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INGRESSOS EM MUSEUS E MONUMENTOS: DESVARIO E MIOPIALUíS RAPOSO2014-05-27Após quase um ano de meditação, depois de ter suspenso os despachos sobre as normas de ingresso em monumentos e museus publicados no ano passado, tantos eram os dislates que continham e tal foi a celeuma que provocaram (veja-se a propósito a minha opinião na altura: “Acessos a museus e monumentos: o caos instituído”, Público, 9 de Junho de 2013), entenderam a Ministra de Estado e das Finanças e o Secretário de Estado da Cultura (SEC) proferir agora novos despachos para os museus e monumentos sob tutela da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e das Direcções Regionais de Cultura do Norte (DRCN) e Centro (DRCC), que entrarão em vigor em 1 de Junho, completando assim o ciclo iniciado pela publicação de despachos de finalidade idêntica relativos às Direcções Regionais de Cultura do Alentejo (DRCAlent) e do Algarve (DRCAlg), publicados antes e que entraram em vigor em 1 de Março passado. Depois de tanta ponderação, esperar-se-ia que os novos enquadramentos dessem resposta às questões anteriormente levantadas, senão às mais estratégicas ou de orientação política, pelo menos às mais operacionais. Mas não. Tudo – ou quase tudo – ficou na mesma, sendo confrangedor observar a verdadeira dissolução de projecto cívico nacional e a não menor desagregação das competências do aparelho de Estado nesta área. Comecemos pelo que poderia ser o mais simples, ou seja, o cuidado que deveria ser posto (coisa realmente mínima) em evitar a sensação de desvario, de País à deriva e retalhado – um país de “múltiplos sistemas”, instituídos por meros critérios de humor circunstancial. Eis alguns exemplos: no Alentejo e no Algarve, os cidadãos portadores de deficiência têm redução de 50% dos preços dos ingressos, mas não no resto do País; no Algarve, os munícipes dos concelhos onde se situem os museus ou monumentos têm entrada gratuita, mas não no resto do País; no Centro, os Amigos dos Museus têm entrada gratuita, mas não no resto do País, ainda que no Algarve sejam os Amigos dos Monumentos e dos Castelos (e os mecenas) que o têm, mas não no resto do País; mais condescendente, a DGPC oferece entrada gratuita a nada menos do que todos os “membros de Associações Culturais” (algo que nem a DRCN consegue superar na sua amabilidade em não exigir a identificação aos membros do ICOM, ICOMOS ou APOM), etc., etc. Não obstante, há que reconhecer ter diminuído o rol de discrepâncias assinalado nos despachos de 2013, porque aumentaram as “regras gerais” aplicáveis a todas a visitas, em todas as regiões. Igualmente positivo, porventura o melhor desta vez, é a densificação dos casos de bilhetes conjuntos para circuitos geográficos ou temáticos. Mais grave é o tratamento dado a públicos escolares, em que parece ter havido algum esforço de uniformização, porém não conseguido, reinando antes a total confusão. Em todo o Sul do País e nos locais sob tutela da DGPC as visitas guiadas pelos Serviços Educativos e visitas de estudo da iniciativa de Instituições de Ensino são gratuitas, desde que previamente marcadas; mas no Centro são pagas a 1 euro e no Norte não se sabe que regime lhes aplicar (caso entrem na categoria de “visitas guiadas” sofrerão um acréscimo de 50% em relação aos preços normais dos bilhetes). Dito isto, não deixa de ser curioso que existam “visitas específicas em contexto académico”, que são pagas (1 euro) na DGPC, DRCC e DRCAlent, mas gratuitas na DRAlg. E ainda que sejam gratuitas, mas apenas DGPC, DRCN e DRCAlg, as visitas de “professores e alunos de qualquer grau de ensino, incluindo Universidades Sénior ou de 3.ª Idade, quando comprovadamente em visita de estudo e mediante marcação prévia confirmada”. Confuso ? Talvez, mas nada que chegue à subtileza da DDCC, que confere gratuitidade às “visitas escolares no âmbito do 2.º e 3.