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O LIVRO COMO MEIOLUÍSA SANTOS2009-06-24“The book could be art in and of itself (1).” “O livro pode ser arte em si e sobre si” (2). Em 1985, Joan Lyons lançava esta afirmação num tom de desafio. O livro como meio. Tal como o vídeo, a pedra, a fotografia, também o livro é um meio usado por artistas contemporâneos. Nos tempos de hoje, na primeira década do século XXI, começa também a ser meio para curadores, em exposições de livros de artista. Catálogos de exposições fazem comissões de obras apenas em formato impresso para, mais do que documentar e perpetuar a exposição, continuá-la no meio bidimensional. O catálogo da Bienal de Sharjah 9 (2008), sob a curadoria de Isabel Carlos (directora do CAM, Centro de Arte Moderna José Azeredo Perdigão), é um dos exemplos mais actuais de um livro enquanto arte. Como todos os bons catálogos de exposição, tem peças escritas exclusivamente a propósito do evento. Um bom design gráfico, em que há uma franca preocupação com a legibilidade e em que a forma e o conceito andam lado a lado. Até aqui, nada de novo. No entanto, mesmo ao leitor menos atento que não parou no prefácio que anunciava o catálogo como projecto integrante da Bienal, ao passar as páginas coloridas do catálogo, é impossível não perceber que não estamos perante um catálogo, enquanto mero documento de uma exposição. Sempre tive alguma reserva sobre o interesse dos catálogos, para além da validade e interesse da documentação. Como é que podemos passar a experiência ao vermos objectos, sejam instalações, videos, performances para o meio bidimensional do livro? Como é que passamos paredes para páginas? Nunca compreendi diagramas, plantas e mapas. Mas mesmo para quem os decifra, será que ver uma exposição através de um catálogo é o mesmo que ver uma exposição? A diferença, à qual os curadores da Bienal de Sharjah não foram indiferentes, parece-me clara e reflecte-se na experiência do que vivemos numa exposição ou perante uma obra de arte. O que faz do catálogo da 9ª Bienal de Sharjah um projecto, um livro artístico mais do que um catálogo, são as peças comissariadas exclusivamente para o meio impresso. Quem procura imagens das peças da Bienal, não vai encontrá-las no catálogo. Não se trata apenas de um documento mas de uma peça, mais uma peça que faz parte integrante da Bienal e sem a qual esta não estaria completa. Em dois volumes, com a mesma importância conceptual que quaisquer das obras expostas contém e-mails de conversas entre os artistas e os curadores, fala-nos de um processo criativo, de diálogos que ficaram atrás dos cenários. Com textos de curadores internacionais bem como colaborações de artistas, fala-nos de conceitos levantados na Bienal: “Through interviews and collaborations with each of the participating artists, the book is the first of a two-part set that aims to document the process of making and of presenting site-specific work in the biennial’s overall context (3).” O interesse pelo livro enquanto obra de arte em si (ou projecto) não é novo. Com efeito, reflecte uma grande influência de preocupações e expressões demonstradas nas décadas de 60 e 70. Dieter Roth (1930-98) e de Ed Ruscha (1937) produziram um grupo de projectos coerentes em forma de livros. Em Some contemporary Artists and their Books, Clive Phillpot afirma que os anos 70 foram um tempo em que cada vez mais artistas sentiram o impulso de discutir as suas intenções e que escolheram comunicar sem intermediários pelo que o livro era a opção a usar enquanto meio (4). Os projectos em livro de artista de Dieter Roth book começaram em 1954 com a sua investigação da fisicalidade do livro. Um aspecto importante nos trabalhos de Roth é o facto de os sujeitos de investigação bem como de representação serem os formatos e as estructuras do livro per se (5). Não menos importante é o facto de ter criado edições e volumes dos livros enquanto método de encaixe conceptual nas convenções de publicação de livros. Não foi uma decisão formal ou mesmo conceptual. Foi uma decisão, acima de tudo, politíca, na medida em que o objectivo foi de fazer com que os livros de artistas criassem raízes no livro enquanto meio. Fazer livros em volumes também era crucial ao método de Ed Ruscha com ideias a passarem de um volume para o seguinte. Multiplicação poderia ser a palavra chave dos seus trabalhos pelo desafio à ideia do múltiplo democrático, com os seus livros de fácil acesso (baratos e distribuídos ao grande público) e de formatos pequenos, portáteis. Assim, com a intenção conseguida de que os livros fossem usados, a aura da obra de arte ficava ténue (6). No seu primeiro livro, Twenty-six Gasoline Stations (1962) Ruscha mostra, 26 fotografias de bombas de gasolina ao longo da Estrada 40 (Route 40) entre Los Angeles (onde vivia) e Oklahoma City (onde cresceu). As ideias de artistas como Ruscha, de comunicar arte através de livros, tornou-se muito popular no clima socio-político dos anos 60 e 70. No século XXI, vemos um regresso (que não me parece nostálgico) ao livro enquanto obra de arte ou meio expositivo em si. Escolhi o exemplo do catálogo da Bienal de Sharjah enquanto livro de arte que também é uma continuação da exposição. No entanto, o comentário não ficaria completo se não falasse sobre espaços que apresentam, por um lado, o livro desmaterializado em espaço tridimensional, o espaço da exposição por excelência, numa troca de papéis. E, por outro lado, a expressão, ideia da democralização. O e-flux journal, um projecto que nasceu na internet (www.e-flux.com) anunciou recentemente (em Fevereiro de 2009) o The Building. No processo de investigação do que uma versão impressa da e-flux poderia ser, determinaram um espaço DIY em que os leitores determinam a forma, o meio e os canais de distribuição e uso: “Though this may not be where the real activity takes place—in physical forms and their exchange—the printed page serves as an important commitment to a certain temporal conclusiveness. It may not be how content moves, but it is how content asserts that it exists, even if only temporarily (7).” Os artistas Francesca Grassi e Jeff Ramsey desenvolveram um sistema modular que permite a produção fácil e gratuita da publicação. Este sistema permite que, naquele espaço de impressão, o The Building, se crie uma variedade de formatos que reflectem a diversidade de escalas e meios de produção. De um visitante a uma instituição, todos podem imprimir e distribuir a e-flux no formato que quiserem: um pequeno livro, um cartaz, uma cópia única ou produzido em massa. Repito: o interesse pelo livro enquanto obra de arte em si (ou projecto) não é novo. No entanto, enquanto continuação de um espaço, enquanto momento num processo, seja de uma exposição, de um evento, ou de uma obra de arte é, no minimo, inteligente. Numa era em que o digital reina, é interessante perceber que há um desenvolvimento paralelo no meio analógico. Confesso que torço para que o meio analógico surpreenda o meio digital. E desconfio que não sou a única. Luísa Santos NOTAS (1) Lyons, Joan, Artists’ Books: A critical anthology and sourcebook, Nova Iorque, Visual Studies Workshop Press, 1985, p. 7. (2) ibid. (3) www.sharjahbiennial.org/en (consultado pela última vez a 21 de Junho 2009). (4) Cornelia Lauf, and Clive Phillpot (Artist/Author), Contemporary Artists’ Books, Nova Iorque, The American Federation of the Arts, 1998, p. 21. (5) Drucker, Johanna, The Century of Artists’ Books, Nova Iorque, Granary, 1995, p. 74. (6) Lyons, Joan, Artists’ Books: A critical anthology and sourcebook, Nova Iorque, Visual Studies Workshop Press, 1985, p. 97. (7) www.e-flux.com/shows/view/6381 (consultado pela última vez a 21 de Junho 2009). |