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O LUGAR DA ARTE: O CASTELO, O LABIRINTO E A SOLEIRAJULIANA MORAES2013-08-12O labirinto translúcido causa estranheza e curiosidade nas pessoas que ali transitam diariamente. Fora dos museus e galerias, não é o espectador que vai ao encontro da obra, mas sim, o contrário. Neste movimento inverso, é a obra, com toda sua singularidade, que convoca quem quer que cruze com ela a experenciar os seus limites, a tocá-la e, para questionar o estatuto museológico das obras, a fazer uso dela. Ao longo do século XX, o cenário artístico ocidental foi atravessado por uma série de experiências que convocaram a Filosofia da Arte para novas prerrogativas a fim de entender a obra de arte e suas implicações para o nosso tempo. Neste sentido, proponho uma análise da obra Labirinto de Vidro do artista minimalista Robert Morris, instalada em meados de 2012 numa das praças mais movimentadas do Rio de Janeiro por ocasião do evento OIR (Outras Ideias para o Rio), uma bienal internacional de arte pública, para falar de temas como o lugar da arte na contemporaneidade, as instituições e o mercado das obras e os pressupostos da Estética enquanto uma disciplina destinada à meditação da arte. Desde sempre, a arte se constituiu como um dos modos possíveis do homem, enquanto um vivente que produz, realizar uma atividade no mundo. Para se compreender como nas diferentes épocas históricas este processo sofreu alterações, Giorgio Agamben, no seu primeiro livro intitulado O homem sem conteúdo, fornece um vasto manancial teórico para entender como se coloca a questão do destino da arte ocidental e do subsequente lugar da arte na contemporaneidade. Ao dialogar com algumas das correntes filosóficas mais importantes do século XX, Agamben nos põe frente a frente com a tarefa – que se mostra cada vez mais urgente – de entender o sentido do projeto estético ocidental. Neste contexto de quebra de paradigmas engendrado pela arte moderna e contemporânea, delineiam-se dois caminhos possíveis para a retomada do estatuto original da arte no contemporâneo: o primeiro no que diz respeito a um resgate do autêntico sentido da obra, há muito obscurecido; e outro cujo presságio é um esgotamento de qualquer possibilidade de compreensão da mesma, abismo de onde só uma virada radical poderia nos redimir. Ao enveredar pela primeira via, vemos eclodir as mais inovadoras formas de arte, dentre as quais Labirinto de Vidro é certamente um dos melhores exemplares. Neste objeto, se desdobra, efetivamente, o modo como o valor de fruição estética das obras de arte se retrai para ceder lugar a um outro tipo de compreensão, a qual o homem de gosto, que passeia e julga no interior dos museus, ainda não conseguiu assimilar. O que esta obra nos devolve é a possibilidade latente de se recuperar um mundo. Mundo não é simplesmente um espaço dado, mas uma cadeia significante que articula as nossas compreensões mais essenciais. Questiona-se, aceita-se ou rejeita-se o que se mostra mais decisivo para o homem. A obra de arte abre um mundo. Ao contrário, na aparente organização dos museus e galerias, está em voga a perda de um Mundo. O que se observa no agrupamento de objetos artísticos não é a abertura propiciada pela obra à experiência, disposta numa trama singular de espaço e de tempo, mas sim a completa perda de transmissibilidade, em que o homem, cindido num tempo sem passado ou futuro, observa um presente em ruínas. Este esfacelamento do processo de transmissão ressoa na articulação entre arte e capitalismo que vai se delineando a partir da modernidade. Assim, a relação entre o espectador e a obra passa a ser norteada por uma impossibilidade de uso e pelo consumo que acaba por destruir a própria coisa. E, por esse motivo, as obras expostas à visitação nos museus – não por acaso, tendo surgido no mesmo momento histórico que o capitalismo, ao fim da Idade Média − deixam de ser obras de arte, mantendo com ela apenas uma relação mediada por uma exibição que as divide de si mesmas e por um ato de consumo que só se consolida no momento de seu desaparecimento. Como adverte o próprio Agamben no seu primeiro livro, o museu não quer dizer apenas um espaço físico determinado, como os destinados à exposição de obras de arte, mas se refere a uma dimensão caracterizada por uma impossibilidade de usar e pelo consumo. Apesar disso, não deixa de ser notável o facto de, a partir da modernidade e do advento do capitalismo, estas