º ciclos, secundário e ensino superior”, excluindo as do 1º ciclo escolar, talvez que porque presuma que todos os alunos têm aí menos de 12 anos… e os respectivos acompanhantes também! Ultrapassadas as questões de amanuência, em que, como se vê, ficamos conversados, importa considerar outro tipo de escolhas, bem mais relevantes. Algumas são quase risíveis e apenas importam pelo que deixam transparecer quanto às convicções cívicas de quem as produz. É o caso da obsessão em pretender ser informado, e autorizar previamente, que todo o pequeno caudilho deseja garantir e aqui é aplicada aos professores, mas também aos jornalistas. Lê-se e não se acredita ! Então um jornalista tem de avisar previamente que vai visitar um museu ou monumento ? Para quê ? Para que este esteja preparado para o receber ? Talvez tal procedimento ocorra em ditaduras, mas não conhecemos nenhuma democracia que o pratique. E o mesmo se passa em relação aos professores, a quem basta identificar-se para terem livre acesso. A questão da gratuitidade merece ser convenientemente analisada. Relativamente aos seus antecedentes, de 2013, alargam estes despachos o período de gratuitidade universal de apenas meio-dia, para dia inteiro (o 1º domingo de cada mês em ambos os casos). Bem bom, dir-se-á. Mas aplica-se aqui a conhecida estratégia de primeiro prometer o inferno, para depois oferecer somente o purgatório. Até agora, ou seja, até 1 de Março ou 1 de Junho do ano corrente, os museus e monumentos eram gratuitos todas as manhãs de domingo. E já antes o tinham sido durante os domingos inteiros. O que nos oferecem constitui, pois, um recuo muito significativo e não o contrário. Acresce que os critérios de gratuitidade deixam muito a desejar – e nem sequer contemplam a tendência europeia que tem vindo a ser adoptada pela maior parte dos países, alargando tal prática a todos os cidadãos da UE até aos 25 anos de idade (isto sem falar nos países em que gratuitidade é mais ampla, como no Reino Unido). Bem ao invés, assume-se agora o desplante de baixar de 14 para 12 anos a idade limite de entrada universal gratuita, como se dois anos a menos fosse coisa de somenos, especialmente numa idade crucial para a aquisição de bons hábitos de visita aos museus. O que se passa é que de toda a evidência a mera ideia de gratuitidade deve causar incómodo ao actual poder político, como aliás ao anterior, dominados que estão ambos por meros gestores de mercearia (sem ofensa dos merceeiros, claro) e com total ausência de estadistas. Finalmente, existe a questão dos preços estabelecidos. Em geral os valores actualmente praticados, ou são mantidos ou sofrem apenas ligeiros aumentos. Com excepções estranhas, em todo o caso. A visita Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, é reduzida em 20% (de 5 para 4 euros), porque, segundo informa a directora regional de Cultura, “as pessoas achavam que o valor de entrada era caro” (Diário de Coimbra, 20-5-2014). Mas nos Jerónimos é estabelecido um aumento de 30% (de 7 para 10 euros), não tanto porque as pessoas achem o preço barato, mas porque existe “necessidade de assegurar condições para a salvaguarda e a protecção do Monumento Património da Humanidade de um desgaste provocado pelo contínuo crescimento de visitantes”, segundo fonte anónima da DGPC (Público, 21-5-2014) – o que lido realisticamente quer apenas dizer que as instituição do Estado português “estão-se nas tintas” para os cidadãos nacionais e o seu poder de compra, sabendo bem que assim poderão extorquir mais dinheiro aos turistas. “Poder de compra” e “cidadania nacional” – eis os conceitos-chave em que qualquer política de custos de ingresso em museus e monumentos deveria assentar e neste aqui e agora português são meras figuras de estilo. Já há tempos mostrámos, com base nos dados do Grupo Europeu de Estatísticas sobre Museus (EGMUS), conjugados com os dados fornecidos pelo EUROSTAT, como os bilhetes deste sector estão entre os mais caros da Europa, atentas as paridades dos poderes de compra (ppp), medidas em função dos PIBs nacionais (veja-se a nossa série de textos intitulados “Alguns dados estatísticos sobre os museus portugueses: contexto europeu e dinâmicas internas”, publicados na plataforma electrónica Património.pt). Dir-se-á