2018-02-28
PARTE I - A RAINHA NZINGA E O TRAJE NA PERSPECTIVA DE GRACINDA CANDEIAS: 21 OBRAS DOADAS AO CONSULADO-GERAL DA REPÚBLICA DE ANGOLA NO PORTO. POLÉMICAS DO SÉCULO XVII À ATUALIDADE
2011-10-12
RE-CONFIGURAÇÕES NO SISTEMA DA ARTE CONTEMPORÂNEA - RELATO DA CONFERÊNCIA DE ROSALIND KRAUSS NO III SIMPÓSIO DE ARTE CONTEMPORÂNEA DO PAÇO DAS ARTES
As colecções de arte servem de muitas maneiras como bancos de memórias.
O novo Centro de Arte Contemporânea de Coimbra apresenta desde Julho passado a exposição "De que é feita uma colecção? Corpo e Matéria", que reúne 30 obras de arte que um dia pertenceram à coleção do extinto Banco Português de Negócios (não sei se será exactamente esse o número de obras). Trata-se de uma colecção de arte maioritariamente constituída por autores portugueses que procede em boa medida de aquisições feitas por Oliveira e Costa, que estava alojada no banco privado que fundou e presidiu. Graças a quem o aconselhou - e interessaria desvendar os critérios do coleccionador, o estilo e modo de coleccionar, e saber por quem foi aconselhado na construção da colecção: É importante perguntar de quem é o gosto estético e a misoginia da colecção, dos conselheiros, do coleccionador, ou ambos? - o antigo banqueiro foi capaz de reunir um extenso conjunto de obras (fala-se em 400 obras, entre pinturas e esculturas) que agora pertencem ao Estado, que terá pago cinco milhões pela colecção.
A exposição no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra abarca uma extensa cronologia, desde o início do século XX até ao final, que começa em Amadeu de Souza Cardoso e continua com Maria Helena Vieira da Silva e os contemporâneos.
Ao longo das últimas décadas, o extinto Banco Português de Negócios foi um poderoso motor de crimes de corrupção, fraude fiscal, burla qualificada, gestão criminosa, etc., profundamente ligado ao agravamento do défice de Estado e ao enriquecimento ilícito de Oliveira e Costa e da comunidade de amigos que ele construiu ao seu redor. O BPN foi nacionalizado em outubro de 2008 e esteve sob a gestão da CGD até ser vendido em 2012: De acordo com o Tribunal de Contas, oito anos depois de vender o BPN ao EuroBIC, as ajudas públicas concedidas no quadro da nacionalização e venda do BPN atingiram no final de 2018, 4,924 mil milhões de euros. O que quero dizer, é que o custo líquido dos escombros (entulho) do BPN imputado aos contribuintes ascende aos tais 4,924 mil milhões de euros. É o equivalente a sete vezes e meia o valor do défice em 2019. Ainda reverbera hoje a gestão criminosa do BPN! (O Estado pagou mais de 60 milhões de euros no ano passado por encargos relacionados com a venda do BPN ao banco BIC.)
Esta colecção agora exposta ao público em Coimbra evoca o legado de um homem que encontrou sucesso através de métodos ilícitos - corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico de influências, etc. -, considerado na época autor da "maior burla do século", o praticismo de que vale tudo para alcançar riqueza, influência e poder. (Talvez Oliveira e Costa tenha atingido aquele estado de inebriamento que se diz que o poder inspira, o estado em que uma pessoa se julga indispensável e inimputável e pode portanto fazer qualquer coisa, o que lhe apetecer.) A colecção viajou com Oliveira e Costa para o BPN, é feita de redes, criou redes, ligações obscuras, como de costume (precisamente isso: como de costume). A história mantém-nos unidos.
É certo que me choca ver - eu sei disso automaticamente - a exposição pública da colecção BPN: É algo que não compreendo e me cria uma sensação terrível de mal-estar. Cada coleção é única, é sempre parecida com o seu colecionador. A curadoria da exposição "De que é feita uma colecção? Corpo e Matéria" simplesmente ignora a história sombria desta colecção. (E ignorar não é o mesmo que ignorância, exige esforço da nossa parte) Razão pela qual a exposição está em evidente contradição com a curadoria, se queremos saber de que é feita uma colecção.
