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A ARTE, A GUERRA E A SUBJECTIVIDADE UM PASSEIO PELOS GIARDINI E ARSENAL NA 52ª BIENAL DE VENEZAFILIPA RAMOS2007-06-14Percorrendo o Arsenal, tradicionalmente considerado o mais vivo e fresco dos dois grandes espaços expositivos dedicados à Bienal de Veneza, a sensação experimentada é a de desolação e monotonia. Esta 52ª Bienal, cujo lema é “Pensa con i Sensi, Senti con la Mente” (Pensa com os Sentidos, Sente com a Mente) parece reflectir, mais do que a experiência directa fornecida pelo contacto sensual e filtrada pelo pensamento, sobre a guerra, a destruição, a inevitabilidade da degradação e da morte. Mais do que agir no campo da Política, a exposição comissariada pelo crítico e professor norte-americano Robert Storr, apresenta uma visão triste, resignada e pessimista da realidade, devastada pelos inúmeros conflitos que nela ocorrem e condenada à sua auto-destruição. Storr, tal como se lê no texto oficial da exposição, afirma o conceito base de “Pensa con i Sensi, Senti con la Mente” se baseia na convicção de que a arte é, e sempre foi, o meio através do qual os seres humanos tomam consciência da sua própria existência, em toda a sua complexidade. Tomamos, portanto, consciência de uma existência arruinada, destruída pela guerra, empobrecida de ideologias e esvaziada de estímulos. Mesmo uma mente muito optimista terá dificuldade em sentir uma via possível de fuga ao niilismo empobrecido oferecido no Arsenal. Vejam-se, por exemplo, os pequenos retratos a carvão da jovem americana Emily Prince (1981), “American Servicemen and Women Who Have Died in Iraq and Afghanistan (But Not Including the Wounded, Nor the Iraqis nor the Afghanis)” (2004), ou a estética perfeita e detalhada dos edifícios/ruínas de um Líbano devastado pela guerra do fotógrafo italiano Gabriele Basilico (1944), a “Discussion (Property)” (2007), uma extensa reflexão sobre as tensas relações entre a Rússia e a Bulgária, realizada por Nedko Solakov (1957), cujo habitual humorismo e ironia parecem ter dado lugar à crítica política esvaziada de soluções; ou o exaustivo levantamento de títulos de jornais realizado pelo artista catalão Ignasi Aballí (1958), que de conceptual passa rapidamente a social através do contexto em que é inserido. O vídeo do artista italiano Paolo Canevari (1963), onde um rapaz joga à bola com uma caveira de borracha numa periferia italiana, espelha uma inadequada, e quase gratuita, crítica aos males da guerra, algo que se reflecte em muitos outros trabalhos expostos. Para além do extensíssimo rol de variados discursos sobre a temática militar, bélica e social incluindo o de Jenny Holzer (1950), que converte as suas habituais escritas em Led em panfletos políticos, algumas obras isoladas, sem uma clara relação com o tema central da exposição ou com os elementos circundantes, merecem uma atenção particular. É o caso de “Another Misspent Portrait of Etienne de Silhouette”, em que o artista australiano Christian Capurro (1968) apagou todas as páginas de uma revista Vogue Hommes, deixando simplesmente a capa, onde se observa uma imagem de Sylvester Stallone. “Tijuanatanjierchandelier”, uma das últimas instalações realizadas por Jason Rhodes (1964-2006) é uma parafernália festiva e alegre de objectos, plumas e penas de índios e colchões onde diversos neons ostentam nomes vulgares para os genitais femininos. Folk mexicano por entre os desastres da guerra? Tão incompreensível quanto a sublime pentalogia de filmes do artista chinês Yang Fudong (1971) “Seven Intellectuals in Bamboo Forest”, que põe em causa o estatuto dos intelectuais na sociedade chinesa durante a década de 1960 ou quanto o sentido, integrado nesta exposição da viagem pelo interior do seu corpo realizada por Valie Export (1940). Saindo do Arsenal, os dois italianos escolhidos