequados.


Shaheen Merali


NOTAS

(1) Paris Hilton, www.tinyurl.com/36vajr9
(2) Simone Weil, www.tinyurl.com/36k57fh



THE INFINITE TROUBLE WITH TASTE

As one enters the reception area of the former Museum of Mankind Museum, which now has become the Haunch of Venison Gallery one immediately faces a crossroad in the building, intended for the quick-minded and fast footed. Ahead one faces the grand balustrade that straddles the pink stoned staircase and, further ahead looking down upon us with some disdain, a statue of some classical tradition, subdued and of course half naked, gazing downwards with its draping locks precariously holding an accruement of Grecian pots.

Vasconcelos has covered this lacklustre figure with a net material that, from a distance makes a target of the heart and head. On closer inspection, the concentric circles are of hand-made crochet that start from the groin region end near the left aorta- a sort of souls journey made physical, which starts to feel like a cross between a psychic treatise and a biological diagram.

The series of classical models re-dressed in crochet by Vasconcelos includes Guinvere, Morgana, Perpetua and Juliet (all 2010); upon whom the crochet surface creates an(other) pattern on top of an already traditional patented portraiture. These forlorn figures which, in the twenty-first century have lost their mythological status, are still to be found as heritage in mostly untranslatable environments which act as sanctuaries alongside their sister museums. The crochet skin, like some meandering erotic carnival costume, allows us to understand the superficiality of this mass – produced pieces of garden furniture and stately home artifacts that further provide such a cache for those in need of classical taste. It is taste and class that Vasconcelos addresses in these works or, rather, she interestingly mitigates the notion of taste which still circulates to provide a veneer of grandeur and a sense of authority;- very much the reason why the Haunch of Venison has established itself in a former museum space in old London.

It is this important exploration of a sense of totality and site-specificity by Vasconcelos that drives the work into a realm which should be understood as a critique rather than another set of works that embellishes the power of the market, even in comparison to the awe and response she received by the public for her remarkable five meter high chandelier made of 14,000 tampons, A Noiva / The Bride, at the New Art Gallery in Walsall in 2007.

I would argue that Vasconcelos has subversively involved the grandeur of the Haunch of Venison gallery building, as well as its mission to conquer the commercial world of art, by embedding both the specifics of the gallery and the manner in which it has strategically placed itself in the world of art. Vasconcelos makes it more vivid, more evident as superficiality, through the selection and placing of her various works that comment so conflictually within its premises.

The first series of works, Una Direccion / One Way (2003), is a series of steel poles, linked by braided synthetic hairs in differing, pale hues, secured from a contemporary but hopefully transient, cultural trend. This obstructive work, in the lobby of Haunch of Venisons’, by its front desk, suggests and openly implies an entry to a controlled institution that employs enforcing mechanisms to secure its power. Una Direccion / One Way is more than a subtle reference to the borders and boundaries that make us subservient to local laws for trade or to advance within its grounds. The interlinked, steel poles guide us literally through Haunch of Venisons’ lobby by slowing down our natural pace or swagger. We are made to feel like a group of surveyed immigrants – automatically reaching for our I.D. cards in order to proceed further. This, more than ever before, becomes a temple of boom and burst culture. One feels like one has arrived at the hierarchical epitome of the high arts and, simultaneously in midst of the most mediated state of art production.

Vasconcelos perseveres throughout the exhibition in maintaining this traumatic double view of our culture condition, of our continuous and ultimate chant to demand beauty at whatever cost, human or environmental. She does this valiantly by obsessively negotiating our futile relationship to taste, values and the synthetic way we are manipulating the natural as well as the way we are further controlling the masses through disadvantage, by employing strategies that prejudice certain classes and gender. As the ultimate symbol of affluence, the socialite Paris Hilton once said “Every woman should have four pets in her life: «A mink in her closet, a jaguar in her garage, a tiger in her bed, and a jackass who pays for everything. (1).

Vasconcelos politicised discourse grows out of a history that spans The Dinner Table by Judy Chicago and the Story Quilts by Faith Ringold, in her use of crafts as a timeless, obsessive work of art that has remained outside human expression. It is Vasconcelos’ turn to return to this demand like Chicago’s and Ringold’s feminists enquiries into its lack of institutional acknowledgement or research. Craft, like crochet, that she uses repetitively to cover ceramic animals, pianos or classical figures, symbolises obvious connotations of growth and subversion, of new aesthetics and unresolved demands on aesthetic histories which still remain biased and gendered.

The further intensity of Vasconcelos’ work is in her intelligent and inquisitive nature in rendering images and objects to evaluate the role of corporate globalisation. The effects on our taste have somewhat become more flattened and homogeneous; our habits and imagination more uniform than ever before through the use and distribution of popular culture. Our mundane lives are now intertwined with our desires which are morbidly locked into fashionable trends which we too infrequently challenge or understand – an example might be our current love for cupcakes or small dogs – from the streets of Rio to Berlin, this craving is evident. Somehow we have become part of an enforced supply that now stretches all over the globe, supplying most of our irrational needs – a corporate, aesthetic living standard has emerged and we now wear the same clothes and want the same shape whilst our urban consumption has turned into an imbalance of frustrated ownership or the lack of it
.the four final works in the exhibition can be grouped together, providing a visual consideration in the way we now think of how we belong through fulfilling our longing. Passerelle (2005), Exposas (2005), Sugar Baby (2010) and the immense Garden Of Eden (2010) come out of an overflowing, plastic planet, over-consuming and, in its obese obsession, an outstanding volume of scaled-up objects and places of utopic desire emerge in Vasconcelos sculptures. Our shortcomings are curiously and radically credited with a set of immoral spaces that contest our obsession with eating and dieting, our compulsive need to train and, make nature rigid and through these works, we start to further understand our recklessness, which has created the divisions and insatiability’s that are killing us and our planet. Vasconcelos’ triumph is in forcing us to understand that our idea of progress is absolute entropic in the most sensual possible way. Maybe we too have to learn to separate ourselves as this could provide the much needed knowledge of our ways which are now inextricably linked to the most destructive phase of our earth. As the Christian mystic and philosopher Simone Weil once said «Attachment is the great fabricator of illusions; reality can be attained only by someone who is detached.(2) and certainly Vasconcelos’ work allows us a good starting point to start detaching at our gross inadequacies.

Shaheen Merali


Notes

(1) Paris Hilton, www.tinyurl.com/36vajr9
(2) Simone Weil, www.tinyurl.com/36k57fh