O Banco Português de Negócios como o Banco Privado e o BES, estão na linha da frente do retrocesso do país, por outro lado, da penetração nefasta na vida da arte: Quem visitar esta colecção em Coimbra deveria de tomar consciência de que o seu fundador sozinho criou um défice / prejuizo ao país de muitos mil milhões de Euros. (Cabe-nos as consequências importa referir) Representa o mundo da ausência de princípios, sendo evidente que a sua apresentação pública institucional tem repercussão visível na redenção de Oliveira e Costa.
Se me perguntarem "De que é feita esta colecção?", responderia Enriquecimento Ilícito e Lavagem de Dinheiro, porque as circunstâncias que um dia a produziram sempre estarão presentes, não desaparecem, como a experiência, a literatura e a ciência nos ensinam:
No livro "GÉNESIS - A história do universo em sete dias", Guido Tonelli, físico de partículas e um dos protagonistas da descoberta do Bosão de Higgs, emula a estrutura narrativa bíblica da criação do mundo em sete dias, para relatar, em sete capítulos de assinalável fascínio científico, a estranha singularidade que permitiu a formação do Universo e a sopa primordial de onde surgiu a Vida. Tonelli segue o fio condutor da consciência para responder à sempiterna pergunta "De onde vem tudo isto?".
Guido Tonelli: Para entender o que aconteceu naqueles primeiríssimos instantes de vida, é preciso lançar mão de expedientes engenhosos e encontrar uma forma de sujeitar novamente os minúsculos fragmentos da matéria actual às altíssimas temperaturas dessas condições originais. É aquilo que os aceleradores de partículas possibilitam.
Os aceleradores de partículas são modernas máquinas do tempo: fazem-nos recuar milhares de milhões de anos permitindo-nos estudar os fenómenos da origem do nosso Universo. Graças aos aceleradores, o que se verifica é que, ao aquecer minúsculas porções do espaço a temperaturas semelhantes às do Universo primordial, se trazem de volta à vida partículas extintas: partículas ultramaciças, que povoavam o objecto incandescente dos primeiros instantes e que desapareceram há muito tempo. Elas ressurgem, por um instante, do sarcófago gélido em que de certa forma hibernam, e torna-se possível estudá-las ao pormenor.
Guido Tonelli: Foi assim que descobrimos o bosão de Higgs*. Trouxemos à vida uma mão-cheia deles depois de um sono que durava 13,8 milhões de anos. Sem dúvida, os muito procurados bosões desintegraram-se imediatamente em partículas mais leves, mas deixaram traços característicos nos nossos detectores. As imagens destes decaimentos especiais acumularam-se e, no momento em que tínhamos a certeza de que o sinal se distinguia claramente do fundo e que as outras possíveis causas de erro estavam sob controlo, anunciámos a descoberta ao mundo. A exploração do infinitamente pequeno, a reconstrução de partículas extintas, o estudo dos estados exóticos da matéria que povoavam o Universo primordial é uma das duas vias para compreender os primeiros instantes de vida no espaço-tempo [o Big Bang]. A outra via são os supertelescópicos, grandes instrumentos que exploram o infinitamente grande, que estudam estrelas, galáxias e aglomerados de galáxias, procurando mesmo observar todo o Universo [...].
Para sabermos de onde vem a exposição, "De que é feita uma colecção? Corpo e Matéria", é necessário também tentar fazer uma espécie de viagem regressiva no tempo, uma reconstrução da memória histórica à semelhança dos aceleradores de partículas. A origem da colecção BPN ressurge, e é-nos possível compreender ao pormenor o passado e a história da colecção, que nos possibilita trazer de volta à vida o coleccionador extinto. Falo naturalmente de todas as colecções, de qualquer maneira que as olhemos, estarem inseridas numa história, manterem uma memória, que remete para o passado e evidencia de onde surge a colecção.
Razão por que temos de nos fazer recuar no tempo que nos permita estudar os fenómenos da origem desta colecção apresentada em Coimbra, não basta ter opiniões em matérias artísticas... Toda a colecção de arte mantém o observador / espectador em contacto próximo com a história do fundador, não é indissociável da origem, intersecta-se com o nome do coleccionador. É a peça final do puzzle de como a colecção se constitui.