construções designarem, de forma específica, o lugar reservado à arte. Assim, a pergunta que deve ser colocada de imediato é: qual deve ser então o lugar da arte? Em que espaço as obras poderiam pertencer a um mundo? Como vimos até aqui, a relação com a tradição e com a transmissibilidade de uma experiência propiciada pela obra de arte dava ao homem um regime de sentido e de crenças que nela encontrava-se fundamentado. A dissolução irrevogável desse ato transmissor é posta explicitamente por Heidegger nesta sentença: “a perda e a destruição do mundo não se podem mais reconstituir” [1]. Neste sentido, pensar o estado da arte atual é especular a partir de uma precariedade “entre o que não é mais e o que não é ainda” [2], entre uma impossibilidade de se transmitir algo e uma conciliação com o tempo presente. A assunção de uma perda e o pisar num solo desértico de onde tudo pode brotar são faces da mesma questão com a qual a arte contemporânea deve travar seu embate. Deste modo, ao abraçar esta responsabilidade, exercemos a nossa contemporaneidade. Neste corpo a corpo com o próprio tempo, destaco a obra Labirinto de Vidro, de Robert Morris, já citada anteriormente. O escultor americano, ao ser convidado pelo evento OIR, escolheu a movimentada praça Cinelândia para construção da sua obra. Instalada no período de 7 de setembro a 2 novembro de 2012, Labirinto de Vidro, cuja importância para a arte contemporânea é seminal, dialoga de forma pertinente com algumas questões discutidas acima. A impossibilidade de uso característica do museu é aqui abolida. Passamos, então, à pergunta: para que serve, afinal, um labirinto? Em que consiste o seu ser-obra? Um labirinto instalado no centro de uma metrópole não serve para nada. Este servir para nada é o selo autêntico da contemporaneidade. Não servindo a nada, opera a perda total de garantias que a arte deve incorporar no ponto limítrofe da estética. Morris, desde a sua trajetória como um dos fundadores do movimento minimalista, sabia perfeitamente disso. As suas obras evocam uma inutilidade latente e seu valor de uso pode ser assim recuperado. Num outro sentido, Labirinto de Vidro, provocativo e estranho ao ser instalado numa praça, e, ao mesmo tempo, monumental e impossível de ser ignorado, lega aos seus espectadores uma experiência única, um singular acontecimento nas suas vidas. Ele está lá como objeto dotado de completo estranhamento assim como está posto para nos desorientar, já que desestabiliza um ambiente com o qual somos plenamente familiarizados. É esta interrupção, este deslocamento no curso de nossas vidas quotidianas que está em jogo na presença da obra de arte. Assim, a obra adquire a sua característica singular de reconciliar o homem ao mundo. O labirinto, na medida em que nos olha, convida quem passe por ele a adentrar sua porta − que, como Kafka nos lembra, está desde sempre aberta − e atingir o alvo. Nessa passagem, que é também transposição de um limiar posto no meio do caminho, percebemos a contemplação da obra em nós, somos tocados por aquilo que nos olha no que vemos. Passar ou não diante da porta, entrar ou não no labirinto, talvez dele nunca mais sair. Este complexo jogo que a obra de Morris tematiza é também o jogo engendrado na arte contemporânea. Sua tarefa, como sustenta Agamben, é fazer com que o homem reencontre o sentido de sua ação. É este o lugar da arte, o seu espaço não geométrico e calculável, mas um certo espaço, que, estando sempre aí, permanece ainda velado. Não como uma totalidade, mas como algo em potência, de onde tudo pode partir. Entre o chamado “ castelo da cultura”, signo do finito e acabado, e o espaço que está em vias de se recuperar na contemporaneidade, cuja obra Labirinto de Vidro pode ser tomada como um ponto de partida, não resta mais que um entre. Como ressalta Agamben, a obra de arte se encontra entre um não mais e um ainda não. Neste sentido, esta noção de limite em Agamben pode ser expressa pela palavra limiar, enquanto algo que dá acesso a um exterior que, por sua vez, deve continuar vazio. Posto isso, concluímos dizendo que, ao se colocar como um campo de possibilidades no qual se faça passagem, a arte contemporânea assume para si o seu lugar. Um estar na soleira, cuja porta abre a própria experiência da arte. Juliana Moraes NOTAS [1] Heidegger, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010, p. 99. [2] Agamben, Giorgio. O homem sem conteúdo. Rio de Janeiro: Editora Autêntica, 2012, p. 180. |