por Ida Gianneli para representar o país anfitrião foram Francesco Vezzoli (1961) e Giuseppe Penone (1947). Enquanto Vezzoli apresenta a instalação-vídeo “Democrazy”, que oferece uma visão sui generis da eminente campanha eleitoral norte-americana de 2008 (bastante aquém de Calígula, o vídeo que apresentou na passada Bienal), as “Sculture di linfa” de Penone são uma delicada e simultaneamente imponente instalação escultórica que rende homenagem ao desenho, à forma e aos materiais, serenamente distante de quaisquer engajamentos sociais. Apesar do seu formato expositivo bastante tradicional e de expressar uma manifesta vontade de celebrar um regresso da pintura (visível nas salas dedicadas a Ellsworth Kelly, Gerhard Richter, Sigmar Polke ou Robert Ryman), o Pavilhão Italiano revela interessantes surpresas. Uma delas são as duas obras do jovem mexicano Mário Garcia Torres (1975). Reactualizando o passado de forma pessoal e activa, Torres escreve uma carta em formato vídeo a Murillo (que assinava Dr. Atl, daí o título da obra, “Carta Abierta a Dr. Atl”) em que narra os desenvolvimentos artísticos relacionados com a paisagem e a natureza. Nos 36 slides “What Happens in Halifax Stays in Halifax” o artista procura descobrir o sucedido durante um workshop que Robert Barry realizou na Universidade de Halifax em 1972. A artista Jordana Emily Jacir (1970) surge como uma bela descoberta, com a instalação “Material for a Film”, que narra a história do assassinato do intelectual palestiniano Wael Zuaiter através de uma extensa operação de recolha documental. A obra “Or” de Pierre Huyghe (1962), uma fotografia que documenta uma acção em que o artista criou uma bifurcação num percurso existente é suma interessante e divertida alusão às possibilidades regeneradoras da arte. Continuando com a França, “Pas pu saiser la mort”, de Sophie Calle (1953), é uma instalação memorável que retrata poeticamente o modo como a artista recebeu simultaneamente dois acontecimentos: a notícia da eminente morte da sua mãe e o convite para participar na Bienal. Uma semelhante operação de recolha e exposição pública de materiais pessoais e privados é realizada pela artista no Pavilhão Francês. Intitulado “Prenez soin de vous”, o trabalho de Calle consiste na interpretação e análise de uma carta, que anuncia o final de uma relação amorosa enviada à artista, por 100 mulheres. Dentro dos Pavilhões nacionais, destaca-se um dos mais populares, com a exposição “Oil” da artista Isa Genzken (1948), na representação alemã, uma representação simbólica e estratificada da cultura alemã – e europeia - do pós-guerra aos dias de hoje. Apesar de controversa, a feliz escolha de Félix Gonzalez-Torres (1957-1996) para o Pavilhão Americano faz deste espaço uma das mais interessantes exposições da Bienal. A exposição, uma retrospectiva bem elaborada e cuidada, celebrada pelas centenas de visitantes que se passeavam pelos Giardini com os posters de Gonzalez-Torres debaixo do braço, deixa, no entanto, o sabor de uma homenagem demasiado tardia. O pavilhão holandês marcou outro momento interessante da Bienal, com a instalação de três vídeos “Citizens and Subjects” de Aernout Mik (1962), em que os direitos civis de cidadania e de liberdade são questionados pelo artista. Muito mais haveria para referir, desde todas as representações nacionais fora do espaço oficial da Bienal, passando pelo vastíssimo número de exposições paralelas (das quais se destaca a mostra “Beuys-Barney”, organizada pelo Museu Peggy-Guggenheim) e de eventos organizados para esta ocasião. O que resulta desta Bienal é a confirmação da sua importância e do seu estatuto, sendo um evento que confirma e consagra os nomes chave da cena artística actual. A Bienal oferece qualidade sem surpresas, sem novidades, sem inesperados e, sobretudo, sem riscos. Filipa Ramos |