Olhando para dentro desta exposição, em rigor, não cabe um bom exemplo de curadoria, as razões são mais que óbvias. Oliveira e Costa foi um criminoso, que ludibriou o Estado de todas as maneiras possíveis: A exposição desta colecção do extinto banco BPN é evidente que redime Oliveira e Costa, preservando a ilusão de que o dinheiro e a ignorância governam a arte e a cultura, principalmente quando estão em posições de poder. Conserva viva a colecção, lembrando Oliveira e Costa, como que nutríssemos um sentimento de gratidão pelo banqueiro que, um dia, ultrapassou todo e qualquer limite razoável e cuja ambição nos forçou a vir em seu auxílio pagando o Estado uma fortuna imensa, por um lado, para salvar o banco que foi encontrado totalmente delapidado, ou por outro, para comprar a colecção que se destaca por não ter interesse nenhum. É esse o sentimento que a natureza de tal exposição me transmite!
Na sua tentativa de escapar à história de Oliveira e Costa e do BPN parece que os comissários conseguem acreditar que a memória do passado desta colecção não passa de contos e lendas efabuladas. Bem sei que certas pessoas presunçosas poderão pensar que não é com a história do BPN e de Oliveira e Costa que nos devemos interessar e sensibilizar (pela única e simples razão de que a vida continua), mas com as obras da colecção e aquilo que elas nos podem oferecer (e continuarão a abraçar a colecção de modo acrítico). Seja como for, não pode haver colecção sem coleccionador se não "de onde vêm todas estas obras" em exposição no Centro Cultural de Coimbra?
E porque não hei de recusar o reconhecimento da exposição e a apresentação pública da colecção do extinto BPN em Coimbra, por não conseguir esquecer Oliveira e Costa?, pois na verdade, como diz Maria Filomena Molder: "Se o esquecimento pode ser uma benção — e é esse que perturba os seres humanos desde que se dedicaram à memória, como é o caso de Agostinho —, também se pode tornar uma maldição." Nunca é demais recordar como é decisiva a honestidade na arte, a consciência de fazer uma colecção como um espaço onde os princípios prevalecem. Mais ainda, o entendimento orgânico "do que é feita uma colecção?", não é o que se ganha por silogismo e divisões e categorias e outras operações mentais (sintéticas) de semelhante espécie.
Não quero afastar (não é suposto) as pessoas do Centro de Arte Contemporânea de Coimbra. Museus e Centros de Arte representam para as comunidades o único sistema educacional fora da estrutura formal e partilham com as escolas e universidades a missão comum de educar os jovens. São espaços de aprendizagem, desempenham um papel muito importante no apoio à educação.
No entanto, cabe-nos [a alguns de nós] estabelecer os limites da acção institucional trazendo um juízo crítico e uma consciência aumentada, não diminuída, da Arte. Existem limitações para como e o que nos é apresentado publicamente! Não será exagero dizer que sempre desejei ver a arte e em particular o coleccionismo através dos meus olhos por experiência directa, livre e autónoma, e não pelas lentes dos outros. A ligação entre mim e a arte contemporânea é um sentimento determinado.
Tentem pôr-se na minha pele: Recebi de herança uma colecção de arte contemporânea e com ela aceitei o legado de ter uma verdadeira paixão por ela, de ser intelectualmente exigente [de responsabilidade perante a arte], e de continuar a coleccionar com uma ética própria; com efeito, a partir de determinada altura, o coleccionador precisa de ser culto e/ou de sentir emoção, procurar ter experiência ou pensamento crítico. Daí que de todo o conhecimento cognito "De que é feita uma colecção?", o de maior confiança é o que ocorre por meio dos sentidos, e o de menor confiança é o que ocorre como resultado de argumentação lógica porque não é realmente entendimento, mas mero palpite, suposição e conjectura.
— É bom de poder dizer que, o meu saber resulta, primeiro, da penetração nos segredos de coleccionar arte contemporânea, sim, na experiência e no juízo crítico. Segundo na aplicação desses conhecimentos a práticas. O saber de experiência feito, que a minha longa vida de coleccionador me proporcionou. É essa experiência e memória que dá margem de manobra à cultura e satisfaz a nossa procura de sentido. Requer sensibilidade, paciência e respeito.
