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RÉMIGES CANSADAS OU A CORDA-CORDISMADALENA FOLGADO2024-08-17
Prólogo: Aconteceu-me no segundo milésimo vigésimo quarto ano, no sétimo mês, no décimo sexto dia. A opinião andava como eu, desprevenida. Pelo que alerto quem lê a rubrica “Opinião” para a possibilidade iminente de esbardalhanço. Foi o que sucedeu comigo, e sou eu quem a escreve novamente. Assim, ao invés de “Opinião”, devido ao modo como me posiciono, a rubrica poder-se-ia designar por “Confissão”; far-se-ão três. Primeira confissão: Não teria como prever o que iria encontrar por detrás da cortina negra da galeria da Brotéria. Não teria como prever — entenda-se pré ver — porque o que previ foi uma exposição de pintura…Caí na armadilha da imagem que acompanha o press release. Rémiges cansadas é uma exposição/ instalação de Samuel Silva, com curadoria de Álvaro Moreira, que pode ser visitada até 7 de Setembro. Depois do incidente, fui amavelmente recebida pelo Pe. Manuel Cardoso SJ, que me deu a ler um texto sobre a Casa. Tudo o que vi — e ver aqui também sinestesicamente — está lá. Escrevo a partir da minha experiência e não sobre a exposição, para que vos seja possível nela entrar e a ela voltar — para que a “Opinião” ou até mesmo a “Confissão” não substitua a experiência de quem a visitar. (E não deveria ser sempre assim? Sim, mas nem sempre é). Segunda confissão: Pouco ou nada conhecia do trabalho do Samuel Silva…Já o Daniel Faria, trago-o comigo desde o dia em que o acaso me deu a ler “Para que nasças no mês anterior”, exatamente um mês antes do meu aniversário. Também este texto me precede, porém, é aqui fixado por um sem-número de experiências; acontecimentos rememorados, objetos parciais, imagens incompletas. Agradeço ao Samuel por ter deixado tudo em aberto. Uma vez mais, já estava a aconte-Ser.
Foi preciso estar fora… …Fora de (c)asa — “Não voltarei a dividir / As aves — o canto e as asas —” [1] Seguro, o pássaro. A vírgula cai, é pena. Melhor: rémige. A mão segura o cordis: No pulso vivificado pelo cansaço percebo-me, enfim, dentro da nossa casa — Escuto-o melhor. Estou segura — Descanso. Sem asas caio no sono e acordo na névoa…Será um cabo, uma corda ou cordis? São rémiges de sustentação de múltiplos sentidos; quando um se perde, outro da névoa se (in)forma do meu não-saber — deixam, no entanto, o saber ao sabor das palavras que comi; restos desse voo que imaginei um dia empreender, num manjar de vento. É uma casa sem projeto, desenhada por amadores. Não vês a corda-cordis no chão? Desenha orbitas, caiu junto, coincide — agora. Não pertence ao mundo linear explicado por causas. Ao fim ao cabo, rema: Vai à frente…vem atrás…vai à frente…Desloca-se dessa maneira afetiva que não deixa ninguém para trás; a maneira anacrónica, enlaçada pelo coração que borda e sobressalta — Voa, sobre-vive ao tempo, como Penélope e o pássaro que seguro. De tão cansado entra em met-amor-amor-amor-fose. Seguro então um coração, de pulsar extático. Perco-me na incerteza de ser o meu. É preciso. É preciso estar atento às veredas do texto mudo e ao mundo que com ele se fecha em sentidos únicos. Mas também é preciso ser prudente com o som das palavras homófonas; em particular, as que adjectivam o pulsar do coração que seguro. Se é para seguir a corda-cordis, pois que seja bandhu — ligação que por si mesma dá sentido ao que existe; sinónimo do verbo Ser. [2] O Verbo está no início, no meio e no reinício; o som de algumas palavras é helicoidal. Retomo a confiança no que sinto pelo pulso-caminho, devagar, "no ritmo de um salmo" [3]. Aqui, percorrer o espaço do enlace demanda o movimento da garça. E nas pernas a graça de caminhar: Flectir os joelhos, marchar lentamente para desenhar a atenção — Encontrar alento e alimento. O final do cabo pode a qualquer instante emergir se pisado: “Sede prudente como a serpente”. [4] Não, não posso ser prudente; terei de dobar a serpente para desenrolar o rolo do Daniel [5]: Ser gloriosamente capturada pela escuta. Diz-me o texto que talvez seja uma cóclea [6]. Está suspensa; como um troféu de caça. É de chumbo; tem a gravidade concentrada de um buraco negro. Que força de atração é esta, que parece imóvel de tão veloz? …Há uma voz. Quem canta dentro do molusco da escuta? Terá sucumbido à vertigem helicoidal? Seguro, o pássaro fez a travessia; não sem emprestar as suas penas à corda-cordis, torcendo-se e retorcendo-se até esgotar as suas forças. Com o Daniel somos sempre — e-ternamente — iniciados num território de rendição, esculpido pelo atrito, estrito, restrito. Não entram as imagens desse eu, que, ao fim ao cabo, somos nós: A resistência tornada re-existência. Somos iniciados no imenso Poder apenas experienciado na intermitência de não se querer o poder… Eis-nos então diante de um “Pórtico”. Olho para o chão e reparo na metamorfose: “Com os amigos aprendi que o que dói às aves / Não é o serem atingidas, mas que, / Uma vez atingidas, / O caçador não repare na sua queda.” [7] Paro, reparo e volto a parar. Nós, no entanto, ainda não atravessámos, apenas percebemos a metamorfose das fibras; agora, penas. O perigo não é o mundo, mas a falta de atenção ao mundo. A fibra é, agora, mais coragem. É um enxerto que acresce a tessitura da corda-cordis, dir-se-ia — polissemicamente sustentados — que altera a sua textura, o seu tecido. Opera, não sei se por isso, mas seguramente com isso que voa, uma cirurgia: Repara um outro orgão, a siringe do pássaro que seguro. Entra-se pelo canto; qualquer canto sem coordenadas precisas — o da casa perdida. Escuta: É a voz ainda, o canto do pássaro…não o posso separar das asas, nem tampouco da casa. Mas agora projetado no infinito helicoidal da queda vertiginosa em si; aqui, o tecto do arquitecto amador. É vermelha encarnada; sei de cor a cor do inconsciente [8] — a aspiração da sombra e a pira sagrada. Estamos dentro. Sou mais Lugar.
Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.
O amor (venho repetir Dante) é um meio e estado de locomoção. [9]
Do Daniel para o Samuel; em mim, constelação. Os lugares são uma imensa casa construída de múltiplos sentidos, aberta ao voo sincronizado do poema que somos…O que, pode também, ser sentido “como um caminho sem saída” [10]. Lo-co-mo-ver…Locu movere…Os lugares somos nós, desatados no Real. Só somos, co-movidos.
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Notas: [1] Daniel Faria, “Labirinto I”, in Poesia, Assírio e Alvim, 2015, p.66. [2] Cf. Roberto Calasso, “La locura que viene de las Ninfas” in Roberto Calasso, La locura que viene de las Ninfas y otros ensayos, Mexico, Sexto Piso, 2004, p. 261. [3] Daniel Faria, “Entrei na sombra como alguém que via”, in Poesia, Assírio e Alvim, 2015, p.176. [4] Bíblia, Mt 10.16. [5] O texto curatorial, por Álvaro Moreira, refere “um poema-objeto, redigido sobre um rolo de papel de caixa registadora, com as superfícies laterais mergulhadas em tinta vermelha e envolvido por fio do Norte”. Ainda segundo o curador, a leitura do texto obedece à performatividade do seu desenrolar, evocando as ações litúrgicas de leitura. [6] Lê-se no texto curatorial: “estrutura helicoidal recôndida associada ao sistema auditivo e ao equilíbrio do corpo”. [7] Daniel Faria, “Pórtico”, in op. cit, 2015, p. 399. [8] Informação partilhada pelo psicanalista João França de Sousa. [9] Daniel Faria, O Livro do Joaquim, Lisboa, Assírio e Alvim, 2019, p. 59. [10] Daniel Faria, “Do Livro de Ezequiel”, in op. cit, 2015, p. 207. Este é o poema que dá sentido ao poema-objecto, no tocante à performatividade das ações liturgicas, também parcialmente citado no texto curatorial.
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