que existem museus e monumentos de visita mais cara, na Europa e fora dela. Sim, especialmente no caso dos museus. Mas importaria ver as coisas em perspectiva e numa óptica cidadã: A visita ao Mosteiro dos Jerónimos, medida em ppp, passa a custar a um cidadão adulto português o equivalente a 13 euros; em critério idêntico, a espanhóis a visita ao Escorial ou à catedral e mesquita de Córdova, 8 euros, à catedral de Burgos, 7 euros, e ao museu/gruta de Altamira, 3 euros. E não se pense que se trata de situação específica espanhola: sempre nos mesmos critérios, a visita às ruínas de Pompeia, em Itália, custa 11 euros (5,5 para todos os cidadãos da EU entre os 18 e os 25 anos), ao palácio de Schonbrunn, na Alemanha, 8 euros. São raros os casos de grandes monumentos integrantes do património nacional ou mundial e sob administração pública directa que se comparem ou ultrapassem o custo que passa a ser praticado nos Jerónimos. Nisto como noutras coisas, quase só somos ultrapassados pela Grécia, onde a visita à acrópole de Atenas custa 16 euros, medida em ppp (14 nominais). No caso dos museus é mais frequente verificar a existência de preços superiores aos portugueses. O Museu do Prado, custa 14 euros; o Museu do Louvre, 12 euros (11,2 corrigidos em ppp)… mas o Museu História da Alemanha, em Berlim, 4 euros ppp (5 nominais); o Museu Nacional de Arqueologia, de Madrid, recentemente remodelado profundamente, 3 euros; o Museu Nacional de Arte Romana, de Mérida, 3 euros. E ainda mais próximo da nossa fronteira, as ruínas da cidade romana de Itálica são gratuitas para todos os cidadãos da EU e custam 1,5 euro para outros visitantes. Não é que, sobretudo no caso dos museus, os preços que praticamos estejam muito acima das médias europeias (frequentemente estão até abaixo). Mas o que importaria seria não agravá-los, no que constitui um sinal exactamente contrário ao que se recomendaria no quadro de uma política socialmente empenhada. Na verdade, existe algo de matricialmente liberal na atitude política de procurar extorquir mais e mais dinheiro aos visitantes, sem grandes preocupação de cidadania. Nos museus e monumentos é o que vemos; nos outros sectores do Estado Social é igual; e nos impostos, em geral, é o que sentimos na pele todos os que não podemos (e não queremos) fugir-lhes. A consigna é a da “quem quer… saúde, educação, cultura… paga-a”. Ou pior ainda, a de que “só tem valor o que se paga” e “o que mais se paga, tem mais valor”. Os impostos servirão talvez apenas para garantir “funções soberania” – e as da curadoria da memória histórica da Nação “obviamente” não o são, podendo e devendo ser descartadas, entregues a privados. Cuidemo-nos, pois, porque o caminho em que estamos, se o não atalharmos por força da nossa oposição cidadã, irá levar muito mais longe. Basta comparar, como fazemos no gráfico que acompanha este texto, os preços que agora começarão a ser praticadas nos museus e monumentos sob gestão pública do SEC, com os que foram entregues à gestão de entidades de direito privado. É notória a diferença. Ultrapassaram-se aí, em certos locais, todos os limites da decência e começa mesmo a fazer-se direito privado, como no caso do Palácio Nacional da Pena, onde o preço do bilhete é de quase 19 euros em ppp (14,5 euros nominais), tendo a empresa que o gere (e onde, de resto, o sector governativo da Cultura já nem sequer está representado) a audácia de lhe não aplicar (assim como ao Palácio Nacional de Sintra) os regimes de gratuitidades universais aos domingos, limitando-os (magnanimamente…) aos munícipes do concelho onde se situam. Ou seja e a terminar: hoje temos a originalidade de nos acessos a museus e monumentos possuirmos um País com “um regime” e não dois, mas “vários sistemas”; já isto levará os chineses a estudar o nosso caso. Mas quando amanhã lhes dissermos que teremos também “múltiplos direitos”, então passarão a procurar querer comprar tanto os nossos bens identitários, como já hoje se apropriam dos nossos recursos energéticos. Luís Raposo Arqueólogo. Membro da Direcção do ICOM Europa. |