Obviamente que por detrás de toda essa longa e bela viagem sem fim, tenho visitado um grande número de colecções europeias e americanas - na necessidade de desenvolver a minha própria colecção com uma alta capacidade de interação, de partilha de ideias e visões -, algumas minhas contemporâneas outras referências históricas. Nos anos 90, muito jovem colecionador, visitei o célebre Palácio Villa Panza, considerado entre os especialistas como a primeira visão do coleccionismo dito contemporâneo, a colecção de Giuseppe Panza (onde tive o prazer de encontrar o próprio Panza, a convite da conservadora da colecção), uma "analogia" para o novo espírito, isto é, uma espécie de paradigma do coleccionador "de arte contemporânea". Panza notabilizou-se na história de arte por ter sido o primeiro a coleccionar arte minimal e toda a geração de artistas conceptuais americanos pós-guerra. A grande maioria dessas obras é a actual colecção do MOMA de artistas americanos pós-guerra. Na verdade, é na consciência da história da arte e na atenção que os coleccionadores são diferentes uns dos outros. A formação da atenção é a vidência especial do coleccionador. A "memória do presente" como Santo Agostinho chega a falar, para firmar a preeminência da atenção, acentuando assim que ela é o coração da memória, isto é, o espírito livre. No entanto, como lembrava Simone Weil "a verdadeira atenção é um estado tão difícil para o homem, um estado tão violento, que qualquer perturbação pessoal da sensibilidade é suficiente para o impedir".
Uma exposição de arte pode deixar-nos revoltados apenas se contrariar o nosso gosto estético; mas, se apenas nos tentar enganar, e nós o reconhecermos, reagimos com desprezo, não com revolta.
A minha incompatibilidade com esta exposição no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra é uma coisa simples de descrever: Ocultar a história de Oliveira e Costa associada à colecção - que a torna a ser uma colecção fundada por um criminoso -, acaba por voltar-se de forma decisiva contra os dois comissários da exposição; ficam em situação difícil, como se entendessem previamente que "há coisas que é melhor não se saber"... É fácil de perceber que a curadoria da exposição sabe que se esqueceu de que é feita realmente esta colecção, receando vir a deparar-se com objecções ou dificuldades ao desígnio de apresentar a colecção em Coimbra. Reconhecer fraquezas reduziria as hipóteses de fazer interagir a colecção com pompa e circunstância, não fosse provocar estranheza.
A curadoria fugiu radicalmente a investigar a génese da colecção, a falar do nome do coleccionador — guiou-se por ocultar o passado da colecção, suprimindo a história (por uma única razão: foi a coisa mais fácil de fazer), num academismo em que os problemas realmente importantes são deixados intocados porque suscitam controvérsia. Estes erros foram em parte cometidos porque os comissários não relacionaram que uma colecção constrói-se através de sobreposições de camadas de episódios diversos que acompanham a evolução da colecção, um conjunto de associações, analogias, histórias particulares que dão vida à recordação que conservamos ao longo do tempo em torno de pessoas que, em tempos, as constituíram, e estudá-las é o primeiro passo para a sua compreensão! Questões relacionadas com a memória do passado, que retornam sempre, como diz Chillida: Cada uma "sempre nunca diferente, mas nunca sempre igual", são fundamentais para se trabalhar com colecções e que por isso não podem ser rejeitadas.
A sua vontade de fazer bem por uma conveniência em nome da arte não é o suficiente para que eu não reconheça que a curadoria não esteve à altura: por um lado, o que há de importante nesta exposição são as obras; por outro lado, a proveniência da colecção que a envergonha. A verdadeira questão ética é qual a relação dos comissários com a origem da coleção, como a vêm?, no momento em que já não consegue justificar-se o silêncio sobre a sua natureza sombria! Respeito muito a ética, mas a curadoria respeitá-la-á? Afinal, a exposição não passa de uma colecção imprópria.
Ora, não admira que a característica mais importante desta exposição seja uma espécie de vanglória, e não ter nenhuma visão da arte contemporânea: Tudo à volta desta colecção é indesejável, é interesse do dinheiro em si, arte puramente como um activo financeiro (tão fácil de usar como uma muda de roupa), que confere a esta colecção uma natureza especulativa, chamando mais a atenção para as propriedades do dinheiro e das amizades, do que para os atributos da arte, no seu processo de construção. Não foi, pois, acidental que o desenvolvimento desta colecção coincidisse cronologicamente com a "maior burla da história". É uma colecção previsível, que infelizmente serviu para desestabilizar o funcionamento normal / justo no mercado de arte do seu tempo.
Nunca será demais lembrar que os gregos personificaram a memória numa deusa, "Mnemosine", filha de Urano e Gaia, a mãe das nove Musas.
Para terminar: O propósito deste texto crítico não é a demolição da curadoria da exposição "De que se faz uma colecção? Corpo e Matéria", mas manifestar a minha incompreensão total face a esta exposição, em Coimbra, de um conjunto de obras que um dia pertenceram ao extinto Banco Português de Negócios: E não estou a falar de censura moral, estou a falar de factos (em que o silêncio sobre um problema evidente parece altamente significativo como achega de prova) e de arte: Arte-historicamente uma colecção não se pode reinventar numa perspectiva sem história, é algo para além das obras, porque incorpora tudo, a sua compreensão é uma existência integrada, está historicamente condicionada e não pode ser alterada artificialmente.
Daí que relacioná-la com a história do coleccionador seja uma componente relevante da colecção, para explicar a natureza "de que é feita uma colecção?", para justificar uma rejeição ou uma aclamação, e situar o contexto histórico e cultural em que essa experiência ocorreu. Isso completa a colecção como colecção. Por outro lado, o poder da memória não é indiferente a esta necessidade.
O que assombra esta exposição no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra é o facto de tornar ausente e presente o retrato de um homem que, um dia, ajudou a levar Portugal à ruína. As colecções de arte devem dirigir-se à inteligência do espectador / público globalmente não apenas à sua fruição estética, caso contrário, perdem a maior parte da sua eficácia, que é excitar a curiosidade e o interesse pela arte, porque as colecções precisam de sentimento [identidade] para dar significado às obras de arte!
Tem de se interpretar esta exposição no Centro de Arte Contemporânea de Coimbra de forma diferente, que não se possa enquadra-lá por um discurso de qualidades como outra qualquer colecção. Porque não o é, não se confunda.
victor pinto da fonseca
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* Guido Tonelli: Chegámos a um centésimo de bilionésimo de segundo após o Big Bang e, daí em diante, as coisas são muito mais claras. Não são muitos os segredos que esta parte da história nos oculta desde o momento em que descobrimos o bosão de Higgs e medimos a sua massa.
O Universo recém-nascido é já imponente. Atingiu a considerável dimensão de mil milhões de quilómetros e, de repente, quando a temperatura desce abaixo de um certo limiar, os botões de Higgs, que, instantes atrás corriam livremente, congelam e cristalizam. A estas temperaturas gélidas, não conseguem sobreviver e escondem-se no confortável sepulcro do vazio. Será necessária muita paciência para os ver novamente. Foram precisos 13,8 mil milhões de anos até que alguém do planeta Terra conseguisse produzir colisões de energia tão elevadas, que os trouxesse de volta à vida, ainda que por uma fracção de segundo, tempo suficiente, todavia, para deixar vestígios inequívocos da sua presença.
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Notas finais: O Bosão de Higgs, também celebrizado como “A Partícula Divina", é uma partícula de campo ou de energia, que contrasta com uma partícula de matéria: É a parte final do Modelo-Padrão da física de partículas [que descreve todas as partículas de que já ouvimos falar]. O Modelo-Padrão explica tudo o que vivemos no nosso dia-a-dia (excepto a gravidade, que é bastante fácil de juntar). Quarks, neutrinos e fotões; calor, luz e radioactividade; mesas, elevadores e aviões; televisores, computadores e telemóveis; bactérias, elefantes e pessoas; asteróides, planetas e estrelas — todos aplicações do Modelo-Padrão a circunstâncias diferentes. Temos uma teoria completa da realidade imediatamente discernível. E tudo se encaixa lindamente, passando uma desconcertante variedade de testes experimentais, se o bosão de Higgs existir. Sem o Higgs, o Modelo-Padrão não passaria os testes.
O bosão de Higgs do Modelo-Padrão da física de partículas foi proposto nos anos 60 por Higgs e outros como unidade (grão ou /quantum) de um campo, o campo de Higgs, necessário para dar massa às partículas de matéria. Durante muito tempo não o vimos directamente, mas vimos os seus efeitos. Ou, ainda melhor, vimos as características do mundo que fazem sentido se ele existir, e não fazem sentido se ele não existir. Com o Higgs, todas essas características da física de partículas fazem sentido. Existe um facto espantoso sobre o Universo: faz sentido.
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Bibliografia
Guido Tonelli, GÉNESIS - A história do universo em sete dias, Edições Objectiva, 2020
Maria Filomena Molder, Electra, Nr 8 Inverno 2019-20
Eduardo Chillida, Escritos, Ed. La Fabrica, 2006
Roberto Calasso, Os quarenta e nove degraus, Edições Cotovia, 1998